A Peça Perfeita escrita por Kurai


Capítulo 1
Capítulo 1 - Tédio


Notas iniciais do capítulo

As palavras pro primeiro capítulo foram: epulário e súbitas. Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/748847/chapter/1

Ayori estava entediada.

Fatalmente, ridiculamente entediada.

Tudo naquela escola superestimada era tedioso. Todas aquelas peças que se achavam tão especiais, mas que jamais seriam usadas a seu potencial completo. Toda aquela gente achando que estava no controle. Achando que eram relojoeiros, quando mal davam uma peça decente.

Ayori era a relojoeira. Não uma relojoeira, a relojoeira. Ganhara há pouco esse título oficial. Ultimate Relojoeira. A melhor em seu ramo.

Pessoas idiotas achavam que um relojoeiro consertava relógios. Parecia à maioria o trabalho mais inútil do mundo, e isso provava que eram imbecis. Bons relojoeiros entendiam de peças. Sabiam como encaixá-la, do zero, pra que uma criação ganhasse vida. Um punhado de engrenagens e molas, inúteis sozinhas, nas mãos do relojoeiro se tornavam valiosas.

Ayori era a melhor relojoeira do mundo, e fazia muito mais do que unir engrenagens em relógios ou caixinhas de música. Sabia como usar pessoas. Para ela, aquela escola era um gigantesco relógio, cheio de peças montadas errado ou mal aproveitadas, em que podia enxergar um padrão, uma trama maior onde encaixar cada uma.

Gostava de observá-las, principalmente as de sua sala, e de imaginar o potencial delas. Não se lembrava do nome delas ao encarar de longe, mas sua memória voltava sempre quando precisava conversar com uma, e as lembranças súbitas a permitiam se passar por alguém interessada. Fora dessas conversas, sem a máscara do sorriso, dava os próprios nomes a elas.

O repórter epulário de doces era uma mola. Não parava quieto, e funcionava melhor sob pressão. O escritor era uma linha. Realmente esticada. A tocadora de tambor era uma peça decorativa. Não tinha utilidade prática, mas era agradável de olhar. O perito era uma alavanca. Só tinha dois modos de agir, alternando um e outro. Todos, a ela, eram apenas parte de uma obra maior a ser criada.

Havia algumas peças que se destacavam, exceções. Dessas, sabia o nome. Miya, a paisagista, era um botão. Mas um botão misterioso. Ayori não sabia o que aconteceria quando fosse apertado, e não queria ser ela a apertar, então a evitou o quanto pôde sem parecer rude. Kiyoko, a jardineira, era uma peça que ela gostava de chamar ‘multifunção’. Adaptava-se ao que o relojoeiro precisasse, podendo servir de parafuso a roda como quisesse. Um bom relojoeiro não dispensava uma multifunção.

Abigail, a cavaleira, era um mero parafuso, mas parafusos eram subestimados, e um parafuso forte era indispensável em qualquer criação. Mas esse pertencia a outro relojoeiro. Leone era a única outra pessoa ali que não era peça, conseguia ver o mundo como ela, mas estava contente com seu parafuso e não parecia querer criar nada. Ayori perdeu rapidamente o interesse no monarca, embora às vezes contemplasse a ideia de tomar-lhe aquele parafuso inerte. Se o tivesse, o uniria às outras peças e criaria uma obra-prima.

Mas trabalhar com peças-pessoas era difícil. Nunca queriam colaborar. Peças vivas sempre achavam que sabiam mais do que o relojoeiro. E eram tão sem graça que a garota não via necessidade de se esforçar por aquilo. Não tinha ambição o suficiente pra tomar aquela escola e fazer dela uma obra sua.

Por isso, estava entediada.

Ponderou por vários minutos se deveria ir àquela atividade. Era sexta à noite, e poderia estar num bar qualquer ouvindo música, paquerando, até cantando. Atividades recreativas eram boas formas de estudar suas peças em ambientes diferentes da sala, e aquela tinha a novidade de ser à noite, mas aquelas peças eram tão...

Repetir ‘tediosas’ pela milésima vez estava sendo tedioso.

Ayori bufou, batendo contra a cama, e levantou-se para se arrumar. Entediada ou não, era a relojoeira, e tinha o dever de observar suas peças. Quem sabe não visse algo especial dessa vez?

Duvidava disso, mas foi mesmo assim.

— Está atrasada, Motosuwa. — o professor ralhou assim que pôs os pés no gramado onde os alunos se reuniam. Errado. A aula estava marcada para 22 horas. Eram 21, 59 minutos, e 37 segundos quando encostou na grama. Ela nunca estava atrasada.

— Foi mal, teacher. Acho que preciso de um relógio novo, right? —riu de forma bem humorada ao ir se sentar na grama com os outros, que riam com ela. O sorriso debochado aparecia de forma automática. Por dentro, só conseguia pensar em como estava cercada de idiotas.

A atividade até era interessante. Uma chuva de meteoros aconteceria naquela noite, e o professor explicava sobre ela, como os detritos entravam em alta velocidade na atmosfera e isso criava um efeito de chuva partindo de um único ponto, a radiante. Ayori soltou um bocejo enquanto o ouvia explicar que o nome era dado em homenagem à constelação de onde partia essa radiante.

— E aí está — ele falou por fim, quando a primeira estrela cadente cruzou o céu. — A chuva dessa noite. É a Perseidas, e deve durar até...

— ...Mas aquelas são as Oriônidas. O meteoro veio de Orion. — uma vozinha confusa soou baixo logo ao seu lado.

Ayori virou a cabeça na grama pra ver quem era. Não se lembrava do nome, mas conhecia seu rosto. Estava em sua sala, embora nunca tivesse lhe dado atenção nas poucas vezes que se encontraram. Não lembrava-se nem do talento dela.

A garota de pele de alabastro e cabelos róseos tinha traços delicados demais para uma peça útil convencional, mas algo nela fez com que Ayori prestasse atenção um minuto mais. Ela notou que estava sendo observada e corou, mas julgou que a atenção foi pelo que dissera, e criou coragem para prosseguir.

— Está vendo? Aquelas três estrelas são o cinto. E ali o braço... A clava. Com certeza é Órion.

Enquanto os olhos detalhistas da relojoeira seguiam seu dedo apontando cada estrela, ela finalmente percebeu o que estava vendo. A garota, de forma inconsciente, tinha movimentos sincronizados, elegantes, graciosos. Os movimentos de...

— Com certeza é Órion. Não acho que nos conhecemos. Meu nome é Ayori Motosuwa, sou a relojoeira. — ela ergueu o corpo pra sentar-se na grama, e com um sorriso gentil, estendeu a mão a ela.

— Miyuki Shinju! Ultimate Astróloga.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Miyuki pertence à Clara Matos e tem uma história própria. Vão conferir!
https://fanfiction.com.br/historia/746646/Danca/



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Peça Perfeita" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.