Desabafos escrita por Yurie


Capítulo 12
Incômodo




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[https://www.youtube.com/watch?v=8hP6WROycAU]

"Quem se importa? Quando mais uma luz se apaga?"

...

Meu professor morreu hoje. 

O Rogério, de Química Orgânica. 

Puta cara foda. Manjava pra caralho de química, física, biologia e até linguística. Falava um bilhão de idiomas (menos grego) e vinha de uma cidade muito estranha chamada Cirilândia. 

O Rogério era simplesmente incrível. 

É estranho. Falar dele no passado. Como se ele não fosse mais nada além de uma pilha de ossos, pele, músculos e órgãos. Um amontoado de tecidos; de células mortas que vão aos poucos se decompondo e que não significam mais nada. 

Que não são mais nada. 

Mas não vim aqui falar do Rogério. Não vim aqui descrever suas aulas, comentar de seu sotaque ou reclamar de suas provas. Não vim aqui prestar uma homenagem à sua memória porque, convenhamos, não estou nem de perto à altura dessa tarefa. 

Não. Definitivamente não. 

Não posso falar de sua vida. Vim aqui falar de sua morte. 

De como o coordenador interrompeu a aula de Filosofia com um olhar tenso e olhos avermelhados. De como todo mundo começou a cobrar as provas de Química. De como ele nos calou com um olhar muito sério. 

De como a gente ficou em silêncio, mas não houve silêncio. 

De como a gente simplesmente voltou a fazer exercício e a rir, momentos depois. Como se não fosse nada. 

De como a gente não fez nada

Nenhuma palavra bonita. Nenhum momento de silêncio. Nenhuma pausa nas aulas. Nada. 

Isso não é certo. 

Quando uma pessoa boa morre, alguma coisa deveria acontecer. Alguém deveria se incomodar. As rotinas não deveriam simplesmente continuar indo como se estivesse tudo bem. 

Porque não tá tudo bem. 

Eu... Eu comecei a rascunhar esse Desabafo na aula de geografia, porque eu não podia me importar menos com a formação geológica do território brasileiro. 

Como alguém poderia? 

Não sei o que pensar. Não sei o que sentir. Acho que é a primeira vez que fico com essa sensação, de não saber o que passar para o papel. 

Ao mesmo tempo em que sinto tudo, não sinto nada. 

A vida é engraçada, né? Passamos o tempo inteiro nos sentindo imortais, e sentindo que as pessoas próximas a nós são imortais, porque não poderíamos perder ninguém. 

Então alguém que a gente conhece se machuca, e a gente acha que vai ficar tudo bem, porque não poderia ser diferente. A gente não poderia perder ninguém. Não é? 

Até que essa pessoa morre. E deixa esse vazio. 

Na cama. No quarto de hospital. Na sala de aula. 

Na grade de aulas. 

Esse incômodo. 

Essa sensação de que tem alguma coisa muito errada. Muito fora do lugar. E a gente tenta arrumar, mas não tem como. 

É um vazio. Porque a peça que costumava estar ali não está mais. 

E não é justo. Não é nem um pouco justo. 

Mas a vida não foi feita para ser justa. 

Me incomoda que ele não tenha tido um minuto que fosse de silêncio. Me incomoda que eu não possa ir no velório dele, hoje. Me incomoda que não houve um fim. Não houve um adeus

Nunca há um adeus, eu acho. 

Mas ele merecia um. 

Ele merecia saber que suas aulas eram incríveis. Merecia saber que suas provas eram boas. Que eu adorava seu sotaque. Que ele me ensinou quase toda a Química que eu sei. Que se eu passar no vestibular, será graças a ele. 

Não. Nunca mais. 

Mas a vida segue, não é? E a gente se preocupa com outras coisas. 

Com o conto que tem que ler pra amanhã. 

Com a apresentação que vale nota. 

Com a prova que ele nunca corrigiu. 

Com a Olimpíada de História. 

Com a redação que é para sexta. 

E segue. E ignora. E aprende a esquecer. 

Esquece a aula. 

Esquece o vazio. 

Esquece o incômodo. 

[em honra e memória do professor Rogério, cujo sobrenome nunca me preocupei em saber, pois achei que estaria sempre ali]

...

"Bem, eu me importo."


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