A Sombra Sobre Widowsmyre escrita por Jack Zer0, Astus Iago


Capítulo 1
A Sombra Sobre Widowsmyre


Notas iniciais do capítulo

"The year of the great seventh number accomplished,
It will appear at the time of the games of slaughter,
Not far from the age of the great millennium
When the dead will come out from their graves." - Nostradamus



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O chão estava molhado, provavelmente devido às mais recentes tempestades que sobrevoavam Patrick Kobinson, o homem mais estranho da cidade de Widowsmyre. Entroncado, mas inexplicavelmente imponente, circulava com leveza pelas estreitas ruelas da localidade. As sombras nos pavimentos serviriam de disfarce aos seus planos mais subtis, isto porque o Sol se encontrava escondido entre nuvens, as crianças em fuga do frio escondendo-se nas suas casas. Bairros inteiramente desertos recebendo os seus passos ágeis. Nenhuma geada poderia travar o rastejar da serpente.

Ninguém sabe ao certo a idade de Patrick, mas julgam que esteja entre os 20 e os 26 anos, baseando-se na aparência. A sua história pessoal sempre foi algo desconhecida. Para as inocentes crianças da região, a sua mera existência, indiscutivelmente circulada de mistério, não passava de uma lenda contada pelas mães aos filhos. O mito começava sempre de maneiras diferentes, dependendo da boca que tremidamente o relatava. Alguns diziam que ele era um ex-militar, mas outros referiam-se ao excêntrico homem como sendo um mercador de profissão, que um dia apareceu e dali nunca mais saiu. Fosse qual fosse o começo, o fim era sempre o mesmo: todas as crianças que se aproximavam da casa dele desapareciam. Após cada um desses misteriosos desaparecimentos, durante três dias a cidade era atacada por trovoadas e chuvas fortes, mas nunca um cadáver jovem era encontrado.

Vários investigadores, polícias e detetives independentes, foram contratados pela cidade com o simples intuito de que esses indesculpáveis acontecimentos fossem devidamente analisados. Por meses, a promessa de um meticoloso e intrincado conjunto de investigações permitiu calar os preocupados familiares das vítimas. Contudo, no final nada foi concluído.

Ontem, passaram-me esse caso. Sim, pois eu sou o último dos profissionais contratados para esta missão, aparentemente impossível de solucionar. Admito que li todos os documentos acerca dos desaparecimentos com imensa avidez e curiosidade. Os factos, as poucas evidências devidamente registadas, conseguiram intrigar o suficiente para decidir visitar, em pessoa, essa casa da sombria Widowsmyre.

A cidade é rodeada em toda a sua circunferência por uma incrível vedação, alta e de metal oxidado. A sua simples existência era para mim, à primeira vista, completamente injustificada. Que horrores estariam aprisionados entre aquele limite férreo? A essa questão eu não poderia responder com certeza. Deduzi que estivesse relacionada com os crimes inexplicáveis que assombravam a região.

Outro aspeto notável daquela vedação intimidante era, se bem me lembro, o facto de se encontrar coberta por árvores anormalmente grandes. Temerárias amostras de vida vegetal eram aqueles colossos de madeira. Havia uma única entrada na delimitada urbanização, um portão gigantesco de ferro ferrugento.

Logo que entrei, reparei na atmosfera fresca e inebriante, uma atraente sensação algo mórbida e decadente. A maldita cidade parecia contactar pessoalmente comigo, o seu ar penetrando-me os tímpanos sem permissão, o meu coração vibrando ao som dos rangentes veículos em movimento e os edifícios, de arquitetura com um misto de contemporâneo e desconfortavelmente antiquado, pareciam dançar ao som de toda a cacofonia.

Cruzei-me com inúmeros nativos e, mais notavelmente, com um gato gordo de raça persa. Alimentei-o com uma porção dos meus mantimentos diários e deixei-o ir em paz. Surpreendeu-me que animais tão graciosos quanto aquele pudessem viver num ambiente assim tão opressivo. Enfim, quem entre nós poderá compreender os desígnios desses bichos peludos?

Ruas e ruelas demasiado estreitas, estradas enormes de largura indefinida. Era tudo tão livre, a modos que sensual. Uma certa fragrância de valor incalculável perfumava os céus naqueles meus momentos de observação e introspeção. Uma energia alimentando-me as narinas, refrescando-me os confins do corpo como um combustível para a alma. Aquele mundo, microverso de vidas e interações personalizadas, relações e romances de fé e carinho e amor. Tudo junto, tudo misturado. Os ricos e os pobres, os fortes e os fracos, a derradeira mistela de existência. Tão milenar essa capacidade de nos purificar a nós Homens. Sim, o verdadeiro ar puro cosmopolitano. Suores vertendo assentes sobre a única sensação que vale a pena sentir, aquele receio primordial que nos consome a todos por dentro. O seu núcleo: o assombro.

Em passo rápido, sempre atento, cheguei ao local que havia sido marcado. Ali, numa rotunda singular, encontrar-me-ia pessoalmente com o meu contacto, um "myriano" caucasiano denominado Vincent Sinatra. Já sabia o homem que me esperava, por isso não foi difícil encontrá-lo no mar de pessoas em que se afogava voluntariamente. O círculo de estrada rodeava um pequeno parque relvado, onde alguns membros dessa respeitosa população comiam e repousavam. Uma minúscula mancha verde no betão acinzentado, porque a natureza é demasiado importante para ser esquecida. Sinatra, homem discreto e pouco digno de atenção, sentava-se discreto sobre a vegetação.

Não prestei muita atenção às suas feições, às suas vestes assim para o negro e ao seu ar cansado. Pareceram-me tudo traços que já havia reconhecido desde o início nos restantes transeuntes. Quando me falou da História daquele local, deburçando-se sem entusiasmo por inúmeros factos históricos e curiosidades de cultura geral, pouco me interessou no seu discurso monocórdico. Eu próprio me encontrava imensamente desgastado pela viagem. Juntos, caminhávamos em direção à casa suspeita, para a qual Vincent deveria conduzir-me sem grandes demoras.

Foram-me enchidos os ouvidos com um extenso historial de eventos, todos relacionados com os mais infames cultos de Widowsmyre. Segundo o meu informador, é muito provável que os inexplicáveis desaparecimentos estejam relacionados com isso. Falou-me de uns ritos locais, colocados em prática por uma tal Ordem dos Ancestrais, pelo menos duas ou três vezes por ano. Contou-me também as lendas sobre uns tais Filhos do Alto que, ao que se contava de boca em boca, violavam os cadáveres de bodes em honra de uma divindade alienígena. Seria impossível para mim decorar todos os relatos vis que Vincent parecia ter memorizado. Mas acho que as ruínas de Cidher foram mencionadas, se não me engano.

Quando finalmente chegámos à casa, pude reparar que fora construída num bairro desolado, nas periferias da localidade. Fui também capaz de confirmar o que me foi dito: o homem que lá morava deveria ser mesmo muito estranho. O edifício, negro como o céu noturno, era envolvido por uma vedação de estatura média. Possuía quatro chaminés enegrecidas pela fuligem, com heras a crescerem até ao telhado e nenhuma janela que me fosse visível. Isto para não falar que era uma construção deveras ciclópica. No jardim decrépito e pouco cuidado, estavam implantadas algumas estruturas de sinalização, placas com aquela amigável inscrição de duas únicas palavras: "NÃO ENTRAR!".

Ainda me é difícil admitir o desconforto que senti ao bater àquela porta. Como esperado, a única resposta que obtive foi o mais incómodo silêncio. É inegável que Vincent me sugeriu que voltássemos mais tarde. Contudo, era do meu maior interesse que o caso em questão fosse resolvido o mais depressa possível. Quem me dera ter voltado atrás...

Arrombei prontamente a porta – afinal, o proprietário tratava-se de um suspeito potencialmente perigoso. Não me preocupei com raciocínios ou conjeturas demoradas. Não me debrucei sobre as aparentemente insignificantes "teorias da conspiração", tão mencionadas pelo meu companheiro. Mais tarde, haveria de me arrepender dessas minhas faltas de atenção. Mas aquele não era o momento certo para pensar em tudo isso. Era tempo de ação, e um homem com o meu estatuto e experiência sabe muito bem quando atitudes drásticas são exigidas.

Fez-se ouvir o rangido forçado da madeira. Escancarada, a entrada permanecia aberta numa aparência um tanto desapontante. Era só uma porta, tão frágil quanto parecia, derrotada pela força bruta. Essas reflexões quase me entristeceram nesse pequeno instante. Em breve, a minha sede de perigo seria recompensada. Muito em breve.

O que vi lá dentro, naquela decrépita habitação de madeira, está certamente para além das vossas compreensões. Não o digo como insulto ou por indelicadeza, mas falo com a mais modesta sinceridade. No longo corredor escuro, palavras estranhas preenchiam as paredes, redigidas num tipo de letra completamente ilegível, termos arcaicos há muito abandonados pelo conhecimento popular.  Não havia qualquer quarto ou cozinha, apenas espaçosas salas com prateleiras e livros, cadernos manuscritos em línguas conhecidas e desconhecidas, conjugadas para formar o que pareciam ser volumes inteiros sobre atividade cultista e magia negra.

Isto nada mais fez para além de aumentar as minhas suspeitas. Passei uns bons 35 minutos do meu dia na investigação daquele recinto, procurando provas de sequestro e comportamento violento. Mas, fora os curiosos interesses do proprietário que, aparentemente, não se encontrava em casa, nada mais me captou o olhar objetivo. Nada a não ser uma muito bem escondida passagem secreta, ativada a partir de uma combinação específica de livros que, quando extraídos dos seus respetivos locais, formavam a solução ao bem escondido criptograma.

Abriu-se então uma passagem atrás de uma das estantes. Eu, obviamente, entrei, em frente a um atónito Vincent Sinatra, que deixava de desconfiar das minhas qualidades enquanto detetive. Desci um curto conjunto de degraus com uma lanterna em punho, a minha aliada mais confiável contra as influências da sombra. Travámos o nosso movimento quando penetrámos numa divisão de portentosas dimensões, paredes descaídas formando curiosos ângulos em relação ao solo. Era o único ponto iluminado de toda a passagem subterrânea, alumiado exclusivamente pelo dançante calor de vários velas. Num pedestal, ao fundo da sala, um livro. Bastou um rápido olhar pela sua capa para Sinatra, perito no assunto, deduzir que se tratava de uma cópia barata do famoso "Chironoscrino", o grimório de pele viva.

Não para meu espanto, que sou um investigador nato e adaptável, mas estimulando-me um sentimento de nojo e repulsa, povoava todo o pavimento acimentado uma fila extensa de cadáveres infantis. Todos repousavam, de braços cruzados sobre o peito, em caixões abertos e etiquetados. Nas etiquetas: nome, sexo, idade, peso, altura, família e uma resumida "biografia pré-homicídio premeditado".

Foi examinando as já referidas etiquetas que reparei num nome que fez o meu corpo estremecer. O tal nome era nada mais, nada menos que "Vincent Sinatra". O meu cérebro, em permanente pulsão de dúvidas e fúrias, só conseguia perguntar uma mesma questão de forma repetitiva: "O quê!?". E o meu corpo moveu-se rápidamente em direção ao livro no pedestal. Atuei apenas por instinto, corri para proteger aquilo que mais me pareceu precioso. Não a minha vida, porque isso já nem me parecia digno de proteção, mas sim um sinistro conjunto de páginas manuscritas. Era um manual com macabros rituais descritos ao pormenor, como a transmutação necessária para aumentar a longevidade da vida humana.

De repente, os cadáveres ergueram-se dos seus caixões. Saliva cobria-lhes os queixos e a carne tenra era, em tempo real, decomposta por inúmeros organismos fúngicos. Vários deles já nem possuíam olhos ou cartilagens nas orelhas. Larvas de mosca, famintas e gordurosas, procuravam compensar essas ausências. Sangue seco sobre as bochechas, outrora rosadas, agora frias como gelo. Cabelos longos, carecas feridas por lâminas no momento da morte. Era possível testemunhar alguns crânios amarelados emergindo daquelas cabeças. Esses cadáveres, esses mortos assim não tão mortos, limitaram-se a rodear-me.

 O chão estava molhado, provavelmente devido às mais recentes tempestades que sobrevoavam Patrick Kobinson, o homem mais estranho da cidade de Widowsmyre e o segundo caixão da fila. Ele retornou ao seu assombroso domicílio, apesar de, no fundo, nunca ter saído em primeiro lugar. Sempre estivera comigo. "Sinatra", sempre a meu lado. Mas ele não me queria a mim. Levou-me até à minha própria casa, onde acordei na manhã seguinte. Encontrava-me envolto em potentes náuseas que me atormentavam e o meu cobertor era uma foto – eu e o meu filho. A minha memória podia agora comparar-se a uma nuvem que, subitamente, evaporou. Ele estava comigo, adormecido no banco traseiro do meu carro, entediado daquela grande viagem, a sua última.

Foi no dia seguinte que vocês, caros colegas da polícia de Nezca, me condenaram pelo desaparecimento do meu próprio primogénito.

E este, meus caros amigos, é o meu único depoimento.

 

John Cavendish


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