Defying Gravity escrita por Senhorita Nada


Capítulo 1
Fading Light


Notas iniciais do capítulo

Dessa vez, estou postando a oneshot gigante em três partes para facilitar a leitura. De nada, tabeleiros x2

Particularmente, eu escrevi essa fic ouvindo a OST de Pacific Rim, e recomendo o mesmo para a leitura. Creio que fica mais dinâmico. :3

De qualquer forma, fiquem com o capítulo!



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O chão sob seus pés era instável, macio como uma nuvem que ameaçava engoli-lo a cada passo. Seu avanço era lento, cuidadoso, um pé atrás do outro, os olhos fixos na lama avermelhada traiçoeira, os ouvidos atentos aos arredores. Não havia vento ou sons que não as batidas de seu coração, a respiração ritmada e a sucção de suas botas quando as puxava para o novo passo. O próprio ar ao redor era denso e viciado, escuro como uma névoa baixa, um filtro de sombra sobre as cores do mundo.

 

Midoriya agradecia pela proteção de seu traje de exploração. Não se sabia ao certo como se dava a infecção ainda, mas ele não queria correr o risco de respirar aquela poeira de qualquer forma. Ele se forçava a respirar devagar e ritmado, não puxando mais oxigênio do tanque do que deveria, apesar de sua crescente inquietação com o ambiente e o silêncio a seu redor. Nunca era bom para Izuku ficar muito tempo sozinho com seus pensamentos - invariavelmente o fazia lembrar de coisas ruins. Ele se manteve focado, de olho na estrada e nos arredores. Nunca se sabia onde um deles poderia estar escondido, ainda mais com aquele clima.

 

Mais a frente, cinco minutos de caminhada pelos seus cálculos, e ele chegaria aos subúrbios da cidade. Hosu se não se enganava. Antes da infecção, tinha sido uma das maiores cidades de Titania. O planeta em si não era muito povoado, a população focada em grandes cidades e bolsões ao redor das minas de material precioso. Essas características eram ruins para pessoas como Midoriya - tornavam o caminho mais tortuoso, e o perigo de dar de cara com um número grande de infectados pior ainda.

 

Ele ainda podia distinguir as silhuetas de casas, prédios e ruas apesar da iluminação baixa e das mudanças visíveis. Vidro quebrado e restos de metal e plástico corroídos salpicavam o asfalto quando ele finalmente chegou à rua, junto de objetos deixados para trás pelos antigos ocupantes - sapatos, caixas, eletrônicos, bolsas, brinquedos. A maior parte das construções estava de pé, se desgastadas, com as paredes intactas cobertas de hera escura como piche, grandes folhas oleosas que brilhavam parcamente à luz de seu capacete.  De outras, especialmente da soleira de portas, pingava uma substância viscosa, gotas preguiçosas caindo com um estalido que se tornava um sibilo ao evaporarem imediatamente no contato ao chão.

 

Muitos pontos cegos aqui. Um bom lugar para uma emboscada. Midoriya engoliu em seco a apreensão, a língua passando por sobre os lábios ressecados. Desde que um dos melhores esquadrões, o liderado por Shimura, sumira há alguns meses, a apreensão quanto a expor seus colegas a esse perigo apenas aumentava. Se dividir não seria uma boa ideia, o garoto dissera durante a reunião, mas o comando queria mapas atualizados do crescimento da infecção e eles cobririam muito mais terreno separados do que em grupo. Não eram eles que teriam que ficar sem apoio numa zona de guerra, então não se importaram.

 

E tem os que preferem assim. Como Kacchan… Pensar em Katsuki agora fazia seu coração palpitar dolorosamente. Ele inspirou fundo, contando até quatro, até que se acalmasse. Tinha que seguir em frente, e um lugar daqueles precisava de toda a sua atenção. Não era hora de ficar se digladiando com culpas.

 

Izuku se aproximou de uma das casas, atraído pela poça em quase ebulição que se acumulava nos degraus da porta de entrada. Mais ainda da substância se derramava por sob a porta, uma pequena cachoeira vagarosa que parecia vermelha como ferrugem sob sua lanterna, e ele se perguntou o que exatamente causaria isso. Um vetor da infecção? Mas eu nunca vi isso antes. Nem mesmo em Saggita.

 

Seu braço tremia quando estendeu a mão, recolhendo algumas pequenas gotas antes de se afastar novamente. O líquido girou na palma de sua luva, pesado e quente,  em círculos cada vez mais rápidos, e a seus olhos hiper-alertas era como se procurasse uma fraqueza no material a fim de entrar em seu traje. Izuku sentiu um arrepio passar por sua coluna, o tremor pronunciado em seus dedos derrubando o líquido que se desfez em nuvens finas de vapor ao tocar o chão.

 

D-droga. Como vou recolher uma amostra…?

 

“Midoriya.” A voz de Todoroki veio por seu comunicador, quebrando o silêncio e fazendo Izuku conter um ganido, subitamente atingido pela sensação de que seu espírito ameaçara fugir do corpo pelo susto. “Achou alguma coisa?”

 

“Não exatamente.” Ele admitiu, depois de conseguir se recompor o suficiente para falar. Sua voz lhe soava estranha dentro do traje, ecoando e ao mesmo tempo abafada por dentro do capacete. “Estou no portão sul de Hosu, mas não acho que tenha sobrado alguém, mesmo infectado. Está muito quieto… Me pergunto se os infectados saíram daqui. A gente tem registro de migrações, mas nunca em larga escala assim-”

 

“Estou no lado leste. Encontrei alguns deles, um grupo pequeno, mas já os despachei. Afora isso, nada de útil.” A palavra despachar suscitou na mente de Izuku a vívida imagem de Shouto cortando duas das criaturas ao meio, uma com cada espada, com os movimentos graciosos e precisos que ele normalmente via o colega desempenhar nos treinos. Ele tinha que admitir que de certa forma invejava a proficiência de combate de Todoroki. Por mais que o próprio Izuku treinasse com frequência, ele se sentia sempre um passo atrás de seus colegas de equipe, todos cadetes treinados com histórico exemplar. Eu não deveria nem estar aqui. Só estou pelo que aconteceu em Sagitta.

 

Todoroki interrompeu sua trilha de pensamentos negativos mais uma vez, algo pelo qual Midoriya era bastante agradecido. “Você teve algum sinal de Iida ou Uraraka? Ou da Equipe Alfa?”

 

“Não. Eu estou preocupado, na verdade. Será que deveríamos soltar um sinal? Eu sei que é um risco, mas perder comunicação é muito pior. Podemos nos encontrar de novo na estrada e-”

 

Durante a conversa com Shouto, Midoriya continuara seu caminho pelas ruas estreitas de Hosu, deixando que o sistema embutido em seu traje recolhesse dados de sua localização e computasse as informações relevantes. Seu olhar se mantinha alerta, seguindo de um lado a outro da rua, mantendo nota de esconderijos ou pontos cegos grandes o suficiente para esconder um dos infectados.

 

E foi assim que ele notou a pequena sombra no canto do olho, que sumiu num beco próximo assim que ele se virou para olhar melhor.

 

Uma criança…?

 

“Midoriya?” Todoroki chamou novamente, estranhando a interrupção.

 

“Acho que vi alguém. Pode ser um sobrevivente. Vou investigar, fica de olho na minha localização.” Izuku explicou ao colega de equipe, passando um rápido filtro de calor no beco onde a sombra entrar. Havia apenas uma fonte - um vulto pequeno encolhido contra a parede do beco, do exato tamanho de uma criança. Por precaução, Izuku ativou sua Individualidade, sentindo o poder fluir por seu corpo em ondas elétricas.

 

Os rangers não eram escolhidos por acaso. A defesa das civilizações aliadas era entregue aos que nasciam com uma afinidade especial, uma Individualidade apropriada para a tarefa de defender os outros de ameaças como a Infecção. Fora assim que a maioria de seus colegas tinha sido recrutado desde jovens, reconhecidos na infância e treinado especificamente em instituições dedicadas.

 

Izuku não era assim. Ele se tornara assim depois de Sagitta. Um caso raro de maturação de poder, era dito, no mesmo tom em que se comentaria sobre um espécime raro de zoológico.

 

“Devo ir aí?”

 

“Não precisa. Eu mando mensagem se precisar de reforço.”

 

“Certo. Toma cuidado, Midoriya.” Com o desejo de boa sorte de Shouto, Izuku inspirou fundo uma última vez e finalmente entrou no beco.

 

A criança estava meio escondida entre a folhagem que subia pela parede, apenas dois grandes olhos assustados e normais debaixo das abas do chapéu. Não havia como esconder o sinal da infecção nos olhos, então era um sobrevivente, para alívio do jovem ranger. Ele levantou as mãos, as palmas abertas numa oferta de paz. “Eu não vou te machucar, viu? Eu prometo. Só quero te tirar daqui. Te levar pra um lugar seguro. Está entendendo?”

 

O menino - parecia um menino, ele não conseguia ter tanta certeza - não respondeu imediatamente. Pareceu ponderar a proposta por um instante, e então se recolher ainda mais no lugar, tentando se ocultar o máximo possível entre as vinhas. Midoriya franziu a testa, buscando mais palavras de conforto para se aproximar.

 

Um guincho alto interrompeu seu raciocínio, mais rasgado e profundo do que qualquer humanóide deveria ser capaz de produzir. Com o instinto de anos, Izuku se pôs em posição de combate, as mãos erguidas à frente do rosto e as pernas firmemente plantadas no chão, cobrindo a figura pequena do menino com seu corpo o quanto podia. O garoto se encolheu numa bola atrás dele, cobrindo a cabeça com os braços na antecipação do golpe que viria.

 

A criatura caiu no chão em frente a eles com um baque surdo, tendo pulado de um dos telhados acima. Tinha sido um homem grande, bem maior do que Izuku, com músculos pronunciados e a roupa encardida e manchada por sangue e piche. Um de seus olhos tinham sido rasgado e parecia cego, com uma feia cicatriz e tiras pendentes de pele cobrindo aquela parte do rosto. O outro era um grande poço de preto ocupando toda a órbita, sem íris ou pupila distintas, e o rosto estava distorcido em um sorriso largo demais, deformando suas feições. O som de um soluço alto chegou aos ouvidos de Midoriya, que o identificou como vindo do garoto, e a esse som a criatura começou a se mover a passos pesados na direção deles, como se atraída pelo barulho.

 

Izuku cerrou o punho e os dentes em resposta, e se preparou para o impacto. Encontrar um deles, não importava quantos anos de combate ele tivesse, sempre o fazia se lembrar da primeira vez em que vira aquele sorriso e aqueles olhos sombrios. Era como se estivesse lá de novo, num corredor escuro como aquele beco, os olhos cheios de lágrimas que ele não tinha mais como chorar, a garganta apertada, mas não tanto quanto a dor em seu peito. Ele lutou contra as memórias junto com o adversário ao desviar do primeiro golpe, quando o homem avançou contra ele com punhos grandes como martelos, e foi incapaz de segurar um breve pedido de desculpas quando sua bota reforçada atingiu o alvo em cheio nas costelas, o som de algo quebrando fazendo seu estômago revirar.

 

A mais nova mancha de vermelho que surgiu na camiseta do homem não foi o suficiente para pará-lo, e ele girou nos calcanhares para acompanhar a velocidade do jovem ranger que o circundava, lentamente o atraindo para longe da criança que se escondia como podia. Os ataques do infectado eram velozes para alguém daquele tamanho, golpes pesados que a cada impacto esfolavam mais e mais os nós de seus dedos, mas ele seguia como se nem conseguisse sentir a dor. Com um estrondo audível, seu punho esquerdo colidiu com a parede do outro lado do beco, abrindo uma cratera que deveria ser do tamanho da cabeça de Midoriya. Este sabiamente manteve sua distância, procurando cansar o adversário e o atingir com chutes precisos, enquanto ponderava sobre se deveria pegar logo o menino e fugir, se ambos conseguiriam pegar distância daquele infectado rápido o suficiente. A batalha rapidamente se tornava uma de resistência, e o garoto de cabelos verdes realmente não achava que teria stamina para levar a criança para segurança se não terminasse isso logo.

 

Aqueles olhos o estavam seguindo durante toda a luta. Por mais que ele fintasse, pulasse e se esquivasse, por mais que chutasse e socasse e visse os danos de seus golpes, parecia que aquela coisa sempre sabia exatamente onde ele estava, olhando para ele com aquele sorriso de satisfação cruel. Ele está brincando comigo. Como se brinca com uma presa.

 

“Izuku…” O homem chamou em meio a luta, mais um rosnado ou grunhido que um nome. O ranger poderia ter pensado que era apenas impressão de sua mente quando a criatura continuou, a voz quebrada de uma forma não natural, como se houvesse algo preso em sua garganta, ou suas cordas vocais tivessem sido esmagadas. Ainda assim, era inegável que tivesse ouvido a coisa chamar: “...Midoriya.”

 

A surpresa o atingiu em cheio, assim como o infectado. Uma daquelas mãos enormes o agarrou pelo pescoço e o lançou contra a parede do beco com força considerável, a poucos metros de onde estava o menino. Izuku colidiu com um som seco e uma dor aguda, deslizando parede abaixo, temporariamente aturdido.

 

Ele ouvia os passos da coisa se aproximando e se forçou a se erguer, a lutar. Não podia deixar aquela criança na mão, ainda mais uma que estava sozinha naquele lugar. Ele tinha que fazer algo, mesmo que isso o quebrasse inteiro, desde que salvasse aquela pessoa… O homem o olhava com aquele sorriso, e era como se ele estivesse em Sagitta de novo.

 

Uma enorme bola de fogo atingiu a criatura em cheio, e seu guincho subsequente de dor foi cortado por um soco bem dado na mandíbula que a fez cambalear para trás. A pessoa que atacara usava um traje protetor igual ao de Izuku, as placas protetoras de um cinza escuro, o capacete reforçado, as manoplas modificadas que se adaptavam a sua Individualidade. As mesmas que ele usara para despejar todo aquele fogo na criatura a sua frente.

 

“K-Kacchan!”

 

Os olhos vermelhos de Katsuki Bakugou brilhavam com raiva incontida e sede de batalha. Ele estava sorrindo apesar da aspereza em seu tom - Kacchan sempre sorria em frente aos desafios. “Deku, seu imprestável do caralho! Vai ficar parado feito um bundão na cara de um filho da puta desses pelo quê?”  

 

“D-desculpe! Eu achei que… Ouvi algo…”  

 

“Diga isso pro capeta do outro lado quando estiver morto. Se não se mantiver alerta é assim que você vai vê-lo. Se mantenha focado, mané.”

 

O ataque súbito de Bakugou tinha desorientado a criatura, deixando-a temporariamente cega do olho bom pela luz forte. Ela rosnava como um animal ferido, levando as mãos em garra ao rosto como se quisesse arrancar os olhos em dor, as unhas longas e sujas fazendo cortes profundos que não sangravam. Midoriya não podia evitar de sentir culpa ao ver algo assim - era uma demonstração tão clara de sofrimento, e de pensar que ele tinha algo de culpa nisso o fazia sentir mal.

 

Ao contrário de seu amigo de infância, Bakugou não se deu tempo para sentir algum tipo de pena pelo que, ferida ou não, ainda era uma clara ameaça. Ele se aproveitou da distração da coisa para atingi-la com um chute alto na têmpora, jogando a massa de músculos contra a mesma parede em que pressionara Izuku. A estrutura cedeu com um barulho estranhamente semelhante a um gemido, lançando uma nuvem de pó branco e vermelho pelo beco. Katsuki se lançou no buraco atrás do adversário ao mesmo tempo em que Midoriya corria de volta para a criança, que soltara um grito alto de medo com o estrondo.

 

“Shh, tá tudo bem ok?” Ele agora estava perto o suficiente para perceber que era de fato um menino, ao menos pelas roupas que usava. Se ajoelhando para ficar ao nível da criança, ele sorriu o melhor que podia e ergueu as mãos mais uma vez. “Meu nome é Izuku. Eu vim te ajudar! Qual o seu nome?”

 

“K-Kouta.” A voz dele estava rouca pela falta de uso, mas ao menos era capaz de compreender e responder, o que já era um alívio.

 

“Certo, Kouta-kun. Eu e meu amigo somos rangers. Nós protegemos pessoas, e vamos tirar você daqui, ok?”

 

“N-não.” Essa de fato não era a resposta que Midoriya estava esperando. “V-você tem que ir embora! E-eles vão v-vir e p-pegar vocês! C-como fizeram com os outros!”

 

Um frio desceu pela coluna de Izuku. Ele não gostava nem um pouco disso. “Eles quem, Kouta-kun?”

 

“T-todos eles. A-as p-pessoas assim…” Ele pôs os dedos trêmulos nas bochechas, forçando os cantos da boca para cima no que Izuku percebeu que era uma forma de significar is infectados. “E-eles me deixam aqui. Me dão comida. A-aí a-alguém vem, e eles p-pegam essa pessoa.”

 

Eles estão usando essa criança como isca. A realização o atingiu como um soco no estômago. Até o momento o comando estava partindo do pressuposto de que os infectados tinham perdido suas funções cognitivas maiores, mas esse era um indício assustador de que poderia não ser bem assim. Manter e alimentar uma criança não-infectada a fim de atrair mais vítimas era uma tática complexa, exigindo conhecimento ou memórias da forma de pensamento humano. Será que isso aconteceu com…?

 

“Kouta-kun.” Izuku respondeu ao garoto, envolvendo aquela mão pequena na dele numa demonstração de confiança, fazendo questão de olhá-lo nos olhos. O garoto inicialmente se retesou com o toque, ainda assustado e inseguro com a situação. “Eu prometo a você, vamos te tirar daqui.”

 

De alguma forma.

 

O estrondo de outra explosão chegou até eles, lançando novas nuvens de poeira que fizeram Kouta tossir e sujando o visor do capacete de Izuku. O rapaz rapidamente pegou o menino no colo, apoiando seu queixo em seu ombro e instruindo que ficasse com a cabeça baixa e não se mexesse muito. Mais e mais explosões soavam de uma forma que alimentava a apreensão de Midoriya, os nós de preocupação em sua barriga se retorcendo ao imaginar o que poderia estar acontecendo. Ele estava quase gritando quando Bakugou emergiu do buraco, os dedos tremendo de esforço e o capacete manchado de sangue espalhado.

 

Seu sorriso era quase maníaco, um desafio mudo que não chegava bem a seus olhos. Ele notou a criança nos braços do colega e franziu a testa. “Esse daí. Tá infectado?”

 

“Não! Eu olhei. Ele está limpo.”

 

“Depois dessa caralhada de tempo?”  

 

“Os olhos dele estão normais. Por favor, Kacchan, eu chequei.”

 

Bakugou soltou um tch pronunciado, mas não teve mais objeções. “Bem, foda-se isso. Eu me livrei do grandão, mas tem uma quantidade grande desses felas da puta vindo pra cá. Não sei você, Deku, mas vou dar o fora.”

 

“P-posso ir com você?” As palavras pegaram o próprio Midoriya de surpresa, escapando de sua boca antes que pensasse bem a respeito. Bakugou ergueu as sobrancelhas brevemente, aparentemente também surpreso, mas deu de ombros.

 

“Desde que não me atrapalhe. No momento que for um peso morto, te deixo pra trás.”

 

Os dois rangers seguiram em rumo ao portão sul de Hosu, o mais próximo dos que tinham sido contidos pela Corporação. A travessia incluía desníveis e túneis, atalhos por meio de casas há muito abandonadas, passarelas enferrujadas e canos expostos às intempéries pela tragédia que se abatera sobre a cidade. Pedaços de vidas passadas podiam ser vistos aqui e ali; pôsteres e propagandas brilhando em telas eletrônicas desgastadas, um velho jogo de chá numa mesa, um pequeno robô de limpeza que ainda recolhia o lixo de uma rua coberta até a altura dos joelhos pela hera escura. Era triste para Izuku pensar que tudo aquilo se dera há meros seis meses.

 

Não ajudava em suas reflexões que a maior parte do caminho foi em silêncio, com Bakugou rapidamente interceptando quaisquer dos infectados que entrassem em seu caminho com o brilho de suas explosões. Midoriya estava incomodado, não só pela quietude desconfortável como por reconhecer que seu colega estava chegando ao limite. Ele sabia que o loiro nunca admitiria, mas podia perceber na forma com que mordia o lábio para controlar a dor a cada novo ataque, em como suas mãos tremiam de leve mesmo que ele tentasse esconder.

 

“T-talvez a gente devesse se reagrupar, Kacchan. Procurar reforço...”

 

“Ninguém tá te obrigando a vir comigo, caceta. Eu sei o que porra estou fazendo.”

 

Foi a vez de Izuku morder o lábio, sentindo o gosto de sangue e fracasso na boca. Se ele admitisse que estava preocupado com Katsuki, o resultado seria apenas pior, já que ele parecia explodir literalmente a qualquer leve insinuação de que precisasse de ajuda. Era sempre assim. Katsuki nunca lhe dava uma abertura, nunca lhe dava uma chance de se aproximarem. Eles eram de equipes diferentes, claro, cada um capitaneando o time Alfa e Bravo respectivamente, mas deveriam cooperar entre si; era assim o protocolo de ação dos rangers como força especial, ainda mais em território inimigo. Mas se Katsuki era desinteressado em trabalho em equipe no geral, ele parecia especialmente contra trabalhar com Izuku, o que o magoava e confundia em partes iguais. Um dia eles tinham sido amigos, tinham conversado e partilhado ideias e sonhos, brincado e até rido juntos. Mas isso se fora há anos, uma lembrança que se tornava mais e mais amarga o quanto mais distância se interpunha entre eles.

 

Por quê? O que eu fiz pra você, Kacchan? Eu só quero entender…

 

De nada adiantava perguntar. Katsuki preferiria ser infectado a ser sincero quanto ao que sentia.

 

O esforço de segurar Kouta, por mais magro que estivesse, ao longo da rota mais longa e instável estava começando a cobrar seu preço dele também, com os músculos queimando tanto quanto seus pulmões, pequenos arquejos na tentativa de conseguir o precioso oxigênio, as agulhadas percorrendo sua coluna depois que o infectado grande o jogara contra a parede.

 

Finalmente chegaram ao portão. A partir dali o território era mais seguro, com poucos dos infectados se aventurando além do território cercado da cidade, e patrulhas frequentes da Corporação para evitar o avanço da infecção. Katsuki apontou para fora com o polegar, depois do scanner reconhecer a própria identificação e a de Midoriya.

 

“Agora tira esse pivete daqui e vai encontrar seus amiguinhos, e me deixa em paz.”

 

“Você não vem? Pra onde você vai, Kacchan??”

 

“Não é da sua conta. Vaza.”

 

“Kacchan-” você está machucado! Pare de ser tão teimoso!

 

“Sai, antes que eu te jogue por cima da grade!”

 

Nem mesmo uma chance.

 

Midoriya respirou fundo e assentiu, limpando a poeira do visor de seu capacete com as costas da mão. Atrás dele, o som metálico do portão fechando e virando cada uma das várias trancas eletrônicas encobria a figura solitária de Katsuki. O loiro observou apenas por um momento, e, quando Midoriya olhou por cima do ombro, já tinha dado as costas para voltar à cidade.

 

“Vem.” Ele disse a Kouta. “Vamos sair daqui.”



Ele só precisava fechar os olhos para lembrar daqueles sonhos estranhos. Lugares onde nunca esteve, pessoas que nunca viu, coisas que nunca aconteceram que ele via através de olhos que não os dele. Ele via batalhas e campos floridos, tempestades e áreas escuras, naves que não conseguia reconhecer, palavras em línguas estranhas que lhe faziam todo o sentido enquanto sonhava. Ele via a antiga Estação Espacial de Sagitta também, as vezes, e o pai, e estes eram os sonhos que o faziam acordar de madrugada, molhado de suor sob as cobertas.

 

Seja qual fosse o sonho, ele sempre via a mesma pessoa. Ele sabia que era a mesma, de alguma forma, mesmo que seu rosto fosse diferente a cada vez, assim como seu gênero ou sua raça ou sua espécie. Mas em cada uma daquelas faces estranhas ele via o mesmo olhar, a mesma determinação, o mesmo senso de familiaridade e admiração que fazia seu coração palpitar e um calor estranho se espalhar por seu peito, uma força ainda mais forte que ele, puxando-o como gravidade. Em todos aqueles olhos ele via vermelho.

 

O nome dele estava em seus lábios a cada manhã seguinte, mas ele nunca dizia, nunca ousara. Talvez isso fosse apenas um reflexo dos problemas que tinham enquanto despertos, uma forma confusa de seu inconsciente de lidar com sentimentos complexos e frequentemente contraditórios: admiração e inveja, culpa e confusão, afeição e ressentimento. E nos piores dias, naqueles em que a pressão em seu peito continuava enquanto ainda estava acordado, ele se dizia que aquilo era só um sonho, e sonhos não tinham impacto na realidade.

 

Ainda assim, era nos sonhos que ele sentia o gosto dele em sua língua e o afago de suas mãos em seu cabelo, era sonhando que via e consolava suas lágrimas e ouvia seus gritos. Não importava onde e como, ele sempre estava lá. Cada uma daquelas pessoas era ele, assim como cada um dos outros era o próprio Izuku, ele sabia com a certeza dos sonhadores. A mesma que lhe dizia que tudo aquilo, todas aquelas cenas, realmente aconteceram, tinham que ter acontecido, todas aquelas outras vidas.

 

Ele se perguntava o que aconteceria se pesquisasse um dos nomes de pessoas ou lugares que continuavam em sua mente dia adentro, mas a verdade era que não sabia se queria mesmo saber a resposta.




Midoriya saiu da estação de descontaminação com um suspiro cansado. Seus músculos ainda doíam da luta contra o grande infectado, e do tanto que teve que andar com Kouta nas costas até se reencontrar com sua equipe. Estava de tal forma exausto que Todoroki e Uraraka tiveram que praticamente arrastá-lo de volta ao posto avançado, a primeira linha de defesa contra a crescente infecção em Titania. Em razão disso, os superiores tinham permitido que ele dormisse durante a descontaminação, o que era ótimo - a luz esterilizadora sempre o deixava enjoado.

 

Secando seus cabelos com a toalha descartável, Midoriya se questionava se Kouta já teria sido liberado também. O garoto provavelmente estava em quarentena pelo tempo que passara dentro da área infectada, então ter ao menos um rosto conhecido para conversar poderia ajudá-lo a se sentir menos solitário. Sim, ele decidiu enquanto jogava fora a toalha e passava pela última revisão de contaminantes antes da liberação. Eu vou vê-lo e pelo menos distraí-lo um pouco. Do que as crianças gostam esses dias? Podia dar uma olhada em algo que chame o interesse dele..  

 

Mais alguém tinha acabado de ser liberado da descontaminação também. Bakugou estava de costas e não parecia ter notado sua presença ainda, ocupado como estava bocejando e coçando veementemente os olhos. O uniforme padrão de regata e calça parecia se agarrar às curvas de seus ombros e seu quadril, de uma forma que fez Izuku fechar os olhos e balançar a cabeça para afastar aqueles pensamentos de sua mente.

 

“Kacchan!”

 

Katsuki o olhou por cima do ombro, sua expressão se fechando ao ver que Midoriya se aproximava. Ele pôs desleixadamente as mãos no bolso da calça. “O que você quer?”

 

“É sobre a missão… Eu queria agradecer.”

 

“Tch. Só fique fora do meu caminho, Deku.”

 

“O que eu fiz pra você?” A pergunta foi entoada em voz baixa, do próprio Izuku para si mesmo ao invés de para Katsuki, mas o loiro ainda o ouviu. Ele parou subitamente seu caminhar, se virando para encarar Midoriya de tal forma que o garoto de cabelo verde sentia que metade dele queria correr e a outra metade queria beijar Katsuki ali mesmo.

 

“Como é, nerd de merda? Fala pra fora. Ninguém entende você falando como se tivesse um pau na boca.”

 

“Eu só quero entender, Kacchan, por que você me despreza tanto? N-nós éramos amigos. Nós passamos juntos por Sagitta. Mas depois disso… O que eu fiz pra-”

 

Izuku levou um susto quando a mão de Katsuki se chocou contra a parede ao lado de sua cabeça, o loiro praticamente forçando seu amigo de infância contra a mesma parede pela forma com que se inclinou para perto dele. Os dois eram de alturas semelhantes, então ele podia sentir Bakugou tão próximo que as pontas de seus narizes se tocavam, podia ver os músculos dos braços dele se mexendo sob a pele perfeita quando ele se apoiou. O garoto de cabelo verde engoliu um bolo em sua garganta, sentindo a boca subitamente seca pela proximidade. Nem quando éramos crianças ele esteve tão perto.

 

A voz de Bakugou era surpreendentemente controlada, ainda que pingasse a agressividade e rudeza que lhe eram características. “O caralho de asa que eu faço ou deixo de fazer não é da porra da sua conta, Deku. Eu aproveitei a maldita oportunidade de finalmente me livrar de você, mas parece que você é um nerd tapado o suficiente pra eu ter que desenhar. Eu fico doente toda vez que olho pra sua cara. Isso é suficiente pra você entender?”

 

Era fascinante, da forma com que se observar uma cobra perigosa é fascinante, estar tão perto ao se apreciar a raiva de Katsuki Bakugou. Aqueles olhos vermelhos pareciam brilhar no pouco espaço entre eles, de forma intimidadora porém admirável na opinião de Izuku. As olheiras pronunciadas, algo que ele não tinha antes, apenas deixavam o tom de vermelho de seus olhos mais evidente. Ele conseguia ver a irritação em seu sorriso e nas sobrancelhas franzidas, no jeito que projetava os lábios como se fosse rosnar. Uma, duas, três vezes, ele bateu os dedos contra a parede, bem ao lado de Midoriya, e este franziu as sobrancelhas, subitamente confuso.

 

Ele está mentindo. Os dois se conheciam desde crianças, Midoriya seguira Bakugou durante boa parte de suas infâncias, e sabia bem os hábitos do alvo de sua admiração - da leitura de creepypastas antes de dormir ao fato de que Bakugou mexia nervosamente os dedos quando não estava sendo sincero. Por que Bakugou está mentindo pra mim? Sobre o quê especificamente?

 

O som de uma das portas automáticas se abrindo chamou a atenção dos dois, assim como uma breve risada. Um dos outros corredores das salas de descontaminação se abrira, dando espaço para que Kaminari e Kirishima entrassem, conversando animadamente com um braço ao redor dos ombros um do outro. Denki foi o primeiro a notar os outros dois, e deu uma cotovelada nas costelas de Kirishima, chamando sua atenção.

 

“Desculpe por gastar seu tempo, Kacchan.” Midoriya se desculpou assim que os olhares dos dois membros do Time Alfa recaíram sobre ele, tentando inutilmente conter o vermelho que subira para suas bochechas aquecidas. Ele não conseguia nem olhar para os colegas agora, com medo do que pensariam da situação, do que achariam que estava fazendo, do que talvez chegasse ao comando sobre sua fraqueza. Longe de julgá-lo, no entanto, Kaminari tinha a testa franzida com Bakugou, e Kirishima olhou rapidamente para baixo, parecendo ele mesmo desconfortável.  

 

“Ao menos isso. Da próxima vez que me fizer perder tempo por besteira, eu te mato.” Katsuki soltou um tch de irritação, lentamente, talvez lentamente demais, se afastando do amigo de infância. Ele voltou a uma pose casual, tornando a pôr uma das mãos no bolso, a outra fazendo um sinal para que os dois subordinados o seguissem enquanto dava as costas para Midoriya. “Que vocês dois imprestáveis estão fazendo aí parados feito imbecis? Vamos embora.”

 

Izuku assistiu aos três se afastarem, Kaminari com um pequeno aceno e um sorriso triste, Kirishima juntando as palmas em frente ao peito e murmurando um breve “Desculpe!” pelas costas de seu capitão. Ainda assim, não sabia bem se estava triste com a situação. O que sentia era mais desconfiança, e um ardor estranho na barriga que o deixava altamente desconfortável.

 

Talvez eu esteja com fome? Sim, provavelmente é isso.

 

Kirishima esperou nervosamente que se afastassem o suficiente de Midoriya, para comentar, brincando com seus dedos ao olhar para o perfil fechado de seu capitão. Sua voz demonstrava sua preocupação, a mesma que estava em seus olhos e seus ombros caídos, no jeito que puxava de leve o lábio com os dentes afiados. “Bakugou… Isso não foi legal da sua parte.”

 

“Foda-se. Eu não estava querendo ser legal.”

 

“Você não precisa ser grosso assim com o Midoriya, cara.” Foi a vez de Kaminari intervir. Não era do feitio de Denki ser normalmente tão sério, mas a situação desconfortável não incomodava apenas a ele como aos outros membros das duas equipes. Yaoyorozu era muito nervosa para se dirigir diretamente ao capitão a respeito de problemas pessoais, mas ele e Kirishima acordaram entre si que, da próxima vez que o assunto surgisse, eles tentariam abordar Bakugou sobre. Agora, com os braços cruzados em frente ao peito, ele se dirigia seriamente a seu superior. “Eu sei que vocês tem seus problemas, mas ele-”

 

“Você não sabe do que está falando.” Bakugou rosnou como um cachorro acuado, fulminando Denki com o olhar. “Então cale a porra da boca antes que eu mesmo cale.”

 

“Você não pode ficar fugindo dos seus problemas pra sempre, Bakugou.” Kirishima advertiu novamente, pondo uma mão acalentadora no ombro do colega num gesto que esperava que o acalmasse um pouco. Este lhe deu um olhar de esguelha de desagrado, mas não fez menção de se afastar; era sabido que Eijirou era o melhor amigo do loiro, uma das poucas pessoas além de sua mãe que consguiam acalmá-lo.

 

Ao invés de ameaçar, Katsuki apenas bufou, irritadiço. “Eu pareço estar fugindo pra você, filho da puta?”

 

“Bem, sim. É meio que o ponto.” O líder de equipe reagiu ao comentário com um forte tapa na nuca de Kaminari, quase fazendo o colega tropeçar nos próprios pés.

 

“CUIDE DA SUA VIDA, PARA-RAIOS!”

 

“É só que não vale a pena você continuar fugindo assim, capitão.” Kirishima fez uma última tentativa, tentando ser mais suave de forma a não irritar ainda mais seu amigo e superior. “Em algum ponto você vai ter que ser sincero, e quando isso acontecer de uma forma que você não quer, vai ser muito pior.”

 

Dessa vez, o loiro olhou feio para o melhor amigo, não poupando totalmente o ruivo de sua raiva. “Eu não sabia que sua Individualidade era ser profeta, Cabelo Espetado.” O som de pequenas explosões entre os dedos de Bakugou eram a deixa, junto de seu sarcasmo, de que o assunto estava devidamente encerrado. “Mantenha seus conselhos sábios para si mesmo antes que alguém decida realizar a profecia da sua morte aqui e agora.”

 

Denki e Eijirou trocaram um último olhar antes de deixar a conversa fluir para outro assunto. Ambos reconheciam sua preocupação com o capitão - e também a formidável teimosia e incapacidade de lidar com as próprias emoções que ele apresentava. Insistir não iria ajudar em nada. Muito pelo contrário, ele se fecharia ainda mais, e nenhum dos dois conseguiria de fato ajudar seu capitão ou o de seus colegas.

 

Se era assim tão frustrante para quem estava de fora, só podiam ambos apenas imaginar como deveria ser para o próprio Midoriya.




Izuku estava agradecido pelo refeitório estar praticamente deserto dessa vez. Ele se sentia cansado ainda - mesmo o tratamento médico durante a descontaminação não tinha ajudado tanto seus músculos doloridos, e menos ainda sua discussão com Bakugou. Ele só queria jantar, falar logo com o garoto e ir dormir, deixando esse dia desagradável para trás.

 

“Deku-kun…? Você está bem?”

 

“Ah… Uraraka... “ Ele estava tão cansado que nem notara a aproximação de sua colega de equipe e melhor amiga, ocupado que estava em terminar logo o jantar. Em sua defesa, Uraraka tinha reconhecidamente passos leves, e sabia ser mais discreta ainda no estado em que estava, com preocupação escrita em seu rosto bonito. Ele imediatamente lhe ofereceu uma cadeira, procurando tranquilizá-la com um sorriso enquanto ela se sentava “Eu estou bem. Desculpe se te assustei.”

 

“Não está não. Você só fica com essa cara de cachorro sem dono, cutucando a comida e olhando pro chão quando está triste.” A garota respondeu de imediato, com o conhecimento de quem convivia como membro da Equipe Bravo há mais de ano. “Esse desânimo… Foi o Bakugou de novo?”

 

“Mais ou menos…” Izuku notou o olhar cético da moça para ele, o jeito com que comprimia os lábios numa linha fina, e foi forçado a admitir. “Huh… Sim.”

 

“Ele é… Difícil de lidar.” Difícil de lidar era claramente um eufemismo para tudo que Bakugou era, e ela não conseguia conter o sarcasmo que tingia sua voz. Deku parecia quase envergonhado pelo assunto, evitando o olhar dela de forma que a deixava mais preocupada.

 

“Ele é um cuzão. Eu sei.” Izuku deu um suspiro, correndo os dedos pelos cachos esverdeados numa tentativa de conter a frustração. “É difícil explicar. Eu me sinto ligado a ele de uma forma, sabe? Depois de tudo que aconteceu… Ele é uma das poucas coisas que ainda me resta.”

 

“Mas ele tá sendo ruim pra você, Deku! Ele diz essas coisas que te machucam, já te faz chorar… Isso não é saudável. Entendo que se importe com ele, só… Não seria a hora de talvez deixar isso ir?” Ela sugeriu com um sorriso frágil, batendo as almofadas nas pontas de seus dedos umas contra as outras numa tentativa de se animar. Bem que ela queria que fosse assim tão fácil. Ela e Tenya treinavam com Izuku há anos a esse ponto - desde a academia - e ela sabia muito bem o quão determinado ele podia ser quando queria. Era uma das coisas que admirava nele… E uma das coisas que o tornava atraente, por mais que hesitasse em admitir.

 

“Eu não sou ingênuo. O que ele faz me magoa sim. Já pensei sobre isso… Deixar tudo pra trás…” Havia algo de distante, quase sonhador em Midoriya agora, como se ele estivesse em outro lugar, um lugar onde ela não conseguiria alcançá-lo, e a impressão apertava o coração de Ochako ainda mais forte do que ela apertava os prósprios dedos. “Mas eu não vou. E não por alguma besteira de achar que posso mudar quem ele é… Ninguém que não seja ele pode fazer isso. Mas eu sinto que o Kacchan precisa desse reflexo, sabe. Alguém que o faça confrontar o que ele quer esconder, o que ele tem medo de mostrar. De certa forma, é isso que me puxa pra ele também. Tem… Tanta coisa que eu aprendi e cresci graças a ele, tanta coisa que admiro nele e em quem ele se tornou. E eu sei que isso é mútuo.”

 

“Você tem certeza que isso vale a pena? É só… Deku-kun, tem formas mais saudáveis…”

 

“Eu sei. É complicado. Talvez complicado demais.” O garoto deu um suspiro cansado, empurrando sua comida com o garfo, se forçando a engolir mais um pedaço antes de continuar. Talvez devesse pedir a opinião de Ochako a respeito de suas impressões. Ela era muito mais afinada com sentimentos do que ele era, deveria saber interpretar melhor. “Ele está me escondendo alguma coisa. Eu sei. Eu o conheço. Mas ele não quer me dizer o que é, e isso é muito frustrante.”

 

A ideia apenas trouxe mais vincos de preocupação à testa de Ochako, que analisava cuidadosamente Izuku por detrás dos longos cílios castanhos. “Sabe, não é legal essa coisa dele esconder coisas de você. Talvez vocês dois só… Atribuam pesos diferentes a esse relacionamento? Quem sabe?”

 

“Quem sabe... “ Midoriya respondeu pensativamente, as palavras se arrastando ao fim da frase antes que ele enfim pousasse o garfo e voltasse a sorrir como sempre - um sorriso que ela podia ver que não chegava bem a seus olhos. “Bem, obrigado pela companhia, Uraraka. Desculpe se eu te aborreci com meus problemas!”

 

“De forma alguma, Deku-kun! Você sempre pode contar comigo!”

 

“Eu sei. Obrigado.” Ele se curvou repentinamente, e Ochako ficou paralisada quando os braços fortes de seu colega de equipe se fecharam a seu redor. Ele era pouco mais alto que ela, mas era o suficiente para que ela pudesse se curvar um pouco apoiar a cabeça em seu ombro, sentir o perfume em seu pescoço. Ele é tão quente… Ela pensou, passando os braços ao redor do peito dele, sentindo os músculos retesados em suas costas. Isso era o mais confortável que já estivera em anos. Eu poderia ficar aqui para sempre.

 

Seu para sempre parou depois de alguns minutos, quando Izuku se despediu com um sorriso, dizendo que ainda tinha que ver a criança que fora resgatada antes de ir se deitar. Ochako acenou e o observou ir, o sorriso em seu rosto sumindo lentamente a cada passo que ele dava.

 

A última vez que ela o abraçara ele estava morto. Se ela fechasse os olhos, conseguia lembrar. O cheiro do sangue e a textura em seus dedos, em sua roupa. A dor na garganta e no peito, do vazio súbito da perda, do choro que sacudia seus ombros e lhe fazia soltar soluços vergonhosos. Ela o tinha perdido, de novo, como na vida antes desta e na vida anterior àquela, e em tantas quantas outras que ela lembrava noite após noite, se revirando na cama ao sabor de seus sonhos.

 

E ela sabia o que tinha acontecido. Tinha sido por ele de novo. Aquela pessoa, aquele demônio, vida após vida, machucando ele de novo e novo. Não era certo. Não era justo.

 

Ochako sufocava esses sentimentos ao acordar. Ela não deveria culpá-lo por coisas que nem sabia se realmente aconteceram, por imagens de lugares que nunca vira e coisas que nunca fizera. Mas, sonhos ou não, os sentimentos existiam, cuidadosamente guardados por trás de um sorriso gentil, sorriso este sempre menos honesto perto dele. A fazia sentir mal às vezes - ela estava guardando ressentimento por coisas que nenhum dos dois podia controlar! - mas o que ele fazia com Deku era injustificável, a seu ver. Ela quase intervira várias vezes, com apenas Tenya conseguindo convencê-la a esperar, em respeito a Deku.

 

Mas ela não conseguiria mais. Não se as coisas continuassem assim. Em algum ponto, ela teria que fazer algo a respeito. Colocar Bakugou em seu lugar, de uma forma ou de outra.

 

E talvez, então… Isso finalmente fizesse Deku vê-la com outros olhos.


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