A Obra-Prima escrita por Viúva Negra


Capítulo 8
Capítulo 8




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/743513/chapter/8

O espanto de estar diante de seu próprio busto congelou sua espinha. Jenny sentia-se feito um fantasma admirando seu próprio semblante placidamente adormecido. Uma experiência demasiada estranha da qual emudecera quase todos os seus sentidos. Por um instante, ela fora mesmo um fantasma; frio, insensível, inerme...

— Não está magnífica?

Carlos havia dito aquilo. Por um momento a professora se esquecera da presença do escultor; agora o percebia tão perto, bem ao seu lado. As mãos cruzadas junto ao peito tal qual uma mãe acompanhando tensa o jogo de futebol do filho, torcendo que marcasse pelo menos um gol.

Sim, Carlos estava ali, tão inerte quanto Jenny; contudo estava mergulhado em emoções distintas. A jovem ouvia seus suspiros trêmulos, eufóricos e aquilo reacendeu seus sentidos. Há muito tempo não o via tão orgulhoso, satisfeito... Feliz.

Apesar do entusiasmo do rapaz, a bela oriental sentiu novamente o nervosismo fremir seus membros quando questões sem respostas lhe invadiram a mente: Há quanto tempo estivera ali amarrada? Onde Carlos conseguira um molde de seu rosto para fazer a escultura? Quanto tempo havia dormido? E, a pior pergunta, aquela que fazia sua cabeça lancinar: Por quê?

Uma centelha de carinho aqueceu seu coração; somente ela sabia o quanto o artista estava frustrado, desiludido e enfraquecido após ter sido confrontado por seus próprios medos. E vê-lo agora, tão seguro e radiante ao final de um trabalho, e não de qualquer trabalho, de uma releitura sua, de seu rosto, de seu busto!

A pergunta de Nunes somente naquele instante penetrara a consciência de Jennifer e a fizera ficar confusa. Não compreendia como o namorado podia julgar sua peça magnífica... Se não estava terminada.

Eram óbvios os detalhes ausentes naquela escultura. Apesar de não deixar sombras de dúvidas de que aquele busto pertencia à Jenny, estava incompleto. A superfície de sua cabeça era lisa e brilhante feito uma bola de cristal, sua outra face não possuía os sedosos cabelos de ébano que caíam como cascatas de puro e valioso petróleo por seus ombros bronzeados; tampouco possuíam seus carnudos e apetitosos lábios, os mesmos que faziam Carlos deleitar-se por horas, se possível. Todavia, o detalhe mais intrigante para a jovem professora, eram as grandes lacunas onde deveriam estar seus olhos, suas lindas ônix aconchegadas em estreitas fendas que lhe davam a luz tão diferente... Tão única... Tão magnífica!

A moça não fazia ideia do por quê Nunes não ter colocado tais importantes detalhes e, mais uma vez, decidiu perguntar:

— Querido, a obra está incompleta, por quê?

Um tênue salto jubiloso de Carlos deixou-o frente a frente com a namorada. Ela contemplou o sorriso largo que luzia dentre aquela espessa barba escura, parecia uma lua minguante em um céu sem estrelas.

— Oh! Que bom que notou, querida.

Ele a chamou de querida, talvez as coisas estejam melhorando...

— Estava esperando que me perguntasse, pois esta... É a melhor parte.

O sorriso jovial esvaiu-se obscurecendo por completo sua face; seus olhos penetrantes ensombreceram-se e dedicaram-se a encarar a figura imóvel diante de si. Seus grandes e finos dedos correram pela quente tez daquela honorável mulher, era como estar diante de um anjo.

— Você sempre soube — começou ele alisando o rosto umedecido por suor e lágrimas de Jenny —, melhor do que ninguém que eu precisava me reerguer, voltar ao auge de minha carreira, pois não sei fazer mais nada. Eu não sirvo pra mais nada. Mas fracassei... Eu só destruía tudo o que tocava ao invés de criar, de fazer viver.

— Você é um artista incrível, Carlos, eu sempre acreditei no seu potencial e sempre estive ao seu lado.

Jennifer deixou uma ou duas lágrimas molharem os dedos frios do namorado. Sim, estava triste; não compreendia o fato de Nunes sentir-se tão perdido, tão inútil. Alguma coisa mudara dentro dele depois do dia no qual recebera aquelas duras críticas, algo morrera e o pobre artista fazia tudo que estava ao seu alcance para tentar reviver, porém suas tentativas não deram o resultado esperado.

Carlos sentiu aquele líquido quente na ponta de seus dedos e também se deixou dominar por um sentimento forte, algo imensurável e belo. Sentia a beleza deslizando ardorosamente por seu rosto, contudo era um sentimento traiçoeiro, pois somente podia senti-lo, mas não retratá-lo para que outros pudessem compreender a forma, a cor, a aparência daquilo que queimava quase doloroso em seu peito.

— A minha criatividade se foi, Jenny, e com ela foi-se minha alegria de viver. Me sinto como um boneco feito tantos que surgiram de minhas mãos e, acima de tudo, de minha mente... Eu estou perdido, esquecido. Preciso voltar ao topo, querida, preciso sentir o calor da admiração chovendo sobre mim. Eu preciso ser de novo um artista e para isso, só existe uma saída...

O corpo do escultor tornou-se ereto, suas mãos caíram e lentamente pôs-se a caminhar em direção à escultura não terminada. Por um instante, Carlos acariciou a textura que cuidadosamente dera às bochechas da outra face de Jenny. Seus olhos buscavam algo que qualquer outro olhar não conseguia ver e naquele breve silêncio, sua voz soou fraca, quebrando-o de modo tão melancólico, como se fosse um crime fazê-lo.

— O plágio. A imitação. A cópia cretina e barata de um alguém que clama por glória, por fama... por vida...

— Quem você está plagiando, Carlos?

A cabeça do rapaz elevou-se morosamente, ele buscou a luz mortiça da lâmpada solitária. Seu olhar tornou-se dourado, reluzente, porém era um brilho falso. Há muito tempo aquelas írises eram opacas, frias, distantes, a vida realmente havia lhe abandonado.

— O maior artista de todos... O criador das coisas mais belas e complexas que existem nesse mundo.

Sua expressão absorta mudou abruptamente. Nunes girou nos calcanhares e encarou a namorada com aterradora perplexidade; aquela expressão quase psicótica em seu semblante sem cor deixava a moça um tanto assustada.

— Mas eu não sou bom o bastante. Eu não consigo reproduzir os recursos tão encantadores e intrigantes que Ele usou. Só consigo isto — disse ele apontando para a escultura —, uma simples casca..., mas eu descobri um jeito de melhorar!

— E qual seria? — inquiriu a professora de forma suave, procurando conter e ocultar seu medo crescente.

O escultor voltou mais uma vez para junto de sua velha mesa de madeira, testemunha e cúmplice de suas maiores conquistas e cuja qual prendia o anjo que piedosamente lhe fora concedido por Ele, o Divino Criador.

Carlos sentia o calor daquela pele macia, aquilo aquecia as palmas de suas mãos como se as colocasse perto de um forno a lenha numa tarde fria de inverno; era reconfortante, delicioso, real. Não conseguiria fazer aquilo, nem em um milhão de anos, nem estudando todas as técnicas conhecidas de escultura, nunca seria capaz de atingir tal imaculada perfeição.

— Já que o plágio não é suficiente — começou ele segurando delicadamente o queixo da moça —, eu tenho de fazer algo a mais... Eu tenho de roubar.

A palavra adormecera sua língua feito um remédio amargo, sentia repulsa ao dizê-la, porém Carlos sabia que não havia outra alternativa. Seus dedos contraíram-se, pois o pensamento de tomar algo de outro não era comum em sua vida, nunca necessitara de palpites ou referências, porém agora... Agora Nunes estava no fundo do poço, sentindo o frio endurecer seus músculos e o escuro tomar quase que por completo seus olhos. Seria esquecido como um brinquedo que acidentalmente caíra naquele breu desconhecido, a menos que...

— Eu não compreendo, Carlos, de quem você irá roubar?

A pele do queixo de Jennifer sentiu uma leve corrente gélida penetrar-lhe os poros quando o escultor afastou sua mão daquele semblante tão pequeno e tão confuso. Com a visão limitada que possuía, pôde enxergar o namorado caminhar lento tal qual um morto-vivo até um balcão junto de uma das paredes da garagem, suas mãos foram ocultadas por seu corpo esquálido e a jovem não conseguiu ver o que ele estava fazendo ali.

O ruído de objetos metálicos batendo uns contra os outros a deixara apreensiva, o que o rapaz estaria procurando?

O que quer que fosse, rapidamente havia encontrado.

Aqueles poucos momentos em silêncio deixaram a garota nervosa, sentiu-se tão solitária ao ouvir o som de sua própria e pesada respiração enquanto a do namorado era quase inexistente. Ela questionou-se, por um instante, se ele estaria mesmo vivo. Então Jenny pôde ver, assim que Nunes se virou em sua direção, o pequeno canivete retrátil no qual seus dedos delicadamente se entrelaçavam feito galhos de uma trepadeira.

Mais uma vez tivera a sensação da qual o canto de seus olhos puxados se rasgavam, tal fora o modo como os arregalou. Tudo naquele lugar parecia sujo e enferrujado, contudo o brilho puro e prateado daquela pequena lâmina lhe indicou que estava enganada, que o namorado era descuidado em muitos aspectos, porém a aparência impecável daquela arma mostrava que Nunes cuidara muito bem dela, como se esperasse usá-la em algum momento.

O andar moroso do escultor acelerou o coração da professora. Havia calma... Uma incômoda calma instalada naquele corpo macilento que provocava calafrios nos músculos endurecidos da jovem oriental.

Os dedos da mão esquerda de Carlos correram pela testa suada de Jenny, contudo não havia calor naquele toque. Era só um atrito estranho, o qual causara pavor na espinha da inerme professora.

Ela viu, bem no fundo daqueles olhos sem luz, a silhueta prateada da lâmina; o gume afiado estava entre ambos e refletia seus rostos. De um lado, a face amedrontada da garota imóvel. Do outro, o semblante plácido de Carlos. Aquela lâmina os dividia definitivamente, não eram mais um só coração, um só pensamento, uma só alma. Algo fora arrancado, dilacerado e não pertenciam mais um ao outro... Eram lados opostos de uma mesma moeda.

— O que vai fazer comigo, Carlos? — perguntou Jenny sufocando o próprio choro. A mágoa de ter que admitir a si mesma que, apesar das tentativas, nada mais seria capaz de mudar o que estava feito ou o que iria ser feito.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Estamos na reta final desta novela, espero que estejam gostando, comentem para eu saber a opinião de vcs! ^^



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Obra-Prima" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.