Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 30
Um Caso Irresolúvel - Final?




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Anteriormente...

— Me ajude... Por favor, está atrás de mim, me ajude...

— Senhora, eu...

Ela saiu correndo com um grito pavoroso pelos jardins com Miguel e Calú no encalço dela.

Crânio gritou desesperado:

— Não! Voltem aqui vocês dois! Idiotas!

[...]

Crânio segurou as mãos dela com carinho.

— Você acredita em mim? — o rapazinho não escondeu a ansiedade — Na hora que ela disse que não conhecia a minha irmã, e mencionou o pai de Charles e Henrique, eu sabia que havia algo de errado. Aquele quadro no hall e aquela mulher não são a mesma pessoa!

Magrí acenou com veemência.

— Sim. Acredito sim que aquela mulher não é a verdadeira Agnes, e estranhei também aquele quadro. Achei que apenas o pintor era ruim, mas agora sabemos que não. Onde quer onde a verdadeira Agnes estiver, Chumbinho também estará com ela.

***

Os únicos sons no jardim, que mais parecia um grande labirinto, eram os passos apressados de Calú e Miguel esmagando as folhas ao chão enquanto corriam. A figura da mulher desapareceu entre os gigantes arbustos dos dois lados das alamedas do jardim.

Chegaram em uma parte escura no qual a luz do dia não chegava. Era como se de repente, o breu da noite tivesse chegado sem avisar.

— Para onde ela foi? — Calú sussurrou olhando de um lado para o outro.

— Não sei. Mas você está ouvindo o que eu estou ouvindo?

De fato, soava no jardim deserto barulho de passos como se algo estivesse se movendo nas sombras. O som estava ficando cada vez mais próximo vindo detrás dos dois Karas. Miguel fez um gesto de silêncio para Calú apontando para a coisa que se aproximava.

A coisa arfava soltando alguma coisa pegajosa que caía ao chão. Pontos vermelhos estavam no lugar dos olhos; um leve rosnado saía da garganta conforme se aproximava. Pela meia luz, Miguel e Calú finalmente conseguiram ver a coisa, sentindo o coração disparar no peito. Parecia um cachorro, mas não era bem um cachorro com uma cabeçorra com pequenos chifres, dentes afiados para fora da boca e era duas vezes maior que um cachorro comum.

Mas por que aquela besta não os atacou ainda? O que ele estava esperando? Eram as perguntas que os dois Karas faziam em pensamento. Eles não se moviam um centímetro, tentando controlar o impulso de correr. Até que ouviram os gritos de socorro da mulher.

A besta uivou, um som de congelar os ossos e arrepiar os pelos dos braços. Ela disparou a correr em direção a Miguel e Calú.

— Corre!!

Os dois dispararam como balas jardim adentro, tentando ao máximo por distância entre eles e a besta. Não sabiam por quanto tempo correram, até Calú parar.

— Acho que despistamos o cachorrão — ele arfou suando.

Em seguida soltou um palavrão, que fez Miguel fitá-lo. O líder dos Karas estava tão assustado quanto o amigo com o que viram.

— Como diabos nós vamos pegar aquela coisa? — Calú continuou — Você viu o tamanho dos dentes?!

— É o único jeito, Calú. Agora temos certeza do que pode ter matado Charles…

Perto deles havia um velho balanço de madeira decrépito que parecia não ser usado há anos. Miguel olhou para a grossa corda que prendia o balanço, e em seguida teve uma ideia.

***

Magrí e Crânio procuraram pelos amigos nos terrenos da mansão, mas todos os esforços foram inúteis. Esperavam que os amigos estivessem bem, pois o casal decidiu procurar mais pistas sobre o paradeiro de Chumbinho, da verdadeira Agnes e do filho.

— Eu acho que estou começando a entender o que pode ter acontecido, Crânio — Magrí sussurrou enquanto os dois caminhavam rapidamente de volta para a mansão — Aquela mulher que nós conversamos pode ser uma sósia? Irmã gêmea da verdadeira Agnes?

— Acho que uma irmã gêmea seja mais provável — Crânio franziu a testa — Por quê? Por que alguém sequestraria a mãe de Charles? E onde está o Henrique?

Os dois se entreolharam sem respostas. Pareciam que quanto mais chegavam próximos da verdade, mas ela lhe escapava pelos dedos.

Quando se aproximavam da entrada do casarão, Magrí estacou e segurou o braço do namorado.

— Espere. Você está ouvindo isso?

Crânio parou tentando ouvir. Ao longe o garoto ouviu o que parecia ser gritos abafados. Correu os olhos pelo terreno.

O casarão era uma construção antiga, ainda do período imperial, o que seguia muito a arquitetura de influência europeia do período.  O rapazinho sussurrou para a namorada dizendo que os gritos vinham de algum lugar do casarão, próximos da porta do hall onde os dois estavam.

Magrí e Crânio caminharam em silêncio escutando os gritos de socorro. Eles deram a volta pelo casarão chegando perto dos fundos e da porta de entrada para a cozinha. Da mesma parede, havia uma porta em formato horizontal que levava para o subterrâneo da casa, servindo antigamente como adega.

— Eu acho que os gritos estão vindo daqui — Magrí espiou a fechadura — Mas a porta está trancada.

— A fechadura é muito antiga — Crânio examinou — Vamos ter que apelar.

— O que você quer dizer?

Crânio correu para a cozinha pela porta dos fundos sem responder. Passados alguns minutos, ele retornou com um pesado martelo na mão. Magrí levantou a sobrancelha.

— Você sempre diz para mim que não é legal sair por aí destruindo as coisas, ou usando demais a força durante uma missão dos Karas…

O garoto sorriu pelo canto da boca.

— Se eu for tentar abrir essa porta sem quebrá-la, vou passar a noite fazendo isso. —ele acariciou a bochecha dela rapidamente — Alguém me ensinou que a força é tão necessária quanto a inteligência.

Ela sorriu e se segurou para não agarrá-lo ali mesmo. Não era uma boa hora, por mais que quisesse.

A garota se afastou, ao passo que Crânio bateu com o martelo com toda a força, duas, três vezes até que na quarta, a fechadura quebrou. Com o coração aos pulos, os dois empurraram a porta e o gênio dos Karas foi a frente entrando no subterrâneo.

Atravessaram um corredor mal iluminado até chegarem numa ampla câmara com uma parca luz elétrica. A primeira coisa que viram foram a expressão assustada de Henrique ao lado da mãe — a verdadeira Agnes, tão parecida com a mulher que estava lá fora. Os dois estavam amarrados com grossas cordas e com leves hematomas nos braços. Ao lado deles estava a carinha de Chumbinho que os recebeu com um grande sorriso. A razão de estarem sem esparadrapos na boca foi por causa do garoto que tinha conseguido se libertar primeiro,, e tentava libertar mãe e filho.

— Até que enfim vocês chegaram! Achei que precisaria gritar mais alto!

Magrí correu para abraçar o garoto bem apertado. Nunca se sentiu tão aliviada em vê-lo bem. Crânio sorria.

O casal de Karas, com a ajuda do caçula, não perdeu tempo e libertou os Agnes e Henrique.  

— Obrigado — os lábios de Henrique tremiam quando fitou Crânio.

— Não há de quê.

Magrí ajudou Agnes a se levantar e limpar a barra da longa saia. A mulher encarou Magrí com olhos assustados e suplicantes.

— Não fique aqui, criança. Vá para casa! Aquela mulher é capaz de fazer qualquer coisa para terminar o que começou.

— Quem é ela? É sua irmã?

Agnes acenou cerrando os punhos machucados.

— Sim, e voltou para nos aterrorizar. Ela é louca, literalmente. Fugiu do hospício há pouco meses, mas ela teve a ajuda de um homem, inclusive para nos prender aqui.

Chumbinho completou:

— Eu achei estranho a forma como ela me tratou, mas confesso que me deixei enganar. Tem um homem que parece ser o comparsa dela.

Crânio se aproximou.

— Quem era? Você conseguiu ver o rosto dele, Chumbinho?

Agnes então respondeu pelo garoto.

— Não, ele estava com o rosto coberto. A única que consegui ver foi parte da barba dele que era ruiva, só isso.

— E o monstro? — Magrí perguntou — O que é essa coisa que está atrás de vocês e matou seu filho?

A expressão de Agnes fez os pelos do braço de Magrí se arrepiarem.

— É o demônio, criança. Não tenho dúvidas quanto a isso.

***

Calú rezava com todas as forças para que o plano de Miguel em capturar a besta desse certo, mas no fundo sentia que não seria tão fácil assim. Ele estava encarapitado numa árvore segurando a grossa corda do balanço, enquanto que Miguel serviria de isca para atrair o bicho feio.

— Você percebeu que ele não enxerga, Calú? A coisa só se movimenta pelo som e pelo cheiro. Quando eu correr aqui, você puxa a corda que vai prendê-lo pelo pé.

— Eu espero que isso seja o suficiente para prender o cachorrão — Calú desabafou — Isso aqui não é Scooby-Doo, Miguel. Nós realmente podemos morrer como o Charles.

O líder dos Karas suspirou.

— É o único plano que temos, Kara. Eu sei que é muito arriscado, mas nós temos que tentar prendê-lo antes que ele mate mais alguém.

Calú acenou confiando no seu líder. Era o melhor que podia fazer naquele momento.

Miguel respirou fundo e disparou a correr na direção que a besta tinha ido quando a viram pela última vez, fazendo o maior barulho possível. Não demorou para Calú escutar os rosnados do monstro, e logo a criatura corria atrás de Miguel de forma faminta pelos labirintos de arbustos do jardim.

A sorte de Miguel era que ele era um excelente corredor, resultado de muitas partidas de futebol. Não chegava ao nível de Magrí, mas sentiu-se grato que as longas horas de treino foram compensadas enquanto fugia do “cachorrão” como Calú chamou.

Ele contornou uma alameda disparando como uma bala com a besta no seu encalço. Estava chegando perto do local onde havia deixado Calú preparado, era só virar mais uma alameda e logo poderia respirar normalmente. No entanto, o rapazinho tropeçou numa raiz, dando de cara no chão.

Miguel engoliu um palavrão e tentou ficar o mais imóvel possível enquanto sentia a aproximação da besta. Aqueles dentes poderiam estraçalhá-lo só com uma mordida. Ele se colocou de pé o mais silenciosamente que podia, ao passo que a besta farejava o chão procurando-o. Engolindo em seco, Miguel contou até três e disparou de novo pela alameda, mesmo se sentindo sem fôlego.

Quando enxergou a árvore onde estava Calú, ele olhou para o alto e sem pestanejar, o ator dos Karas puxou a corda com toda a força que tinha e conseguiu prender o cachorrão pela pata. A besta rosnava um som infernal e se debatia na corda tentando se libertar, mas Miguel ajudou Calú a amarrar a outra ponta da corda na árvore o mais apertado que conseguiam.

Os dois Karas sorriam.

— Um problema a menos para nós, eu acho — Calú comentou — O que vamos fazer com essa coisa, eu já não sei.

Um estalido chamou a atenção dos dois Karas. Eles se viraram e viram a figura de um homem parado no fim da alameda. Não conseguiam ver o rosto dele. Calú se aproximou achando que era o jardineiro.

— Olá? O senhor pode nos dá uma mãozinha aqui? Eu sei que não é muito comum isso, você não teria uma jaula de prender demônios aqui, teria?

***

Crânio, Magrí e Chumbinho — juntamente com Agnes e Henrique — deixaram o porão voltando para a entrada da casa. Os amigos estavam preocupados com Miguel e Calú que desapareceram no meio do jardim.

Antes mesmo que dissessem qualquer coisa, um grito de congelar os ossos seguido por uma risada assustou o grupo. O som vinha dos labirintos do jardim.

— É ela. Está se aproximando — Agnes sussurrou — Temos que abandonar a casa.

— Mas nossos amigos estão por lá — Magrí protestou — Só vamos sair quando o encontrarmos.

— Você não entende, Magrí — Henrique finalmente encontrou a voz — Minha tia é capaz de fazer qualquer coisa, não podemos ficar aqui nem mais um minuto.

Magrí estava pronta para protestar e argumentar quando Crânio pediu a palavra.

— Magrí está certa, nós dois só sairemos juntos com nossos amigos. Mas há coisas que eu não consigo entender... — o rapazinho fitou Agnes — Por que a sua irmã ficou louca? O que ela quer com vocês?

Agnes comprimiu os lábios.

— É uma longa história, não temos tempo. Tudo o que vocês precisam saber eu já disse a vocês. Venha Henrique, vamos embora.

Crânio se interpelou entre os dois.

— Ninguém vai sair enquanto não descobrirmos a verdade. Vocês não podem nos abandonar agora!

Henrique bufou indignado.

— Quem vocês pensam que são? Detetives particulares? Polícia mirim? Vocês não tem autoridade nenhuma aqui e fariam um bem se fossem para casa e nos deixasse em paz!

Chumbinho fechou os punhos.

— É isso que você pensa, é? Eu vou amassar a sua cara de inseto!

— Bela forma de nos agradecer por ter salvado a sua vidinha medíocre, Henrique — Magrí estalou a língua — Vocês dois são uns ingratos! Talvez seja por isso que aquela mulher está louc...

Agnes teria dado um tapa na boca de Magrí, se Crânio não tivesse o segurado o braço fino da mulher. A briga porém foi interrompida quando a irmã gêmea surgiu em meio as sombras.

Ela estava completamente desgrenhada, o cabelo antes impecavelmente preso estava bagunçado, o vestido sujo e estava descalças. Uma pálida imagem da mulher que a encarava de volta.

— Raquel... Por favor, deixe-me ajudá-la. Por favor.

Raquel tinha os olhos esbugalhados e um pouco vermelho como se tivesse injetado uma droga no corpo. Ela ria sem parar e apontava.

— Vocês vão morrer e os amiguinhos de vocês também!! Vocês adorar o inferno! O inferno!!

Crânio olhou para Magrí e os dois sabiam que só havia um jeito de lidar com a situação: teriam que prender aquela mulher o quanto antes. Mas como?

— O porão — Magrí sussurrou — Podemos deixá-la lá até a polícia chegar...

Um grito vindo de Raquel despertou os dois Karas, que pularam de susto ao ver que a parte do jardim onde se encontravam estava pegando fogo. Raquel segurava um fósforo nas mãos entre risadas. Agnes e Henrique correram para dentro da casa e trancaram a porta da frente antes que Crânio e Magrí pensassem em entrar. O fogo bloqueava a passagem por onde Miguel e Calú pudesse chegar na entrada da casa. Estavam encurralados.

Não demorou para que os dois Karas faltantes aparecessem pela alameda do jardim ofegantes, e o tempo inteiro olhando para trás como se alguém estivessem perseguindo os dois. Eles arregalaram os olhos quando viram o fogo, e Magrí chamou a atenção dos dois para a mulher louca.

O fogo tinha se transformado em um círculo em volta de Raquel, com os Karas fora do círculo. A mandíbula de Crânio trincou.

— O que quer que você esteja fazendo, pare agora! Não vai funcionar!

— Não? — a cabeça de Raquel pendeu para o lado — Não vai funcionar? Não vai funcionar? Quem disse que não vai funcionar? Eu só quero falar com o meu amigo! Amigo!

Ela tinha um graveto nas mãos que entre risadas e gritos, usou para desenhar algo no chão de areia. Crânio estava desesperado e sentiu os olhares questionadores de Magrí e Chumbinho ao seu lado, e de Miguel e Calú do outro lado do círculo de fogo.

— O que ela está fazendo, Crânio? — Miguel gritou.

O garoto não respondeu de imediato, pois os olhos estavam fixos no desenho que se formava no chão onde Raquel estava. Ele gritou para Raquel de novo:

— Raquel, pare agora! Você sabe muito bem que não vai dar certo!

— Hahahaha!!! Então você é incrédulo, huh? — Raquel se aproximou de Crânio o máximo que conseguia com o fogo os separando — Então você não crê no poder de Asmodeus, huh? Huh?

— Err, ela está fazendo o que eu estou pensando o que ela está fazendo? — Chumbinho olhou para a Magrí.

A menina estava pálida como papel e apenas acenou, sem tirar os olhos de Raquel e Crânio. Qualquer movimento que a aquela doida tentasse fazer para machucar o namorado seria o suficiente para Magrí pular em cima dela e prendê-la.

Crânio parecia que tinha criado raízes no chão.

— Não vai funcionar. É impossível.

Raquel se afastou com uma risada de escárnio para Crânio. O fogo parecia estar aumentando e se alastrava para mais dentro do círculo.

— Veja e prove, criança! Você vai se arrepender de ser incrédulo!

Uma nuvem de fumaça surgiu, junto com uma grande cratera no chão do jardim. Os Karas se seguraram nas raízes das árvores para não caírem no buraco. O que havia lá dentro, porém, os assustaria até o fim da vida.

Gritos pavorosos que não pareciam ser vindo de humanos; vários e vários círculos de fogo dentro do buraco que parecia não ter fim com pessoas presas ou pela cabeça, ou pelos pés, mãos ou virilhas. Os Karas viram horrores o suficiente para uma vida inteira. Eram horrores tão grandes que nem eles conseguiam descrever. Eles ficaram estáticos nos lugares sem conseguirem mover um músculo.

De dentro do buraco, o cachorro gigante que Miguel e Calú haviam conseguido prender, ressurgiu muito maior e mais forte — não com uma, mas duas cabeças. Os olhos vermelhos da besta buscavam os olhos de Magrí, mas se cravaram em Crânio quando o garoto se impôs entre ela e a besta. O rapazinho devolveu o olhar com coragem.

Mas aquele foi o erro fatal de Crânio.

Antes mesmo que alguém dissesse alguma coisa, Crânio caiu ao chão como se alguém tivesse dado uma rasteira nele. Magrí e Chumbinho correram para ajudá-lo, contudo o garoto começou a se contorcer no chão como se tivesse tendo um ataque epiléptico.

— Crânio?! Crânio!!

Magrí tentava segurá-lo, mas ele se debatia demais. Os olhos começaram a se revirar nas órbitas, e ele começou a gritar de forma horrível como se alguém o tivesse torturando. Nada do que Magrí ou Chumbinho fizesse para aliviar o sofrimento de Crânio surtia efeito. Magrí gritava o nome verdadeiro do rapazinho chamando-o de volta, sem sucesso.

A menina, já com lágrimas no olhos, se levantou como um gato e fez a coisa mais idiota da sua vida: pegou uma pedra pesada que estava no chão e jogou bem no meio dos olhos do cachorrão.

Inicialmente, a besta ficou estática no lugar olhando com a outra cabeça para Magrí como se a questionasse. Os olhos da cabeça que foi atingida se debatia e uivava de dor. Miguel e Calú não perderam tempo e passaram a imitar o gesto de Magrí, atirando todas as pedras que encontravam na besta de duas cabeças. Raquel apenas observava toda a cena aos risos.

Crânio continuava se debatendo nos braços de Magrí e Chumbinho tentava ajudá-la. Uma bola de fogo foi jogada no casarão e a casa passou a pegar fogo em segundos. Miguel e Calú conseguiram contornar o círculo e finalmente chegaram perto dos amigos, porém com a barra das calças chamuscadas.

— Temos tirar Crânio daqui, agora! — Miguel ordenou.

Assim que Miguel terminou de falar, Crânio parou e ficou de olhos arregalados. O garoto sentou-se apoiado por Magrí e encarou a besta e Raquel. O que ele disse ninguém entendeu, parecia ser numa língua antiga. Mas a besta de dois cabeças entendeu e indignou-se com o garoto, mas o poder que tinha sobre o garoto parecia ter desaparecido.

Crânio tinha lágrimas nos olhos, e repetiu de novo a frase na língua antiga. A besta parecia se debater entre si, ao passo que pela primeira vez, a expressão de Raquel se alterou para raiva.

— Onde você aprendeu isso, criança?!

— Isso é Latim? — indagou Calú abismado — Crânio está falando em Latim?

O garoto repetiu a frase pela terceira vez e desmaiou no colo de Magrí. A besta se debatia e se contorcia e torceu as patas nas costas de Raquel que uivou de forma pavorosa. O buraco se encolheu cada vez mais. Tudo desapareceu de repente sem deixar vestígios, inclusive o fogo no jardim e na casa, como se nada tivesse ocorrido naquele lugar.

***

Andrade encarava as expressões de Miguel, Calú e Chumbinho tentando entender a história que eles tinham acabado de contar. A cafeteria do hospital estava vazia naquele comecinho de noite, sendo assim eles não precisavam se preocupar em serem ouvidos por ninguém.

— Olha crianças, já passamos por coisas terríveis, vocês nem deveriam ter se metido nessa história, mas... — Andrade parou limpando a careca — Mas... Vocês estão me dizendo que Raquel Duarte, a louca que fugiu do hospício invocou o... o...

Miguel interpelou.

— Andrade, nós não estamos inventando nada. Por que você acha que Crânio está internado? Tudo o que nós contamos é verdade, você sabe que a gente não é de inventar histórias.

— A gente pode ter inventado umas mentirinhas aqui ou ali, mas uma mentirazona não é o nosso forte — Calú brincou.

Chumbinho deu risada enquanto que Miguel estava na dúvida se queria dar um chute na canela de Calú ou rir também. Ele pôr fim riu discretamente. Andrade coçou a careca e continuou.

— Olha crianças, tudo bem, tudo. Eu acredito em vocês, mas a polícia não vai comprar essa história. Quando a mãe do Henrique e ele foram levados para delegacia para deporem, após o incidente, eles chegaram contando algo parecido...

O gordo detetive bebericou do café e continuou.

— Isso é o que eu descobri e o que a polícia já sabe: Raquel Duarte nunca bateu bem da cabeça e sempre causou alvoroço da família. Tinha uma certa obsessão por sua parte na herança, e ficou completamente fora de si quando descobriu que a irmã se casou com um banqueiro e teve dois filhos. Ela se sentiu ameaçada com a chegada dos sobrinhos, mas chegou a tal estágio de loucura que a irmã se viu obrigada a interná-la em um hospital psiquiátrico no ano passado. Porém, ela conseguiu dar um jeito de fugir e a polícia acredita que ela teve ajuda de alguém de dentro do hospital. Agora ela é dada como desaparecida.

— Nós vimos um homem andando pelos jardins, mas pensamos que era o jardineiro ou algum empregado. — Miguel franziu o cenho — Não vimos o rosto dele. Quando ele quis fugir, fomos atrás mas o perdemos de vista.

— E Charles, Andrade? — Chumbinho questionou.

— O corpo foi liberado para o enterro — Andrade — Não há mais pistas e razão para mantê-lo no IML. A família quer enterrá-lo logo sem chamar a atenção.

Calú franziu a testa.

— Eu acho que sinceramente essa família foi amaldiçoada mesmo. Primeiro um parente que fez pacto com o demônio, agora uma que ficou louca e invocou o chifrudo de novo. Se eu fosse eles, trocaria de nome e país.

— Foi tudo tão estranho, eu me senti estranho... — Chumbinho fitou o chão — Como se a minha vida fosse terminar ali mesmo.

Miguel suspirou pesaroso.

— Nada do que fizemos adiantou. Não levamos Raquel de volta para o hospital, não conseguimos lidar com aquela... coisa. Fracassamos.

Andrade deu um leve tapinha nas costas de Miguel.

— Ora, Miguel não pense assim. Vocês salvaram a vida de Crânio, o amigo de vocês, seja lá o que fizeram com ele. Se vocês não tivessem corrido para chamar a ambulância, ele teria morrido.

— Eu até agora não entendi o que aconteceu, Andrade — Calú desanimou — Será que ele vai voltar ao normal?

***

Ninguém conseguiu tirar Magrí da cabeceira da cama de hospital de Crânio. Os pais do garoto tentaram convencê-la a ir para casa, e até mesmo os pais dela tentaram levá-la, mas tudo em vão. Magrí não iria arredar o pé dali e se separar dele, pois tinha pavor do que poderia acontecer se fosse embora.

Ela estava com a cabeça deitada perto do peito do rapazinho que parecia dormir um sono profundo. Tinham dado um calmante nele na ambulância e fizeram vários exames quando ele chegou no hospital. Magrí ouviu os médicos dizerem que Crânio parece que sofreu de histeria, mas a menina sabia que aquilo era apenas parte da verdade. Tinha medo dele acordar e não ser o mesmo, ou pior... Medo de que o garoto que amava tivesse enlouquecido.

Magrí fungava tentando conter as lágrimas para não sujar o lençol. Abraçou o rapazinho delicadamente pela cintura e encostou a cabeça no peito dele. Não soube quanto tempo ficou ali e deve ter cochilado quando sentiu uma mão acariciar o topo da cabeça.

A garota piscou e levantou a cabeça para dar de cara com a expressão cansada de Crânio, mas que sorria levemente. Magrí arfou.

— Ah meu querido!

Ela o abraçou de novo e sentiu os braços de Crânio em torno das costas dela — inclusive o fio do aparelho de soro. As coisas pareciam ter se invertido, porque agora era o gênio dos Karas que a consolava, pois Magrí chorou copiosamente aninhada a ele.

Passou vários minutos até a garota se acalmar. Ficaram em silêncio ouvindo o coração um do outro bater e as veias pulsarem. Crânio pigarreou e pediu de forma delicada um pouco de água. Magrí sem pestanejar, deu um copo para o rapazinho que apreciou a bebida como se fosse um milk shake.

Ele se recostou nos travesseiros que Magrí ajeitou para que ficasse mais confortável. Em seguida, ela segurou a mão de Crânio e ele sorriu para ela com carinho. O sorriso se alargou.

— Não se preocupe, sou eu mesmo. — ele apontou para a cabeça com a mão livre — O apelido “cabeça de ferro” agora faz todo o sentido.

Magrí riu, mas mais parecida um guincho.

— Como você pode fazer piada com uma dessas? Você quase me matou do coração.

— Eu sei, por isso não quero vê-la triste ou preocupada. — o garoto sorriu — Eu vou ficar bem, tenho certeza. Talvez eu tenha alguns pesadelos de vez em quando, mas fora isso...

A menina riu novamente, mas estava doida para perguntar se ele se lembrava de alguma coisa. Crânio parecia ter lido a mente da namorada.

— Não, eu não me lembro de quase nada. Só sei que era tudo horrível e que doía muito mais aqui — ele guiou a mão dela até o coração — Parecia que eu estava vendo tudo o que eu amava ser destruído.

Magrí se sentou na beira do cama e o abraçou pelos ombros com uma mão, enquanto que a outra saiu do coração do rapazinho e se juntou a mão esquerda dele. Crânio pareceu se lembrar de alguma coisa e disse:

— Ah, meu amor, eu vou dançar com você na sua festa de quinze anos quantas vezes quiser. Só não garanto que eu seja um bom dançarino.

— Ah seu bobo, eu nem me lembrava mais disso! — Magrí riu — Isso não é importante agora, mas não precisa se não quiser, eu vou entender.

Crânio balançou a cabeça e sorriu.

— Não, eu quero, mesmo que passe muita vergonha.

Era verdade, mas havia algo mais que Crânio só foi entender muito tempo — anos — depois: nunca ele se sentiu tão grato por estar vivo e ter sobrevivido a um ataque daqueles.

Muitos anos depois também ele se recordou das palavras em Latim que salvaram sua vida, e que foram gravadas em sua memória quando via a falecida avó rezar após o jantar, muitos anos antes, quando ainda era criança.

Ab insidiis diaboli, libera, nos, Domine


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Notas finais do capítulo

No próximo conto: Calú vai levar e apresentar a sua primeira peça em Nova York no finzinho do ano escolar. Peggy está muito ocupada com a escola, a ginástica e suas obrigações como filha do Presidente americano. Mas o país passa por momentos críticos por causa de recentes ataques de cartas bombas. Para piorar, a peça pode ser cancelada, e parece cada vez mais impossível que Calú e Peggy finalmente se encontrem...



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