Yume escrita por Zatanna


Capítulo 5
Parte IV: Chiyuki




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É necessário fazer algo, mostrar ao mundo
que é único.

 

— Você por acaso saberia jogar sinuca?

Chiyuki não sabia se respondia à questão colocada pelo idoso ou se era para manter silêncio. Ela nunca o havia visto em nenhum lugar da torre, nem alguém semelhante – pelos olhos, sabia que era diferente.

— É para saber se quero jogar sinuca em minha próxima vida? — questionou, sem entender o que tinha ocorrido, piscando os olhos para afastar os resquícios das lágrimas. Ela ainda estava na torre. A assistente de Decim poderia sentir isso.

— Ainda não pretendo enviá-la para lá — respondeu, coçando a barba e segurando seu taco de sinuca rosa. — Gostaria de entender algumas coisas sobre você, como conseguiu fazer com que sentimentos tão mundanos invadissem um dos meus juízes. Sei que Nona a fez de um teste, uma humana e um juiz passando por julgamento juntos, presumo que isso seja impactante para você.

— Não vejo como impactante o fato de sentimentos invadirem Decim-san — concluiu, lembrando-se do sorriso final dele, sem deixar de sorrir também. Ao perceber que estava sendo observada, continuou com serenidade. — O método de julgar os humanos não faz sentido se vocês são incapazes de entender os sentimentos. Humanos nem sempre são racionais, como é possível que vocês entendam as escolhas que fazemos se não sabem a força do que sentimos?

— Você não acha que saber só faria dos juízes mais doloridos? Como humanos podem julgar humanos se sentem os mesmos desejos e as mesmas aflições? O quanto vocês seriam capazes de perdoar o errado e não aceitar o correto? Quantas limitações os sentimentos criam? Você acha que humanos conseguiriam julgar melhor que bonecos que analisam tudo?

Chiyuki encarou o homem que constantemente a olhava com um misto de curiosidade e preocupação, embora não demonstrasse muito bem em suas feições. Ela havia aprendido a ler mínimos detalhes naqueles seres, depois do convívio, muito embora esse fosse completamente diferente. Ela sentia, sem saber.

As perguntas dele martelavam em sua mente. No fundo, não achava completamente certo que humanos julgassem humanos, mas também não achava inteiramente correto que outros fizessem o trabalho que deveria ser dos homens. Ela aprendeu a respeitar os julgamentos de Decim, ainda que discordasse de como eram conduzidos – faltava uma centelha de humanidade naquilo.

Eles não mostravam a escuridão da alma. Eles criavam, como viu no caso dos dois assassinos. Recordou-se, após daquilo, o desejo de parar de sonhar, pois não conseguia suportar a unilateralidade explícita das suas mais puras vontades.

Foi graças àquele sonho, que não passava de uma mera fantasia e cobiça completamente humanos, que Chiyuki respondeu:

— Eu acho que sofrer, mas suportar é o que nos faz viver, por que um julgamento não deve ser dolorido se trata sobre a vida dos humanos?

Imediatamente, Oculus recordou-se de Nona. Nona podia ser humana demais às vezes, ou aquela humana já havia convivido tempo demais num lugar que não deveria. Então, ele percebeu o sorriso ao falar de Decim.

O sorriso apaixonado que a humana deu.

Aquilo seria o ponto de partida para o declínio, pois ela não poderia expressar sentimentos por bonecos, sua alma e parte da sua mente ficariam eternamente naquela interseção entre a vida que teria e o Vazio que poderia se encaminhar.

Ele não poderia mandá-la ao Vazio, pois concordava com o julgamento dado por Decim. Então, o que Oculus faria com ela?

Ela, definitivamente, mostrou ser única.

Suspirou profundamente, ao menos, poderia fazer dela sua parceira de sinuca. Nona demoraria a aparecer outra vez por medo dele estar de olho demais em cada passo seu, cada corrupção das regras.

Foi para as costas da humana que, finalmente, havia notado a mesa à sua frente, os corpos celestes flutuando. Naquele segundo, sua barba crescia e crescia, engolindo qualquer registro da alma de Chiyuki.

No entanto, para a própria humana, o tempo não passou um segundo sequer. Era como se estivesse ali observando a mesa de bilhar e, no instante seguinte, sentindo-se confusa com Nona à sua frente. Como Nona havia parado ali?

Ela não entrou pelo elevador, Chiyuki teria visto.

— Chiyuki, você está bem?

— Eu não a vi chegar, Nona-san.

Uma risada baixa de Oculus chamou a atenção das duas, ele parecia frustrado o suficiente com alguma coisa e, após observar o taco na mão de Nona, a assistente da Quindecim percebeu que algo não estava no lugar.

Nona percebeu o mesmo quando encarou os olhos de Chiyuki.

— Você está livre das mãos desse velho sujo, Chiyuki — falou a moça mais baixa com um sorriso satisfeito, além de uma pitada de orgulho no semblante e na voz. — Porque eu venci.

Então, de repente, a antiga juíza se virou para o homem que ajeitava seus óculos. Preparada para a próxima rodada, mas pensando no que iria pedir para continuar jogando com ele.

— Para continuar jogando, eu quero uma coisa.

O homem resmungou algo, mas nenhuma das duas havia entendido. Oculus dizia “sempre quer algo, sempre, não faz nada sem motivo”; então, percebeu como era contraditório que dissesse isso de alguém que julgava racional, pois nada racional faria algo sem motivo, menos questionar sua existência.

— O que aconteceu com esse corpo?

Chiyuki questionou, sentindo-se diferente. Era como se aquele fosse o corpo dela, não mais uma marionete que possuía, como sentiu quando percebeu que era humana. Buscou levantar a calça que vestia, para observar seu joelho. Parecia um joelho novo, ela sentia tudo como se fosse novo.

— Agora, ele é seu —  Oculus deu de ombros, encarando a mesa de sinuca e pensando se cederia aos caprichos de Nona, pelo menos, estava se divertindo. — Você passou mais de um mês presa no fluído cosmo que carrego comigo, você agora faz parte da família, ainda que seja completamente humana.

Os olhos dela arregalaram.

Isso significava que ela poderia ficar ali? Na Quindecim, com Decim?

Mesmo que Chiyuki estivesse com seus pensamentos a mil por hora, nenhum dos dois parecia prestar atenção nela e nas suas dúvidas, nas suas vontades. Em nada. Somente no jogo psicológico que travavam quando o velho questionou:

— O que você vai querer, Nona?

— Experimentos — respondeu com concentração. — Quero poder fazer experimentos com os julgamentos de pelo menos dois juízes. Sem que você se meta ou me condene por isso.

Nona poderia ter uma estatura pequena, porém o seu desejo por grandezas não poderia ser ignorado. Oculus ainda tinha uma última pergunta a ser respondida por Nona, ele poderia modificar essa ideia dela, ainda.

Mas teria que prometer que ela poderia tentar como ele estava fazendo naquele exato momento. Era uma escolha difícil. Dois era um número muito pequeno, mas necessário.

— Que tipo de experimento?

Sem que você se meta ou me condene por isso.

Voltou a dizer. Ela não queria contar, logo, era algo que poderia ser particularmente perigoso ou curioso demais para passar pela mente de Oculus. Mas, no final das contas, o velho tinha a esperança que ela desistiria após saber o que era o Vazio.

— Certo, mas tenho uma condição, além de sua vitória.

֫— E qual é essa condição?

A mão dela voltou a cintura, suspeitando dos planos dele.

— Um deles será Decim — disse, sem encarar a expressão que Chiyuki fazia. — Afinal, ele já é o seu experimento e, além disso, Decim terá que, antes de você poder fazer seu experimento, passar por um teste que dê alguma legitimidade para o que você está planejando fazer.

Balançando a trança para o outro lado e sorrindo em resposta, Nona concluiu o acordo:

— Mas eu não pretendia escolher outro.

Não adianta falar sobre o calor do Sol para a
Flor de Lótus que está no lodo. Ela não vai
acreditar. Da mesma forma, não adianta falar
sobre o calor do Sol para a Flor de Lótus que
já está fora d’água, pois ela já está vendo o Sol.
É preciso falar sobre o Sol para a Flor de Lótus
que está no meio do caminho. Isto será um
estímulo para ela continuar sua ascensão
em direção à luz.

 

Outra partida.

A mais difícil até agora, pois embora Nona tivesse vencido com certa facilidade a última rodada, parecia que Oculus finalmente estava empenhado em vencê-la, sem deixá-la prosseguir com seus planos.

Ela mostraria para o velho que não estava errada. Somente faltavam na mesa Venus, Terra e Saturno, as últimas para serem encaçapadas com auxílio do Sol e, enfim, formariam o sistema solar.

Era a vez de Nona.

Bilhar não era um jogo de sorte, mas de precisão e estratégia, por esse motivo, a mulher se sentia tão tranquila ao jogá-lo. Sua racionalidade e precisão estavam não somente em sua mente, mas em seu corpo, visto que a concentração e a força eram suas habilidades.

Se fosse forte demais, poderia quebrar os outros.

Então, ela tinha que se controlar, sempre pensar demais, sempre racionalizar demais, sempre ir além da expectativa – até mesmo para um boneco. Foi por isso que ela chegou onde chegou e se tornou quem se tornou; ela precisou primeiro se adaptar e controlar, para depois evoluir.

No entanto, Nona estava nervosa com o que havia visto em Chiyuki, ela jamais tinha visto algo assim, tão diferente; a humana deixou de ser a exceção da regra, para se tornar literalmente única. Nona observou de soslaio Chiyuki, que os encarava com expectativa – talvez em relação ao jogo –, preocupada com algo.

Estavam empatados. Ela e Oculus, cada um havia encaçapado três. A moça calculou suas chances de fazer algo, porém estava difícil, se ela conseguisse colocar Venus para dentro, não conseguiria as outras duas pelo posicionamento da bola e, então, entregaria o jogo de bandeja para Oculus.

No entanto, não faria nada se não encaçapasse uma e seu adversário teria a oportunidade de fazer o serviço completo enquanto colocava os três planetas para dentro, se conseguisse achar algum jeito. Nona tinha seu orgulho, não gostaria que ele a vencesse com uma diferença tão grande.

Resolveu arriscar, esperando que ele errasse.

Mas ele não errou.

Quando Nona encaçapou a sua e deixou as outras duas livres para Oculus, mesmo que tivesse dificultado um pouco mais ao bater em Saturno – afastando-o ainda mais da possibilidade de conseguir fazer algo com a Terra –, ainda assim o homem conseguiu fazer com que a Terra entrasse primeiro e depois Saturno, em uma jogada brilhante do Sol batendo pelos cantos da mesa.

 Nona devia se sentir honrada, mas estava frustrada com o golpe de mestre que Oculus havia dado. Não tinha jeito, ela teria que deixá-lo falar, tentando manipulá-la com seu jogo de bilhar.

— O que você espera adorando a morte, Nona?

 Nona não adorava a morte, mas dava valor a vida. No entanto, para Oculus: a vida só existia em prol da morte, sem pensar no absoluto oposto. Então, a gerente percebeu a diferença entre os dois, como ocorreria em um conflituoso julgamento: havia alguém certo e outro errado? Por que uma perspectiva anularia a outra?

Enquanto o que ela via era a vida, ele temia a morte.

— O que eu adoro é a vida, Oculus — respondeu, sem hesitar. — O que você vê na vida, como já conversamos, é que a vida só serve para o único propósito da morte. Mas acho que está errado. Eu não vejo dessa forma.

— O que você vê?

— Eu vejo que a morte serve para impulsionar a vida — concluiu com um olhar para Chiyuki. — Nós vimos que ela se matou, certo? Ela, por vivenciar a morte, deu valor a vida e entendeu o que ela representava. A morte serve para dar valor a cada momento vivido e não, o contrário.

O homem encarou a assistente do Quindecim e depois a sua própria empregada, com um suspiro.

— Você continua adorando a morte, porque só os vivos podem viver a morte, como você diz. Mas não é a vida que vivem que é o importante, mas o momento em que morrem e chegam a esse julgamento para ver se, o que viveram, valeu algo, valeu alguma coisa que possa salvá-los. E, no momento em que fazem isso, é que percebem o que seria o correto para eles porque dizemos isso. Às vezes, não notam. A sua perspectiva é muito humana, Nona.

— Por que você não chega onde quer chegar de uma vez?

— Você já foi humana, todos vocês — disse, sem rodeios, fazendo com a boca de Chiyuki abrisse. — Num passado tão longínquo que não existe possibilidade de se recordar disso.

— Eles foram... Humanos?

A gerente já sabia aquela resposta, mas Chiyuki não, por isso a humana se questionava se aquilo era uma brincadeira ou a realidade mais sincera. Encarando as reações de Decim, além dos outros moradores da torre, parecia até óbvio demais que já tivessem sido – como se tivessem esquecido e precisassem ser lembrados.

— Você já disse isso — comentou Nona, apertando o taco em sua mão. — Mas como não lembramos de nada disso? É obra sua, certo? Por que não lembramos de nada antes de sermos bonecos? Isso nos ajudaria a sermos justos! Por que nascemos com essa rejeição tão grande contra... Ah.

Era uma válvula posta por Oculus. Achar a humanidade inferior era a válvula que ele precisava para que não houvesse questões sobre o julgamento, afinal, ninguém queria ser idiota como os humanos. Ele usava o orgulho humano que se mantinha, o resquício, para isso.

— Eu achei que tinha deixado isso óbvio na minha primeira questão, mas vejo que talvez isso não tenha acontecido — Suspirou o velho. — O Vazio é de onde vocês são tirados quando se tornam parte do todo, Nona. Vocês não têm sensações humanas fortes e intensas o suficiente porque sofreram por anos até que esquecessem o seu existir, da vida e da morte. Vocês receberam tudo, não questionam o nada, porque vocês se tornaram nada, incapazes de Reencarnar e mandados para o Vazio. Coletados assim que houve a necessidade. É isso que vocês são: humanos que falharam em viver. E, por isso, vocês não devem conhecer a vida e a morte, porque vão falhar de novo.

Nona encarava o chão, aturdida por não ter percebido o óbvio. Humanos mudavam, cresciam, entendiam; bonecos, não. Oculus tinha dito isso, justamente porque sabia o resultado daquilo.

O fracasso.

Nona se sentiu estúpida: como julgou por tantos anos pessoas que viveram plenamente enquanto ela foi incapaz?

— Você está errado — falou Chiyuki, interrompendo os pensamentos de Nona e a fala de Oculus, que a encarava com o semblante curioso. — Eles não são falhas! Nenhum deles! Veja Nona! Ela está questionando você, aquele que parece saber tudo. Mas, se sabe tudo, por que ela o questiona? Isso é tão humano! Não é porque algum juiz idiota disse a Nona que ela era incapaz que ela realmente seja, você nunca vai saber se tentar! Decim... Decim é alguém que com certeza aproveitaria o máximo da vida e não falharia só porque alguém resolveu dizer isso para ele!

— Chiyuki...

— Cair, levantar! Isso faz parte, não é? Isso faz parte de ser quem somos, humanos. Podemos não ser completamente racionais, mas nós somos aqueles que fazem aquilo que sentem, que escolhem e que precisam. Não é isso que importa? Não é isso que é viver? Nona... Nona está aqui para mudar, para fazer coisas sem sua permissão: por que ela faria isso se não está tentando de novo? Tentando fazer o que ela quer? — gritou, irritada. — Não os trate como suas marionetes como nos trata com seus joguinhos!

Chiyuki percebeu que seu corpo estava cansado, sua voz parecia mais fraca e sua raiva transbordava. A assistente do Quindecim não tinha ficado dessa maneira quando Decim usou suas memórias contra ela, por que estava assim agora quando falavam que Decim era uma falha como pessoa?

— Parece que ela respondeu por mim.

Oculus deixou de olhar a humana para encarar uma de suas criações. Nona sorria com serenidade e satisfação – ele poderia perceber isso facilmente. A humana tinha muito que aprender, mas havia encontrado uma brecha não somente na alma de Decim, como também na de Nona.

— Bom, isso não muda o fato que eu ganhei — respondeu, desviando do assunto. — Estou começando a ficar cansado de jogar, então, se vocês duas puderem me dar licença....

— Nós não acabamos.

A mulher mais baixa estava em sua frente com – o que se chamaria – determinação. Nona não o convenceria a continuar jogando, deixar que ganhe e fazer seus experimentos...

Não sem fazer com que ele jogue, claro.

— Parece que eu já fiz você pensar, isso é o suficiente para mim — Oculus deu de ombros e ajeitou seus óculos. — Ou você tem algo a me oferecer para que eu continue jogando com você?

Nona engoliu em seco.

Bonecos nunca mentiam, mesmo que fizessem, as palavras que saíram de sua boca eram uma aposta honesta. Ela precisava dar o próximo passo e, sem a ajuda – ou pelo menos, desajuda – de Oculus, seria impossível.

— Eu tenho — Apoiou o taco com mais força no chão, batendo-o uma vez. — Eu desisto de todos os meus planos e, em troca, faremos o que você combinou comigo: experimentos.

Oculus sorriu.

Ele ainda podia fazê-la desistir.


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