Visões de um pesadelo escrita por Thaís H


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Por Sara ainda criança, em torno de 1980.



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Algo não fazia sentido. Estava tudo muito quieto em torno de mim.

Há poucas horas tudo estava normal: a mamãe e o papai gritavam um com o outro enquanto eu terminava meu quebra-cabeça.

Eu encaixei uma peça... “Você é um inútil nessa família”... e completei uma asa da borboleta azul.

Encaixei a penúltima peça... “Família? Você chama isso de família, Laura?”... e a borboleta azul ganhou suas antenas.

Encaixei a última peça... “Você não passa de uma bêbada louca”... e a borboleta azul já podia voar pelo mundo.

Olhei para o relógio e fiquei feliz com o que vi.

 —Woww dois minutos – disse com um sorriso bem grandão.

“Nãaao, por favor, para... eu imploro”.

­— Papai, papai – corri até o quarto com o quebra-cabeça em mãos – Eu consegui, fiz um novo recor... – O grito da mamãe me assustou e eu não pude terminar o que ia dizer.

Parei em frente à porta. Vi que, com uma mão, o papai segurava bem forte os braços da mamãe para trás; com a outra mão ele ergueu a garrafa de cerveja vazia, ele ia bater na mamãe.

— Papai? – minha voz saiu baixa, como se eu estivesse contando um segredo.

­— Sara... – a mamãe ia dizer alguma coisa. Os olhos dela estavam molhados de lágrimas, então ela estava triste, muito triste.

Eu não choro tanto como a mamãe, ela diz que eu sou forte. Não chorei quando tive que tomar injeção, não doeu! Ahh quando eu cortei meu joelho doeu, mas também não chorei, lembro que enquanto o médico fazia o curativo, o papai estava ao meu lado tentando me fazer rir, nesse dia eu ganhei um sorvete. Ele sempre dizia que eu era uma menina especial, inteligente e a mais bonita do mundo. Eu amo muito o papai, mas acho que deixo de amá-lo um pouco quando ele chega bêbado em casa e faz a mamãe chorar.

Eu só choro quando estou tão triste que não consigo segurar. Quando o meu cachorrinho morreu eu chorei muito... e também quando vi um passarinho morto perto da árvore no quintal.  Eu gosto dos animais e de todos os tipos de bichinhos, fico muito triste quando acontece algo de ruim com eles. A mamãe e eu enterramos o passarinho perto das flores, ela disse que as estrelas o levaram para morar no céu, ao lado do vovô e do meu cachorro. Eu amo muito a mamãe, mas acho que deixo de amá-la um pouco quando ela fica bêbada e esquece de tomar os remédios, quando isso acontece ela grita e fala coisas feias para o papai, bate no meu irmão... ela bateu tanto nele quando eu achei aquele saquinho estranho debaixo da cama, eu não teria mostrado o saquinho para a mamãe se soubesse o que ela faria com o meu irmão. Ninguém me explicou o que tinha lá dentro.

— SARA, VÁ PARA O SEU QUARTO AGORA – o papai falou com a voz mais brava que eu já ouvi, soltou a mamãe e bateu a porta.

Antes de entrar no meu quarto eu ouvi o barulho de vidro quebrando, talvez o papai tivesse deixado a garrafa cair.

Eu estava deitada na minha cama contando as estrelinhas coladas no teto, já havia desmontado e montando o quebra-cabeça mais de mil vezes, tudo estava tão quieto, exceto pela minha barriga que roncava de fome.

Sentei na cama e esfreguei os olhos junto de um bocejo, coloquei os pés dentro da pantufa roxa que ganhei do papai. Eu gosto de roxo, é minha cor favorita... só não gosto do roxo que aparece no rosto da mamãe às vezes, da última vez ela disse que tinha caído na escada, mas eu acho que é mentira, porque não é normal um adulto cair tanto na escada.

Também gosto de azul, porque é a cor da borboleta do meu quebra-cabeça.

— Mamãe? – abri a porta do meu quarto... ela não respondeu.

Quando olhei para a janela do corredor não acreditei no que vi: uma borboleta azul. Fui até ela e estiquei a mão com cuidado.

— Ei, eu não vou te machucar – sussurrei.

Ela pousou no meu dedo por um instante, como se tivesse entendido o que eu havia dito, mas logo voou pela janela. Eu queria poder voar como ela.

Então um cheiro estranho chamou minha atenção, vinha do final do corredor, no quarto dos meus pais.

A porta estava entreaberta, eu abri devagar e o cheiro de ferro ficou mais forte. Tinha uma poça de sangue perto da cama, os lençóis brancos estavam vermelhos e o papai estava deitado, coberto de sangue. Eu estava muito assustada. Por que o papai não se mexe?

A mamãe estava ali parada de pé olhando para ele e de costas para mim, meu coração batia tão forte. Ela segurava firme uma faca com a mão direita.

Uma gota de sangue pingou da faca e se juntou à poça no chão;

Duas gotas... elas pareciam cair em câmera lenta. Tinha cacos de vidro pelo chão;

Três gotas... minha visão ficou embaçada e eu pensei que fosse desmaiar.

A porta rangeu e fez a mamãe olhar assustada para trás. Eu pisquei e pude enxergar bem novamente, senti um calafrio quando ela olhou para mim. Os olhos da mamãe estavam inchados e vermelhos, tinha um roxo perto da sua bochecha e um corte na testa, o sangue que escorria fazia um rastro até o seu queixo.

Eu senti tanto medo, medo da mamãe, aquela não podia ser a minha mãe. Era um monstro.

Devagar eu dei dois passos para trás, sem tirar os olhos do monstro que tinha machucado o papai. Ele tentou chegar perto de mim, mas eu fui mais rápida e corri com toda força.

— Sara, por favor... – o monstro disse com a voz da mamãe enquanto corria atrás de mim.

Aquele corredor não era tão grande, mas ele parecia infinito. Eu não parava de correr e ele parecia ficar maior. As luzes piscaram e eu gritei, olhei para trás, o monstro estava perto e a faca dele brilhava toda vez que as luzes reapareciam. Olhei para frente e vi a borboleta azul, ela voava tão rápido quanto eu corria... Desejei poder voar.

Minha visão voltou a falhar e gritei o mais alto que eu pude quando senti o monstro me pegar, mas os braços dele eram confortáveis como os da mamãe, ele me abraçou tão forte que eu nem pude me mover. Ele soluçava e eu senti suas lágrimas quentes pingando no meu ombro.

O monstro estava triste, muito triste.


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