Yume escrita por Zatanna


Capítulo 3
Parte II: Regra II




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Segundo: Juízes não podem experienciar a
morte, porque isso poderia aproximá-los
demais da humanidade.

 

As memórias não sumiram. Aliás, as memórias o alimentavam como se fosse um humano preso entre o desejo e a recordação, em um estado de transe da sonolência que pode recordar o que fez e todas as diferentes respostas que poderia ter dado.

Poderia ter dito. Poderia ter sido capaz.

Mas não foi.

Havia perdido a noção de tempo, o que não era incomum acontecer em Quindecim quando estava sozinho. Automaticamente, seu corpo buscava por seu passatempo, bem específico – por receio de esquecer tudo que viveu, muito embora tudo dela fosse vivo demais, presente demais para ser esquecido.

A presença dela não eram memórias coletadas, mas consistência, persistência crescente. Nem o tempo mancharia ou levaria aquelas preciosas memórias, estariam imaculadas enquanto Decim permanecesse como Decim, como parte daquele coletivo de juízes e como ele, na sua dor e sofrimento próprios. Que nenhum outro compreenderia, mas poderia tentar.

Como o bartender fez com sua assistente.

Porque ele experimentou a dor de morrer. Ele experienciou a morte dela. O vazio que ela sentia.

A ida dela era como a morte, porque se sentia vazio.

Nesse processo, ele aprendeu, graças a Chiyuki, que não era só uma parte daquele sistema criado para julgar os humanos, o barman também entendeu que era alguém vivo e que estava preso num presente eterno.

Ele só queria que seu presente tivesse algo a mais.

No entanto, não havia retorno momentâneo a partir dos desejos dos homens e nem dos bonecos. Decim encarou sua última obra, a peça que complementaria e o faria continuar sorrindo: um manequim vestido de Chiyuki ao lado do balcão.

Aquilo aterrorizou mais os clientes que chegavam ao Quindecim do que os acalmava, porém aplacava os males da alma que Decim carregava consigo, se assim tivesse uma. Ele não tinha certeza que existia, mas sentia.

Talvez estivesse lá.

Isso o fazia sorrir, a experiência de conhecer a morte, pois, dessa maneira, desejou que seus clientes se sentissem confortáveis. Ainda que nas partidas, isso parecesse, certas vezes, impossível. 

Alguns clientes eram mais dispostos, alguns outros eram menos favoráveis. Ele tinha favoritos, às vezes, mas isso poderia mudar enquanto jogavam. Contudo, foi nesse percurso de tempo – ele particularmente não se limitava em saber – que Nona apareceu na Quindecim, com um sorriso satisfeito. Satisfeita pela linha de raciocínio nova usada pelo barman, ainda perdido em seus julgamentos, embora se sentisse mais justo.

Se os bonecos não tinham sentimentos, não sentiam emoções, como Nona parecia satisfeita? Se os bonecos não tinham sentimentos, não sentiam emoções, como Decim viu Ginti frustrado e irritado pela falta de Memine? Se os bonecos não tinham sentimentos, não sentiam emoções, por que Clavis tentava animar Decim e Ginti e murchava a expressão quando não tinha sucesso? Se os bonecos não tinham sentimentos, por que ele seguia seu trabalho conflituoso em cada caso, feliz com cada sucesso e esperançoso em poder ver Chiyuki outra vez?

Ele podia sonhar com isso.

O que começou a acontecer, quando, sem perceber, dormiu embriagado pela primeira vez, após beber uma garrafa inteira de whisky e se deitar nas acomodações preparadas para Chiyuki, que nem sequer havia mexido desde então.

Foi no segundo que seus olhos fecharam.

Sonhos não passam de memórias ministradas com desejos. Sonhos podem ser as memórias do futuro, os acontecimentos do passado, os singelos olhares para míseros objetos. Sonhos podem ser a personificação dos desejos, dos receios e das necessidades. Sonhos podem ser o passado, presente e futuro, ou a mera imaginação. Os sonhos são tudo que os humanos possuem, porque possuem emoções o suficiente para nutri-los.

Bonecos não deveriam sonhar. Mas por que Decim acordou em um lugar coberto por gelo? O chão era uma pista de patinação, ele estava com suas vestes habituais, porém seus sapatos haviam sido trocados por patins de gelo.

O barman encarou a sua volta, esperando entender o que acontecia. No entanto, parou de procurar quando seus olhos arregalados a viram, outra vez, patinando próxima de si o suficiente para esticar a mão e alcançá-la. O sorriso nos lábios e a beleza estampada em cada gesto, em cada expressão de contentamento.

Mais uma vez, Decim era Jimmy. Ele não sabia o que dizer, nem sabia se poderia ser ouvido. Contudo, dessa vez, ele queria dizer, ele queria dizer mais, embora não se importasse de continuar mostrando.

O barman sorriu para sua assistente, um sorriso tão honesto e profundo que fez com que o peito dele doesse. Ainda enfeitiçado pelo balé, o homem-boneco não percebeu que finalmente havia sido notado. Agora, os olhos cor de violeta o miravam como se fosse somente para ele.

Tudo somente para ele.

E ele não era o único telespectador?

O sorriso de Chiyuki se alargou e, momentaneamente, a mente de Decim vagou para a despedida. Para o mais largo sorriso. Sem perceber, deu passadas no gelo escorregadio, não vacilando em nenhum passo.

Ela segurou sua mão e a entrelaçou entre seus dedos. O sorriso continuava presente, fascinando-o e, sem perceber, Decim fez o primeiro movimento para mexê-la sobre o gelo, puxando-a com sua mão.

— Eu quero dançar com você, Decim-san.

Sem respondê-la, empurrou-a para longe com um movimento de mão, sem soltá-la. Mesmo que nunca tivesse feito aquilo antes, sentia-se como um excelente parceiro, tinha certeza que poderia dar a ela o que precisava para dançar. Ele havia feito isso com os julgamentos, melhorado a si mesmo para dar a todos algo justo, principalmente, a Chiyuki. Ele fez isso com seu sorriso, esperando que voltasse.

Sua assistente voltou, segurando-o pelo ombro e vagando a mão até a nuca masculina. As mãos de Decim já estavam na cintura dela, movendo-se o suficiente para não a soltar, não a deixar ir mais uma vez.

A testa feminina escorou-se a sua e o barman percebeu que estava inclinado, como o anterior cliente havia feito com a mulher que amava, antes dela matá-lo. Sentiu um ar quente na temperatura gelada do local, um hálito quente que alcançava seus lábios.

Tão quente que um beijo aconteceu. Ninguém saberia quem havia iniciado, mas ele tinha um gosto peculiar.

Ele tinha gosto de lágrimas. Lágrimas de saudade.    

Perder sua memória, pode ser uma segunda
chance. Escute a empolgação de seu coração,
mais uma vez.

 

Decim não imaginava e nem poderia supor que estava sendo observado, naquele turbilhão de pensamentos que rondavam sua mente, buscando entender o porquê de ter dormido naquela cama e, principalmente, sonhado.

Bonecos não sonham porque não possuem desejos, nem frustrações e nem ambições. Como poderia o barman da Quindecim sonhar? Ele levantou, colocando a mão na cabeça para ver se algo em sua mente lhe auxiliava, se aquela dor latejante na cabeça passava. Recordava-se ainda das memórias vívidas do alcoólatra que buscava as respostas na bebida, isso fez com que Decim olhasse para a garrafa vazia em sua mão.

Será que, ao ganhar certa humanidade, o juiz tinha recebido mais do que memórias dos participantes dos jogos? Será que, ao se aproximar tanto dos humanos e de seus sentimentos, Decim ganhava trejeitos ou pensamentos que invadiam seus hábitos? Poderia ser.

Ele não sabia. Contudo, para sua surpresa, Nona estava na porta, rindo em um sussurro de alguma piada que só a mulher baixa sabia. Os cabelos trançados, como de costume, iam de um lado para o outro enquanto ela balançava a cabeça. Sua chefe ria e sorria como alguém satisfeito.

— Nona-san, em que posso auxiliá-la?

Decim, por ser de seu feitio, levantou-se da cama para fazer uma pequena reverência a partir da solicitação. Contudo, seus objetivos não saíram como planejados, seu corpo escorregou antes mesmo de se levantar completamente e o homem permaneceu sentado, esperando aquilo passar. 

— Você parece tonto, Decim.

— Peço desculpas pelo meu comportamento, Nona-san.

A moça apenas balançou a cabeça, renegando qualquer ressentimento. Nona tinha um motivo para estar ali e, ao observar seu menino, como foi chamado por Quin e por Castra, percebeu que algo estava completamente diferente: havia algo de errado – ou certo – com as reações de Decim.

— Decim, há algo que você precise me contar?

Nona sabia que almas humanas não poderiam permanecer por ali, tanto quanto tinha certeza que Chiyuki não havia passado nem para o Vazio e nem para a Reencarnação, muito embora soubesse que Decim havia feito seu julgamento no primeiro andar, numa das piores e mais extremas situações.

— Que tipo de informação, Nona-san?

— Onde está a humana, por exemplo — perguntou-o, sem realmente perguntar. Ela sabia o nome de Chiyuki, mas preferia saber se Decim ainda se lembrava de estar com ela, de seu nome, de todos os detalhes.

Ela desejava saber se as mudanças seriam permanentes, ela desejava saber onde Decim escondeu a alma de Chiyuki por apego, por emoção e por razões totalmente mundanas.

— Chiyuki-san foi mandada para a Reencarnação, desde depois de eu fazer o julgamento dela — disse, levantando-se e mantendo o máximo de compostura que podia. Reto. Elegante. Em pé. — Algo errado, Nona-san?

A pequena mulher arregalou os olhos, encarando o vazio atrás de Decim. Aos seus olhos e de todos os presentes na torre, nenhum boneco poderia esconder a verdade, principalmente, dela. Mesmo que tentassem mentir, Nona tinha oitenta e cinco anos como juíza e de experiência em conduzir mentiras, respostas por causa dos humanos. Criaturas mais simplórias de emoções como os bonecos, mesmo que um híbrido, não modificaria os resultados de suas certezas.

Algo estava definitivamente errado.

Recordou-se que ela e Oculus assistiram quando Chiyuki havia sido julgada, as reações de Decim. Ela mesma havia dito para Oculus, e ainda concordava com isso, que humanos não poderiam conduzir julgamentos, mas seres desprovidos de qualquer emoção também eram incapazes.

Tão incapazes que Nona se aprimorou e, sozinha, conseguiu criar consciência própria, emoções e rebelou-se, graciosamente, contra aquele sistema fraco em que os simplórios e emocionais humanos eram errados e eles, com uma racionalidade mais apurada, eram capazes de compreendê-los.

Não era porque eram fáceis de entender que era justo o julgamento que faziam, isso era tão óbvio na mente de Nona que se surpreendia quando Oculus não a compreendia. No entanto, naquele momento, somente uma ideia passava por sua mente.

— Eu preciso ir, continue com sua rotina.

A chefe do bartender virou as costas, sem poder ver o olhar intrigado e preocupado que ele a direcionava. Por que, depois de tanto tempo, Nona perguntava sobre Chiyuki? Ela não estava feliz em sua nova vida depois de reencarnada em uma nova família? Ele gostaria de vê-la, vê-la criança e depois crescendo – tendo uma vida plena.

Um suspiro partiu dos seus lábios e, por um momento, surpreendeu-se com sua demonstração de angústia. Decim piscou os olhos, ainda confuso e encarando a porta que Nona havia passado, logo em seguida, encarou o ambiente que estava.

Em nenhum momento, o barman havia pensado em olhar o que havia sobrado de Chiyuki, nem as roupas, nem qualquer fio ou centelha de esperança de que ela voltaria a fazer-lhe companhia um dia. No entanto, um objeto peculiar chamou sua atenção, um livro que continha em sua capa a mesma menina que enfeitava a sua roleta para a escolha dos jogos.

Chavvot; entre todas as memórias de jogadores, Decim sabia que as dela permaneceriam consigo, pois não somente as experimentou em parcos minutos, mas as vivenciou mesmo sem estar presente. Para os humanos, perder as memórias e viver uma nova vida era uma segunda chance, mas não para o bartender.

Perder aquelas memórias, seria perder a empolgação que seu coração pulsava e, consequentemente, o entendimento de que vivia o presente. Era perder a empolgação, ao mesmo tempo que a frustração, o desejo, o indesejado, o amor, o ódio. Era perder tudo o que havia conquistado.

Era perder o sentimento que sentia por ela.


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