Kanjiru escrita por Zatanna


Capítulo 1
Capítulo Único — Contemplar


Notas iniciais do capítulo

Essa história foi feita para Jace Jane.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/745552/chapter/1

Aos mortos, um bom descanso.
Aos shinigamis, um trabalho eterno.

 

Há muito entre a vida e a morte, um meandro que poucos são capazes de experimentar. Ou querem. Ou podem. Esse fio é tão fino quanto o akai ito[1], mas sua força é tão esplendorosa que, quando surge diante de você, não há escapatória.

Eu nasci, tanto como humano quanto shinigami, no período conhecido pela história mundana como Heian. Nós usávamos roupas tradicionais e nossos modos eram simples, ainda mais se você era somente um camponês que frequentava templos ou fornecia serviços simplórios para os homens mais ricos e poderosos que você.

No entanto, como em toda a história da humanidade, pensar era muito perigoso. Tão perigoso que colocava a sua vida e a de seus preciosos familiares em risco, tendo ou não tendo posses para sustentar esse pequeno vício. É um vício que começa devagar e você não precisava saber ler ou escrever para isso, embora, nos dias de hoje, isso pareça fundamental.

Às vezes, você escuta um sussurro e imagina se é o que está pensando. Depois, você percebe que sua mente está se movendo mais rápido do que seu corpo e os dias de ignorar os crimes dos outros se perderam, você questiona. Os dias de se calar vão sumindo – mas a sabedoria não vem com a inteligência, pois saber calar-se é fundamental e poucos intelectuais souberam o momento certo para isso.

Você anseia por ouvir mais, entender mais a natureza dos homens. Até que alguém lhe nota. Alguém importante. Konoe Motozane[2] foi o homem a me perceber, quando eu entregava vegetais e me gabava de meus novos conhecimentos filosóficos sobre Confúcio ao cozinheiro chefe, coisa que ouvi em lugares muito escusos. Naquela época, era um jovenzinho de nove anos.

A progressão de Motozane, embora me seja negado ser parte da história mundana, começou por causa de seu pai, mas foi tão gloriosa por minha relação com o pequeno. Ele me cercava para conversar sobre a natureza, filosofia de vida, coisas que dentro de o esplendor de sua casa não eram apreciados, inclusive, eram-lhe negados. Na época, minha arrogância intelectual – que via o mundo, embora ele não me visse – fizera com que eu falasse demais, pensasse demais na frente de alguém que, em poucos anos, seria kampaku[3].

Konoe Motozone me ouvia. Eu não me gabava tanto por isso, mas, em alguns momentos, eu falava demais, pensava demais e estava em um limite que não me era permitido. O jovem me ensinou a arte da escrita enquanto, em contrapartida, eu lhe ensinei sobre o mundo, as pessoas e, juntos, fizemos poesia.

Não esquecerei do seu nome gravado na história pela waka[4] que me pertencia, contudo, nos dias de hoje, isso não me importa tanto quanto já importou. Naquela época, nenhum de nós imaginava a importância da arte que criávamos, somente fazíamos jogos com as coisas do mundo e ele nos brindava de volta com a sua beleza ou com a sua desgraça.

Contudo, os momentos de alegria singela foram rompidos quando a morte premeditada chegou até mim. Entre todas as minhas memórias, as mais esquecidas e as mais memoráveis, somente uma permaneceu com força: o momento de minha morte.

Nenhum de nós é capaz de esquecer tal momento, ainda mais se a brutalidade emparelha bem ao lado. Lembro-me, devo ressaltar que vagamente, Konoe Motozane havia sido excomungado pelo clero Kofuku-ji[5]. Lembro também que havia uma desculpa bem ondulada na época, mas não me recordo qual era. Lembro-me de aconselhá-lo a tomar decisões mais sábias.

Contudo, embora pudesse parecer, não havia sido essa ideia dele que havia me matado ou nesse momento que as ideias dele tinham nos matado, mas o fato de querer se aliar a ninguém menos do que Taira no Kiyomori, um homem que media os passos com a morte das pessoas.

Taira no Kiyomori era o tipo de homem que fazia tudo por poder. Ele não se importava com bens materiais e nem mesmo com seus filhos, menos ainda com os filhos dos demais homens. Se a situação pedisse, ele manipularia cada um dos indivíduos a sua volta.

Ele manipulou o meu jovem aprendiz de mundo, que não se recordou dos meus conselhos quando se permitiu ser engolido pela víbora que o envenenou aos poucos. Às vezes, penso ser minha culpa – talvez se eu tivesse ensinado melhor sobre as maldades do mundo, ele não teria sido enganado tão fácil.

Há momentos em que o silêncio fala mais que palavras e o sábio deve saber o momento em que suas palavras não serão úteis; eu sabia – naquela idade – sobre isso. Entretanto, eu confiava na inteligência da criança que, antes que eu notasse, havia se tornado homem.

Ele me contou dos planos de Taira no Kiyomori sobre o casamento com Moriko, a filha querida do malévolo homem. Recordo-me de sua expressão contente, recordo-me de sua fala mansa e felicidade genuína por ser tão querido por Taira no Kiyomori. Então, contrariando todas as expectativas do meu aprendiz, sussurrei-lhe as palavras que jamais quisera ouvir e que eu, se quisesse viver, jamais deveria ter pronunciado:

Ele está usando você. Você é o passaporte para as terras Fujiwara.

O seu espanto foi evidente e sua mágoa ainda maior. Ao invés de pensar e questionar minhas palavras, colocando a medida certa em cada lado da balança, Konoe Motozane fez exatamente o oposto e contou de minhas desconfianças ao homem que jurava lhe ser mais fiel.

Mais fiel que eu, o homem que fez com que seu nome fosse marcado na história e que nada ganhou durante toda aquele tempo de vida além de conversas banais. Não havia ganhos para mim, pois continuei o mesmo homem que entregava vegetais, durante toda a minha vida.

Eu me sentia arrependido, a maior parte do tempo.

Eu voltava de uma de minhas entregas quando eles me cercaram. Homens vestidos de preto da cabeça aos pés, uns portavam naginatas[6] e outros portavam tantos[7], eles não se importavam com quem eu era ou o porquê. Eles simplesmente executavam ordens, sem pensar ou raciociná-las.

Não houve piedade, somente dor. Eu recebi as lâminas como se fosse os vegetais que já não estavam comigo, senti chutes na boca do meu estômago, mas era a menor das dores. Diversas lesões, nenhuma solução.

Até que um homem apareceu. Suas vestes eram muito estranhas para mim, como humano, colocavam-se ao corpo e pareciam ser partes distintas, uma de cima e outra debaixo. Toda a vestimenta parecia ser preta, porém, uma pequena parte tinha um tom esbranquiçado. Naquela época, eu nem sequer imaginava a existência de um terno – essa foi a primeira experiência fascinante pós-morte.

Shinigamis vivem fora do tempo, não há uma relação entre as almas escolhidas com a medida de todas as coisas. O tempo não nos afeta porque fazemos com que ele siga o seu curso, influenciando-o a seguir em frente. Como favor, ele retribui não se envolvendo com nossos problemas.

Nós somos cientes. Passado, presente e futuro. Nós não nos importamos com aparência, usando, entre todas as vestimentas universais, a mais clássica e prática. Eu só não sabia disso na época.

O homem que me trouxe o alívio da morte era oriental também, suas feições eram muito marcadas e expressavam absolutamente nada. Contudo, ao contrário de toda a simplicidade e vulgaridade, os olhos eram muito distintos do comum. Não eram negros ou castanhos, mas um tom esverdeado tão claro e tão vivo que pensei que a vida pós-morte era a verdadeira vivência.

Eu não estava enganado, de todo.

— Você está pronto para morrer? — questionou-me com um sorriso singelo.

Eu quis dizer que sim, mas meu corpo fatigado ainda me prendia nas amarras daquele lugar mundano. Eu queria tantas coisas antes de morrer, eu pensava que o fio da vida, ao findar, já não trazia mais nada.

Contudo, aqueles olhos me deram uma nova perspectiva. Não diziam nada, porém a vivacidade de cores parecia dizer muito mais do que qualquer outra coisa. Embora eu quisesse dizer que eu estava certo, em verdade, era um dos muitos erros que cometi.

Ser shinigami não é viver, mas o oposto a isso. Esse oposto fere a alma de tal forma que, ao encontrarmos com homens moribundos, somente desejamos o seu fim. O seu fim primário, pois a vida pós-morte tem muitos fins.

Ele apontou uma arma em minha direção, na época, eu não consideraria uma faca tão miúda como uma arma. Contudo, não me importei, pois tiraria o peso de minhas costas. Talvez, fosse a imaginação me pregando uma peça— lembro-me de pensar.

Ao cortar minha jugular, senti minha vida tocar minha alma. Cada pedaço dela passou por mim. Eu jamais tinha visto algo como aquilo, um rolo negro que escapava de mim, mostrando-me tantas cenas que senti o mundo escapar por meus dedos e voltar. Minhas memórias foram coletadas pelo homem que parecia tê-las guardado em seu bolso direito. 

 Assim que completou seu trabalho, o homem de roupas estranhas observou uma pequena caderneta enquanto coçava o queixo. Ele parecia muito pensativo a respeito do que fazer comigo. Eu, por minha vez, encarava meu corpo cortado e ensanguentado no chão.

— Você gostaria de fazer uma admissão para shinigami? Sua alma parece compatível a isso.

A única palavra que se prendeu a minha mente fora shinigami. Eu não havia entendido como eu, um reles humano, poderia ser um deus da morte. Encarei o outro indivíduo por um tempo, ele ainda me encarava como se esperasse minha resposta.

— Minha vida...

— Acabou. Não há mais nada aqui: não há vinganças e nem esperanças. Pelo que eu vi, você deveria querer uma vingança ou outra. Mas, caso queira se tornar um shinigami, esqueça tudo isso.

Eu quis esquecer. As minhas memórias estavam confusas e um tanto perdidas, mas as mais marcantes eram doloridas. Eu nunca me casei, dediquei minha vida ao estudo e, aquela parte, permanecera comigo.

— Eu... Sim.

Ele acenou de lado, como se fosse a resposta mais óbvia a se ouvir. Desse momento em diante, recebi muitas informações – rápidas e entrecortadas – sobre como ser um bom deus da morte, as provas de admissão e tudo que era necessário para cumprir meu ofício. Senshou me ensinou e recomendou muitas coisas em muito pouco tempo e eu estava pronto para seguir aquele caminho.

Dessa vez, eu não pensei em falhar.

Meu passado, aos poucos, foi desaparecendo, somente as memórias mais profundas – que marcaram minha alma – preencheram meu vazio. Todo shinigami é vazio, suas memórias ficam perdidas dentro da central e os resquícios que vagam conosco é que movem nossas personalidades. Alguns de nós conseguem manter mais informações; outros, nem tanto.

Eu me mantive com pouco, mas o suficiente para reconhecer meu antigo aprendiz e o meu assassino. Dar-lhes a morte foi o suficiente para mim, embora isso não aconteça com todos.

Há aqueles que se aposentam, que se cansam de ceifar almas – como Senshou. Eu, por outro lado, permaneço sendo, pois, o mais doce da vida não é viver, mas o momento em que a luz deixa os olhos e os rolos de filme se desenrolam. Viver não necessariamente precisa ser estar, pode ser simplesmente contemplar.

Eu contemplo a vida cada dia, não vivendo nem um pouco.

 

 

Notas: 

[1] “Fio vermelho do destino”, é uma lenda com origem chinesa que diz que dois amantes estão ligados por um fio vermelho. Não importa o tempo, lugar ou circunstância que as leve ficarem juntas. Esse fio pode esticar ou emaranhar-se, mas nunca irá partir. 

[2] Ele realmente existiu, Konoe Motozane é um dos trinta e seis imortais da poesia japonesa. Viveu no período Heidan entre 1143 até 1166. 

[3] Kampaku é uma espécie de conselheiro-chefe do imperador, mas esse título era designado ao primeiro secretário e ao regente. No caso de Konoe Motozane, ele era regente.

[4] Tradução: poesia.

[5] Templo budista da cidade de Nara. Na verdade, ele foi excomungado por se negar a apoiar uma reivindicação do templo contra a seita Tendai, do Eryaku-ji.

[6] Uma lâmina japonesa montada em uma haste longa com uma lâmina curva de um gume montada em sua extremidade.

[7] Uma espada tradicionalmente japonesa, mais curta do que as espadas normais, assemelhando-se a uma faca curva, porém bem maior.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Kanjiru" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.