Girls and Blood — Reimagined Twilight escrita por Azrael Araújo


Capítulo 12
Eleven




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/743587/chapter/12

O resto do dia foi tranquilo e produtivo; terminei o trabalho antes das oito. Charlie chegou em casa com muitos peixes, e fiz uma nota mental para comprar um livro de receitas de peixe quando estivesse em Seattle na semana seguinte... Mas eu ainda não havia conversado com Riley...

Naquela noite, dormi sem sonhos, exausta por ter começado o dia tão cedo. Acordei, pela segunda vez desde que cheguei a Forks, com a luz amarela de um dia de sol. Cambaleei até a janela, olhando atordoada ao ver que quase não havia uma nuvem no céu. Abri a janela e respirei o ar relativamente seco. Estava quase quente e praticamente não ventava. Meu sangue vibrou nas veias.

Charlie estava terminando o café da manhã quando eu desci e percebeu meu estado de espírito de imediato.

— Está um lindo dia — comentou.

— É — concordei com um sorriso.

Quando ele dava um sorriso assim tão grande, era mais fácil imaginá-lo como o homem que se casou impulsivamente com uma garota bonita que mal conhecia quando só tinha três anos a mais do que eu agora. Não havia sobrado muito daquele homem. Ele foi se apagando com os anos, como o cabelo castanho encaracolado que foi se afastando da testa.

Tomei o café da manhã com um sorriso no rosto, vendo a poeira se agitar na luz do sol que jorrava pela janela dos fundos. Charlie gritou um até logo, e ouvi a radiopatrulha sair da casa. Hesitei a caminho da porta, a mão na capa de chuva. Seria uma provocação com o destino deixá-la em casa. Dobrei-a sobre o braço e saí para a luz mais brilhante que eu via em meses.

Deixei as duas janelas do Tracker quase completamente abertas.

Fui uma das primeiras a chegar na escola; nem mesmo olhei o relógio, na pressa que tive de sair. Estacionei e segui para os bancos de piquenique no lado sul do refeitório. Os bancos ainda estavam meio molhados, então eu me sentei em cima da capa de chuva, feliz por encontrar utilidade para ela. Meu dever de casa estava pronto, mas havia alguns problemas de trigonometria que eu não tinha certeza de que estavam certos. Abri o livro, mas, na metade da revisão do primeiro problema, minha mente já estava longe, vendo o sol brincar nas árvores de tronco vermelho. Rabisquei sem atenção nas margens do meu dever de casa. Depois de alguns minutos, de repente percebi que tinha desenhado cinco pares de olhos escuros me encarando da página. Passei a borracha neles.

— Isabella! — ouvi alguém gritar, e parecia Mike.

Olhei em volta e percebi que a escola tinha se povoado enquanto eu estava sentada ali. Todos estavam de camiseta, alguns até de short, apesar de a temperatura não poder ser de mais do que quinze graus. Mike vinha na minha direção com uma bermuda clara e uma camiseta regata.

— Oi, Mike — respondi.

Ele veio se sentar ao meu lado, o sol cintilando no cabelo empapado em gel, um sorriso se espalhando pelo rosto. Estava tão contente em me ver que não pude deixar de retribuir.

— Lindo dia, não é?

— Do jeito que eu gosto — concordei.

— O que você fez ontem? — O tom de voz era um tanto possessivo, e lembrei o que Jake disse. As pessoas achavam que eu era namorada dele porque Mike queria que achassem isso.

Mas eu estava com o humor bom demais para me deixar afetar.

— Trabalhei no dever sobre Macbeth.

— Ah, é. É para a quinta, não é?

— Hmmm, para quarta, eu acho.

— Quarta? — O sorriso dele desapareceu. — Isso não é bom. Acho que vou ter que fazer hoje. — Ele franziu a testa. — Eu ia perguntar se você queria sair.

— Ah. — Fiquei abalada. Por que eu não podia mais ter uma conversa com Mike sem que ficasse constrangedor?

— Bom, a gente podia sair para jantar ou coisa assim... e eu podia fazer o trabalho depois. — Ele sorriu para mim, cheio de esperança.

— Mike... — Ai que droga. — Não acho que seria uma boa ideia.

Ele ficou com a cara no chão.

— Por quê? — perguntou, os olhos na defensiva. Meus pensamentos se voltaram para Edythe, e eu me perguntei se Mike estava pensando a mesma coisa.

— Olha, estou violando todos os códigos de garotas ao dizer isso, então não me dedure, tá?

— Códigos de garotas?

— Jeremy é meu amigo, e, se eu saísse com você, ele ficaria chateado.

Ele ficou me olhando.

— Eu nunca falei nada disso, tá? É sua palavra contra a minha.

— Jeremy? — perguntou ele, a voz tomada de surpresa.

— Falando sério, você é cego?

— Ah. — Ele expirou, parecendo atordoado. Hora de fugir.

Enfiei o livro na mochila.

— Não quero me atrasar de novo. Já estou na lista de Mason.

Andamos em silêncio para o prédio três, e ele tinha uma expressão desligada. Eu esperava que os pensamentos em que estivesse imerso o levassem na direção correta.

Quando vi Jeremy na aula de trigonometria, ele estava tão animado pelo dia de sol quanto eu. Ele, Angela e Erica iam a Port Angeles ver um filme e encomendar flores para o baile, e fui convidada. Fiquei indecisa. Seria legal sair da cidade, então respondi com um talvez, mentindo sobre deveres de casa atrasados.

Finalmente fomos almoçar. Eu estava tão ansiosa para ver não só Edythe, mas todos os Cullen, que foi quase doloroso. Precisava compará-los com as desconfianças que me assombravam. Talvez, com todos juntos em um mesmo lugar, eu conseguisse ter certeza de que estava errado, de que não havia nada de sinistro neles. Assim que passei pela soleira da porta do refeitório, senti o primeiro tremor de medo latejar no meu estômago. Eles conseguiriam saber o que eu estava pensando? E depois, uma sensação diferente me abalou: Edythe estaria me esperando de novo?

Como era minha rotina, olhei primeiro para a mesa dos Cullen. Senti uma pequena onda de pânico quando vi que estava vazia. Com esperança cada vez menor, meus olhos varreram o resto do refeitório, torcendo para encontrá-la sozinho. O local estava quase lotado, a aula de espanhol nos atrasara, mas não havia sinal de Edythe nem de ninguém da família dela. De uma hora para outra, meu bom humor desapareceu.

Estávamos tão atrasados que todos já estavam em nossa mesa. Evitei a cadeira vazia ao lado de Mike e fui para outra perto de Riley. Percebi vagamente que Mike tinha guardado uma cadeira para Jeremy, cujo rosto se iluminou com isso.

Angela fez algumas perguntas em voz baixa sobre o trabalho de Macbeth, que respondi com a maior naturalidade possível enquanto caía numa espiral de infelicidade. Ela também me convidou para ir com eles à noite, e dessa vez eu concordei, procurando uma distração.

E se Edythe soubesse o que fiz no fim de semana? E se mergulhar mais fundo nos segredos tivesse levado ao desaparecimento dela? E se eu tivesse provocado aquilo?

Percebi que me agarrava ao último fiapo de esperança quando entrei na aula de biologia, vi o lugar dela vazio e senti uma nova onda de decepção.

O resto do dia se arrastou. Não consegui acompanhar a discussão da aula de biologia, e nem tentei prestar atenção na aula da treinadora Clapp sobre as regras de badminton. Fiquei feliz por sair do campus, assim eu poderia parar de fingir que estava bem até a hora de ir a Port Angeles. Mas, logo depois de entrar pela porta de casa, o telefone tocou. Era Jeremy, para cancelar nossos planos. Tentei parecer feliz com o fato de Mike tê-lo convidado para jantar, mas acho que só pareci irritada. Ele reprogramou o cinema para terça.

Isso me deixou sem distrações. Temperei o peixe para o jantar e terminei meu dever, mas só levei meia hora. Chequei meu e-mail e percebi que vinha ignorando minha mãe. Ela não estava muito feliz.

 

Mãe, não surte

Hoje fez sol — eu sei, estou chocada também — então vou ficar lá fora e me encharcar do máximo de vitamina D que eu puder. Eu te amo,

Isabella.

 

Também tinha um de Lauren, mas a mensagem continha apenas um número de telefone — que julguei ser o dela. Anotei desajeitadamente em uma folha solta e fiz uma nota mental para mandar-lhe um SMS mais tarde. De jeito nenhum eu iria ligar.

Peguei meu exemplar de Vinte mil léguas submarinas e uma colcha velha do armário de roupas de cama no alto da escada.

Lá fora, coloquei a colcha no meio do ponto mais ensolarado do pequeno quintal quadrado de Charlie e me joguei em cima. Folheei o livro, esperando que uma palavra ou frase captasse meu interesse, normalmente uma lula gigante ou uma narwhal eram adequadas, mas dessa vez folheei o livro todo duas vezes sem encontrar nada de intrigante o bastante para me fazer começar a ler. Fechei o livro.

Tudo bem, tanto faz. Eu me bronzearia, então.

Deitei de costas e fechei os olhos.

Tentei argumentar comigo mesma. Não havia motivo para surtar. Edythe disse que ia acampar. Talvez os outros planejassem se juntar a ela. Talvez todos tivessem decidido ficar mais um dia porque o tempo estava tão bom. Faltar alguns dias não afetaria as notas perfeitas dela. Eu podia relaxar. Amanhã eu a veria novamente, sem dúvida.

Mesmo se ela ou algum dos outros conseguisse saber o que eu estava pensando, isso não era motivo para sumirem. Eu não acreditava em nada daquilo, e eu não ia mesmo dizer nada para ninguém. Era burrice. Eu sabia que a ideia toda era ridícula. Obviamente, não havia nenhum motivo para ninguém, vampiro ou não, reagir com exagero.

Era igualmente ridículo imaginar que alguém era capaz de ler meus pensamentos. Eu precisava parar de ser tão paranoica. Edythe voltaria amanhã. Ninguém achava neurose uma coisa atraente, e eu duvidava de que ela fosse a primeira.

Tranquila. Relaxada. Normal. Eu conseguia lidar com isso. Era só inspirar e expirar.

Quando dei por mim, percebi o som da viatura de Charlie virando no piso da entrada de carros. Sentei-me, surpresa de ver que a luz sumiu e eu estava nas sombras das árvores agora. Eu devia ter adormecido. Olhei em volta, ainda desnorteada, com a sensação repentina de que não estava só.

Paranóica.

— Charlie? — perguntei. Mas consegui ouvir a porta batendo na frente da casa.

Fiquei de pé num pulo, tensa e me sentindo idiota por me sentir assim, e peguei a colcha e meu livro. Corri para dentro a fim de colocar o óleo para esquentar no fogão; graças ao meu cochilo, o jantar sairia atrasado. Charlie estava pendurando o cinto da arma e tirando as botas quando entrei.

— Desculpe, o jantar ainda não está pronto. Eu dormi lá fora. — Dei um bocejo enorme.

— Não se preocupe com isso — disse ele. — Eu queria pegar o placar do jogo, de qualquer forma.

Para ter alguma coisa para fazer, vi TV com Charlie depois do jantar. Não havia nada a que eu quisesse assistir, mas ele sabia que eu não gostava de basquete, então colocou numa série estúpida de que nenhum de nós gostou. Mas ele parecia feliz por fazermos alguma coisa juntos. E foi bom, apesar da minha depressão idiota, fazê-lo feliz.

— Só pra você saber, pai — falei durante um intervalo — Vou ao cinema com um pessoal da escola amanhã à noite, então você vai estar por sua conta.

— Alguém que conheço? — perguntou ele.

Quem ele não conhecia na cidade?

— Jeremy Stanley, Angela Weber e Erica-alguma-coisa

— Yorkie — disse ele.

— Tanto faz...

— Tudo bem, mas tem aula no dia seguinte, então não exagere.

— Vamos logo depois da aula para não voltarmos tarde. Quer que eu deixe alguma coisa para o seu jantar?

— Querida, eu me alimentei por dezesseis anos antes de você vir para cá — lembrou ele.

— Não sei como sobreviveu — murmurei.

 

Tudo pareceu menos horrível de manhã, estava sol de novo, mas tentei não me encher de esperanças. Vesti uma blusa de algodão mais fina e saí para a batalha.

Eu tinha planejado minha chegada à escola de modo que mal tivesse tempo para entrar na sala. Meu humor despencou rapidamente enquanto eu circulava pelo estacionamento cheio, procurando por uma vaga... e também procurando o Volvo prata que claramente não estava ali.

Foi igual ao dia anterior: eu não conseguia evitar que as sementes da esperança brotassem na minha mente, para depois vê-las sendo esmagadas sem dó enquanto eu procurava em vão pelo refeitório e me sentava no lugar vazio na carteira de biologia. E se ela nunca mais voltasse? E se eu nunca mais a visse?

A ida a Port Angeles seria aquela noite — eu mal podia esperar para sair da cidade, para que pudesse parar de olhar por sobre o ombro, na esperança de vê-la aparecer do nada, como sempre fazia. Jurei ficar de bom humor para não irritar Jeremy e Angela. Talvez eu conseguisse encontrar uma boa livraria lá. Eu não queria pensar que podia ter que ir sozinha a Seattle no fim de semana — o que me lembrava que eu estava enrolando para ter uma conversa decente com Riley.

Ela não iria ficar irritada, não é? Afinal, ela só... Me convidou primeiro... E eu prometi que iria... E ela havia ficado tão feliz...

Depois da aula, Jeremy me acompanhou até em casa com seu velho Mercury branco para que eu pudesse deixar o Tracker e fomos para a casa de Angela. Ela estava nos esperando. Minha empolgação foi aumentando à medida que saíamos dos limites da cidade. Jeremy dirigia mais rápido do que Charlie, então chegamos a Port Angeles às quatro horas. Fomos ao florista primeiro, onde a mulher atrás da bancada logo convenceu Angela a mudar de rosas para orquídeas. Ela tomava decisões rápido, mas Jeremy demorou bem mais tempo para decidir o que queria. A vendedora fez parecer que todos os detalhes seriam muito importantes para os vestidos, mas eu tinha dificuldade em acreditar que alguém se importaria muito. Enquanto Erica discutia cores de fita com a mulher, Angela e eu nos sentamos em um banco perto da vitrine — Jeremy havia se enfiado não sei onde.

— Ei, Angela... — Ela ergueu o rosto, provavelmente por notar a tensão na minha voz.

— O quê?

Tentei falar mais como uma pessoa aleatoriamente curiosa, como se não ligasse para qual seria a resposta. — Hã, os Cullen faltam muita aula? Esse é o comportamento normal deles?

Angela olhou por cima do ombro, pela vitrine, quando respondeu, e tive certeza de que ela estava sendo legal. Sem dúvida conseguia ver o quanto eu me sentia constrangida de perguntar, apesar do meu esforço para parecer to nem aí.

— Faltam. Quando o tempo está bom, eles saem para acampar sempre, até a doutora. Eles adoram a natureza, eu acho.

Ela não fez nenhuma pergunta e nem comentário malicioso sobre minha paixonite óbvia e patética. Angela devia ser a garota mais legal da Forks High School.

— Ah — eu disse, e deixei o assunto de lado.

Depois do que pareceu ser muito tempo, Jeremy finalmente decidiu comprar flores brancas e um laço branco, o que foi meio anticlimático. Mas, quando os pedidos foram assinados e pagos, ainda tínhamos tempo antes de o filme começar. Erica queria ver se havia alguma coisa nova na loja de videogames algumas quadras a leste.

Nerd.

— Vocês se importam se eu for fazer uma coisa? Encontro vocês no cinema.

— Tudo bem.

Jeremy já estava arrastando Angela rua acima.

Foi um alívio ficar sozinha de novo. O passeio estava dando errado. Claro, a resposta de Angela  foi encorajadora, mas eu não conseguia me obrigar a ficar de bom humor.

Nada me ajudava a pensar menos em Edythe. Talvez um livro muito bom.

Segui na direção oposta a deles, querendo ficar sozinha. Encontrei uma livraria algumas quadras ao sul do florista, mas não era o que eu estava procurando. As vitrines estavam cheias de cristais, apanhadores de sonhos e livros sobre cura espiritual. Pensei em entrar para perguntar onde havia alguma outra livraria, mas uma olhada no hippie cinquentão com sorriso sonhador atrás da bancada me convenceu de que eu não precisava ter aquela conversa.

Eu encontraria uma livraria normal sozinha.

Andei por outra rua e fui parar em uma ruazinha menor que me confundiu. Eu esperava estar indo na direção do centro de novo, mas não tinha certeza de que a rua faria uma curva na direção que eu queria. Eu sabia que devia estar prestando mais atenção, mas não consegui parar de pensar no que Angela disse e no sábado e no que eu devia fazer se ela não voltasse, e olhei para a frente e vi um Volvo prata estacionado na rua. Não era um sedã, era um utilitário, mas mesmo assim fiquei zangada de repente. Seriam todos os vampiros tão traiçoeiros?

Segui numa direção que achei que fosse nordeste, a caminho de uns prédios de frente de vidro que pareciam promissores, mas, quando cheguei lá, eram só uma loja de conserto de aspiradores e outra loja vazia. Dobrei a esquina da loja de consertos de aspiradores para ver se havia mais ali.

Era o caminho errado, só levava a um beco lateral onde ficavam os lixões. Mas não estava vazio. Ao olhar para o círculo de pessoas, tropecei no meio-fio e cambaleei para a frente, fazendo barulho.

Seis rostos se viraram na minha direção. Havia quatro homens e duas mulheres. Uma das mulheres e dois homens se viraram rapidamente de costas para mim e enfiaram as mãos nos bolsos, e tive a impressão que estavam escondendo aquilo que estavam segurando. A outra mulher tinha cabelo preto e pareceu estranhamente familiar ao olhar na minha direção. Mas não parei para pensar de onde a conhecia. 

Quando um dos homens se virou, eu tive o vislumbre de uma coisa que parecia uma arma enfiada na parte de trás da calça jeans.

Comecei a andar para atravessar o beco e ir para a rua seguinte, como se não os tivesse reparado ali. Assim que saí de vista, ouvi uma voz sussurrar atrás de mim:

— Ela ta de olho na gente.

Olhei para trás e percebi que estava mais longe da rua principal do que tinha percebido. Apertei o passo e olhei para o chão para não tropeçar de novo.

Fui parar em uma calçada que levava por vários armazéns cinza, cada um com portas amplas para carga e descarga de caminhões, presas com cadeados durante a noite. O lado sul da rua não tinha calçada, só uma cerca com arame farpado em cima para proteger um terreno de armazenamento de partes de motor. Eu já tinha passado da parte de Port Angeles que os visitantes deviam ver.

Estava escurecendo agora, as nuvens tinham voltado e se acumulavam no horizonte, criando um crepúsculo adiantado. Eu tinha deixado o casaco no carro de Jeremy, e um vento frio me fez enfiar as mãos nos bolsos. Uma van passou por mim, e a rua ficou vazia.

— Ei, vadia — chamou uma voz de mulher atrás de mim.

Olhei para trás, e ali estava a mulher que vi antes, a familiar. Atrás dela estavam dois dos homens do beco, um cara alto e careca e o mais baixo que eu achava que era o que tinha uma arma.

— O quê? — perguntei, indo automaticamente mais devagar. Ela estava olhando diretamente para mim. — Me desculpe, você está falando comigo?

— Me desculpe? — repetiu ela. Eles ainda estavam andando na minha direção, e eu recuei para o lado sul da rua. — Essa é sua palavra favorita, por acaso?

— Eu... Me desculpe. Não sei do que você está falando.

Ela repuxou os lábios, que estavam pintados de um vermelho escuro e grudento, e de repente eu soube onde a tinha visto. Ela era a garota em quem acertei a bolsa quando cheguei em Port Angeles. Eu até podia ver partes das tatuagens dos dois lados do pescoço dela.

— A gente tem uns assuntos inacabados, porquinha.

Tive que olhar para trás. Eu estava sozinha.

— Acho que vocês estão falando com a pessoa errada...

— Claro que estamos. — disse a mulher. — E você também não viu nada lá atrás, viu?

— Ver? Não. Não, eu não vi nada. — ergui as mãos.

Meu calcanhar bateu em alguma coisa enquanto eu recuava, e comecei a oscilar. Estiquei os braços para tentar me equilibrar, e o homem mais alto, que eu nunca tinha visto, reagiu.

Ele apontou uma arma para mim.

Eu achava que era o cara mais baixo que estava com uma arma. Talvez todos estivessem.

— Ei, ei — falei, levantando as mãos ainda mais para ele ver que estavam vazias. — Eu sou só uma garota. Ainda estou no colégio.

Fui recuando até encostar na cerca.

— Você me acha burra? — perguntou a mulher. — Acha que seu disfarce à paisana me engana? Vi você com seu parceiro, policial.

— O quê? Não, era o meu pai — eu disse, e minha voz falhou.

Ela riu.

— Então você é realmente uma porquinha?

— Sim, claro. Então isso está esclarecido. Vou parar de atrapalhar vocês agora... — Eu comecei a chegar para o lado na cerca.

— Pare.

Era o homem careca, ainda apontando a arma. Eu congelei.

— O que você está fazendo? — indagou o homem baixo. A voz estava baixa, mas a rua estava muito silenciosa, e consegui ouvi-lo claramente.

— Não acredito nela — disse o alto, cuspindo saliva na minha direção.

A mulher sorriu.

— Como é aquela música pirata? Os mortos não contam histórias...

— O quê? — gemi. — Não, olha, isso... Isso não é necessário. Não vou contar nada. Não tem nada para contar. Eu nem vi nada, pelo amor de Deus...

— Isso mesmo — concordou ela. Olhou para o homem alto e assentiu.

— Olha, a minha carteira está aqui no meu bolso — ofereci. — Não tem muita coisa dentro, mas podem ficar com tudo...

Comecei a mover a mão na direção do bolso, mas foi o gesto errado. A arma se levantou dois centímetros.

Levantei as mãos de novo.

— Precisamos ser silenciosos — disse o mais baixo, e se inclinou para pegar um pedaço de cano na vala. — Guarde a arma. Podemos jogar ela naquele beco lá na frente, tem umas latas de lixo lá...

Assim que a arma fosse abaixada, eu ia correr, e o careca parecia saber disso. Ele hesitou na hora que a mulher tatuada partiu para cima de mim.

Zigue-zague, foi o que meu pai me disse uma vez. 

Era difícil acertar um alvo em movimento, principalmente se não estivesse se movendo em linha reta. Ajudaria se eu não estivesse fadada a tropeçar em alguma coisa. Só uma vez, que eu conseguisse correr com pés firmes. Eu podia fazer isso uma vez, não podia? Só uma vez, quando minha vida dependia disso?

O quanto um ferimento não fatal de bala doeria? Eu conseguiria continuar correndo com a dor? Eu esperava que sim.

Tentei destravar os joelhos. O homem com o cano estava a poucos passos de mim agora, seus olhos brilhando de forma quase prazerosa.

Ah merda, eu choraminguei.

Um cantar de pneus o fez parar. Todos olhamos quando o barulho ficou mais agudo.

Faróis apareceram na esquina e seguiu na minha direção. O carro ficou a centímetros de bater na tatuada, obrigando-o a pular para sair do caminho. A cerca tremeu quando ela se chocou nela. Eu me virei para correr, mas o carro sambou inesperadamente e derrapou até parar com a porta do passageiro se abrindo a uma pequena distância de mim.

— Entra — sibilou uma voz furiosa.

Pulei para o interior escuro do Volvo, sem nem questionar como ela havia ido parar ali, com o alívio e o pânico tomando conta de mim ao mesmo tempo.

E se ela se machucasse? Puxei a porta e gritei:

— Dirija, Edythe, saia daqui. Ele tem uma arma.

Mas o carro não se mexeu.

— Fique com a cabeça abaixada — ordenou ela, e ouvi a porta do motorista se abrir.

Estiquei a mão cegamente na direção do som da voz dela, e minha mão segurou o braço fino e frio. Ela parou quando toquei nela. Nada cedeu sob a pressão dos meus dedos, embora eu estivesse segurando com força o couro da jaqueta dela.

— O que você está fazendo? — perguntei. — Dirija!

Meus olhos estavam se ajustando, e consegui identificar os olhos dela no brilho refletido dos faróis. Primeiro, olharam para a minha mão segurando o braço dela, depois se apertaram e olharam pelo para-brisa para o lugar onde o homem e a mulher deviam estar olhando, avaliando.

Eles podiam atirar a qualquer momento.

— Me dê só um minuto, Bella. — Consegui perceber que os dentes dela estavam trincados.

Eu sabia que ela não teria problema para se soltar de mim, mas parecia estar esperando que eu soltasse. Isso não aconteceria.

— Se você for lá para fora, eu vou com você — falei baixinho. — Não vou deixar você levar um tiro.

Os olhos dela observaram a rua por mais meio segundo, então a porta dela se fechou e demos ré numa velocidade que parecia ser de noventa por hora.

— Tudo bem — bufou ela.

O carro girou em um arco fechado quando disparamos de ré por uma esquina, e de repente seguimos em frente.

— Coloque o cinto de segurança — disse ela.

Tive que soltar o braço dela para obedecer, mas devia ser mesmo uma boa ideia. Não era uma coisa normal ficar segurando uma garota daquele jeito. Ainda assim... fiquei triste de soltar.

O estalo do cinto de segurança soou alto na escuridão.

Ela virou para a esquerda, depois passou por várias placas de pare sem parar. Mas eu me sentia estranhamente tranquilo e nada preocupada com nosso destino. Olhei o rosto dela, iluminado só pelas luzes do painel, e senti um profundo alívio que ia além da minha fuga afortunada.

Ela estava aqui. Era real.

Demorei mais do que alguns minutos olhando o rosto perfeito para perceber mais do que isso. Para perceber que ela estava absurdamente furiosa.

— Você está bem? — perguntei, surpresa ao constatar como minha voz estava rouca.

— Não — disse ela rispidamente.

Esperei em silêncio, observando seu rosto enquanto os olhos em brasa olhavam para a frente.

O carro parou de repente, com os freios gritando.

Olhei em volta, mas estava escuro demais para ver alguma coisa além do contorno vago de árvores nas laterais da rua. Não estávamos mais na cidade.

— Você está machucada, Bella? — perguntou ela, a voz dura.

— Não. — Minha voz ainda estava rouca. Tentei dar um pigarro baixo. — Você está?

Ela olhou para mim nessa hora, com uma espécie de descrença irritada.

— É claro que não estou machucada.

— Que bom — eu disse. — Hã, posso perguntar por que você está tão furiosa? Eu fiz alguma coisa?

Ela expirou repentinamente. — Não seja burra, Bella.

— Desculpe.

Ela lançou outro olhar de descrença e balançou a cabeça.

— Você acha que ficaria bem se eu deixasse você aqui no carro só por alguns...

Antes que ela pudesse terminar, eu estiquei o braço e segurei a mão dela, apoiada no câmbio. Ela reagiu ficando paralisada de novo; mas não afastou a mão.

Era a primeira vez que eu tocava na pele dela, sem ser acidental e nem por uma fração de segundo. Apesar de a mão dela estar tão fria quanto eu esperava, a minha pareceu queimar com o contato. A pele dela era tão macia.

— Você não vai a lugar nenhum sem mim.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

TT: @pittymeequaliza