O Abismo escrita por Flicts


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo


A vida é uma metáfora, assim como tudo nela.

Boa leitura.



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            Maya estava sentada num dos bancos de madeira quando a bola chegou. Olhava para as flores ao seu redor, os animais e o céu. Estava um dia lindo, perfeito; assim como no dia anterior, e na semana anterior, e nas próximas que se seguiriam. Mas seu olhar estava perdido enquanto fitava as violetas e orquídeas. Sua mente estava distante. Vagava por caminhos desconhecidos, um lugar frio e escuro como um porão velho de uma casa mal-assombrada. Vagava sozinha por ali, a procura do que perdera há tanto tempo que já não podia descrever seu rosto. Mas o vazio era real, o vazio é sempre real.

            Virou-se para as rosas, e a imensidão florida que se erguia sem fim no horizonte, tentando buscar na memória um nome. Foi então que a bola veio e a atingiu de raspão na canela direita, indo se esconder debaixo do banco.

            - Moça! - um garoto de não mais de nove anos vinha correndo, então parou no meio do caminho e apontou para entre as canelas dela - a bola, moça!

            Foi puxada de volta à realidade por uma corda invisível. Seus olhos se fixaram no garoto, então se acenderam novamente. Lançou-lhe a bola e levantou-se do banco. Tinha trabalho a fazer, afinal, e não podia se atrasar.

***

            - Mana... que tal uma mãozinha com a escada aqui? - sorriu com os cantos dos lábios tentando não deixar cair nada.

            - Claro, pode deixar. - Ana foi até a escada de madeira e apoiou as duas mãos nela para que parasse de chacoalhar.

            - Obrigada. - assoprou uma mecha do cabelo que ficara sobre os olhos e virou-se para a estrutura no teto, começou a dar o laço quando a mecha voltou a encobrir sua visão, grudando no suor da testa. Soltou uma das mãos e pôs a mecha atrás da orelha direita. Terminou o laço com um assoviu: - foi o último. - com as mãos no quadril, contemplava orgulhosa o trabalho cumprido. A decoração do teto finalizada, as mesas postas, a iluminação instalada. Tudo isso lhe custara umas boas semanas de trabalho duro.

            - Perfeito! - Ana sorriu ajudando a amiga a descer da escada - tudo pronto pra amanhã. Vai ser a melhor Festa da Colheita de todas!

            Maya riu, ficando ao lado dela na entrada do salão.

            - Isso porquê foi você quem organizou tudo? - cruzou os braços e balançou a cabeça lentamente, semi-serrando os olhos - Que humilde você, hein...

            - Nem vem, só sou sincera sobre como sou boa quando quero. - Maya riu ainda mais, concordando, então pegaram as bolsas e saíram do salão.

***

                Lá estava ela novamente, dominada pelo vazio, no completo breu. Esfregou os olhos com as mãos cerradas na tentativa de recuperar a visão. Primeiro veio o frio, depois as luzes da estrada, então ela percebeu que estava sonhando.

 

                - Não se preocupe, May. - ali estava ele, a coisa que parecia faltar dentro dela. Que deixava um vazio tão grande em seu peito. Olhou sobre o encosto dos bancos e o viu dirigir e conversar com a Maya do sonho, que era feliz e não sabia. Sentou-se ali como um fantasma e assistiu. Do banco de trás o viu tirando uma das mãos do volante, despindo-se do casaco e colocando em volta dos ombros dela, sorrindo de lado - Ela ficará bem. Aposto que aquela velha rabugenta vai viver mais do que eu.

 

                A Maya do sonho deu-lhe um soco no ombro, apesar dela poder ver um sorriso em seus lábios.

 

                - Você fala assim, mas na verdade você adora sua sogra.

 

                Ele riu, e o coração de Maya pareceu se iluminar. Por um segundo, ou menos, ela conseguiu se lembrar do que lhe fazia tanta falta na eternidade. Mas então ele se apagou, e tudo não passava de mais uma lembrança jogada na neve.

 

                - Claro, eu amo aquele saco de carne. - Maya sorriu e se recostou no banco, fechando os olhos.

 

                - Você não tem jeito. - murmurou por cima do cansaço.

 

                - Não mesmo. - ela não respondeu e Maya sabia que ela adormecera. O homem no sonho franziu o cenho de um modo muito familiar pra ela e tirou uma mecha de cabelo da frente do rosto do seu eu do sonho, colocando-a atrás de sua orelha.

 

                Voltou a dirigir em silêncio, e a visão se desvaneceu em sombras.

 

***

 

                Esperava que fosse acordar, mas apenas sua perspectiva havia mudado. Estava agora no banco do carona, olhando pela janela para a neve na estrada.

 

                Esfregou os olhos com as costas da mão, e percebeu que não comandava mais os próprios movimentos, então as palavras escaparam sem controle de seus lábios:

 

                - O que foi isso? - virou-se para o homem ao seu lado, seria o seu marido? Desejou poder virar o rosto para ver se carregavam alguma aliança no dedo.

 

                - Nada, acho que atropelei um esquilo. - respondeu.

 

                - Não devíamos parar?

 

                - Não, tá muito frio lá fora.

 

                Deu de ombros e ficou olhando a paisagem totalmente branca pela janela.

 

                Veio a curva, a fumaça e o cheiro de borracha queimada. Viu o caminhão se aproximando como em um filme de terror, não podia fazer nada além de assistir e esperar que acabasse. Sentiu uma mão entrelaçar-se com a sua, apertou com força e fechou os olhos.

                A visão se desfez em trevas novamente, mas dessa vez ja era manhã, e não haveria mais sonhos naquele dia.

 

***

 

                A Festa da Colheita mal começara quando Maya chegou à beira do penhasco. Com seu vestido de linho branco e seus cabelos cor de avelã voando ao movimento do vento, sentou-se ali e pôs-se a encarar o abismo como quem fita a própria alma refletida nos olhos da morte.

                "Pular ou não pular? Eis a questão". Pelo que vale a pena morrer? Ela realmente não sabia, então esperou que alguém viesse com a resposta.

                O tempo voou, e a Estrela fazia seu mergulho sobre o horizonte quando o homem de terno preto apareceu. Caminhando calmamente pela beirada do abismo, uma mão no bolso da calsa e a outra segurando uma bengala vermelha brilhante. Fumaça subia do seu rosto aos céus, saídas do enorme cachimbo que ele exibia. O homem aproximou-se com um sorriso maroto e sentou-se ao seu lado, soltando baforadas de fumaça em direção à atmosfera celeste.

                — Hm... Olá - Maya não conseguia deixar de fitá-lo, a familiaridade incógnita em seu rosto era perturbadora. - quem é o senhor?

                O homem sorriu e soltou mais uma baforada para o céu, como se esperasse pela pergunta e  tivesse ensaiado sua resposta:

                - Eu? - puxou a fumaça do cachimbo, sentindo seus pulmões acolherem o calor familiar da nicotina - eu sou você. E todos os que procuram respostas. - deixou que o ar saísse pelas narinas, então virou os olhos para ela e a fitou - você procura respostas, criança?

                Maya desviou o olhar, voltando a encarar o abismo.

                - Eu...

                - Besteira. - ele abanou a mão no ar, como se afastasse a pergunta - é claro que você procura, senão não encararia esse abismo com cara de quem quer pular. - Maya não respondeu, sequer voltou a olhá-lo, então ele continuou, depois de mais algumas tragadas - Você quer saber se ele está lá embaixo? Pode apostar que sim, só os puros vêm pra cá, infelizmente. - deu de ombros - você quer saber se deve pular? Isso só você pode decidir.

                Maya virou-se para ele com a testa franzida.

                - Você não vai dizer que eu devo pular?

                - Vou, claro que vou... Na verdade - estalou os dedos, e uma maleta de couro preta surgiu em seu colo -, eu preparei esse dossiê com bons motivos para você pular ai. - abriu a mala e puxou alguns papéis de dentro, começou a ler quando um óculos de leitura apareceu magicamente sobre seu nariz: - vejamos... "POR QUE MAYA DEVE SE JOGAR NESSE BURACO?"... Terceiro parágrafo, logo depois da introdução que eu não quero ler: "... A eternidade, se pararmos pra pensar, é tempo pra caralho. Você não vai querer passar tanto tempo pensando 'e se?', vai?..."

                - É um bom argumento - concordou.

                - Pois é, agora seja uma menina educada e deixe o tio continuar: " ...O cara é a sua alma gêmea, fala sério, você não poderia viver sem ele nem que quisesse, e, acredite, você não...". Fala sério, quem escreveu esse lixo? - jogou fora a mala, incinerando os papéis nas mãos - "Alma gêmea", gênio? - Maya riu fitando o horizonte e a Estrela que teimava em dar seu lugar para a lua - falando sério agora, você o ama?

                - Tanto quanto se pode amar alguém de quem você mal se lembra...

                - Então qual a dúvida? - voltou a fumar seu charuto - eternidade? Quem precisa disso? Quão boa é uma vida plena e infeliz? A verdade é que eu sei, mais do que ninguém, o que você sente, porque, querendo ou não, sou parte de você. E falo sério quando digo que você o ama, e que não vai ser feliz aqui. Então, yeah, se jogue! Que importa a dor quando o que nos espera além da sombra do espelho é o amor?

                O som dos gafanhotos dominou o local enquanto as palavras do homem ecoavam dentro da cabeça de Maya. Pensava no que vivera ali desde que... Bem, desde que se lembrava. Nos seus sentimentos, sua família. Trocar tudo aquilo pelos sonhos que tivera? Era isso o que ele estava lhe dizendo para fazer?

                - Pois é, parece que eu tenho que ir... - virou-se para ela e sorriu amarelo, tirando-a de seus pensamentos - sou um demônio muito oculpado, sabe? Mas antes de ir - estendeu o braço - um presente de despedida...

                Tocou em sua testa com o indicador e, sob o contato áspero da sua pele, Maya se viu arremessada por uma onda, e viu o vácuo negro onde se encontrava ser inundado por um oceano de lembranças e sentimentos. Viu o dia do acidente em sua mente, não como imagens de um sonho, mas como lembranças reais de um natal passado; viu o dia do seu casamento e o rosto do noivo, suas feições claras como água em sua mente; e o nome... Ah, o nome.

                Sorriu e abriu os olhos, foi quando viu que estava só novamente. Olhou para o abismo, e ele para ela, mas não havia mais medo em sua mente. Não havia espaço para o medo enquanto aquela chama morna se fazia presente, queimando em suas veias. As coisas pareciam ter clareado em sua mente. A neve se fora, levando com ela a chuva, deixando a Estrela brilhar livre no céu. Sabia quem era e sabia o que sentia. E, acima de tudo, sabia o que estava disposta a fazer por ele.

 

                Fechou os olhos, sentindo o vento beijar sua pele, e abriu os braços para abraçar seu destino.

                - Eu não faria isso se fosse você, minha criança.

                Então tudo parou e a confiança lhe abandonara por completo. Sua chama, reduzida ao fogo de uma vela. Virou-se e abriu os olhos para encarar o dono da voz, e se assustar com a semelhança entre ele e o homem de terno preto. Mas mais assustador ainda foi lembrar-se porquê seu rosto era tão familiar para ela...

                - Quem é você? - franziu a testa, eles eram muito parecidos, embora esse homem usasse um terno cinza e não fumasse, nem usasse bengala alguma.

                - Eu? - sorriu, pondo as mãos enfiadas nos bolsos. Encarou a Estrela em sua teimosia de se render ao cansaço, e respondeu: - Eu sou você. E todos os que são puros de coração. - virou-se para ela, feições preocupadas enfeitavam seu rosto - o que lhe aflinge, minha criança?

                - Eu... - olhou de volta para a cidade, então para o homem de pé ao seu lado.

                Ele assentiu, solene.

                - Você quer um motivo para ficar. - voltou a encarar a Estrela - Pois digo-lhe que fique, e que é o certo a se fazer. Eu vejo dentro de você, pois também sou parte de ti. Sei o que sente. E lhe digo, não há prova de amor maior do que a abnegação. Entregar-se ao instinto é fácil, e erroneamente valorizado, pois o autocontrole é uma virtude dos sábios e fortes de coração. Ficar seria uma prova de amor pela sua família e, acima de tudo, amor próprio...

                - Mas isso não é o que diz... o que grita meu coração - voltou-se para o abismo novamente - Sinto que ele vai explodir se eu não pular lá.

                O homem olhou para o abismo e uma sombra negra tomou conta da sua face.

                - Você está sofrendo... Sei disso porquê também sinto sua dor. - suspirou - infelizmente, não posso fazer a escolha certa por você. Mais posso te dar uma escolha. Abra as mãos, minha doce criança. - Maya fez o que lhe foi dito, estendeu as duas mãos em forma de concha em frente ao corpo. Ali surgiu um frasco pequeno, um vidro de xarope anti-muco - um presente de despedida... Se decidir ficar, beba e eu prometo que todas as dúvidas serão esquecidas, você não se lembrará de nada, e será feliz.

                O Homem desapareceu na névoa, deixando Maya mais uma vez mergulhada na dúvida. Ficava ou ia? Abandonar tudo o que conhecia e tinha como certo, abandonar aquele que ama. E, nesse liquidificador de dúvidas, sentia que estava deixando a si mesmo escapar. Sempre pensara em si mesmo como uma pessoa boa, e o Homem de branco lhe dissera que era "pura de coração". Mas ali estava ela, cogitando abandonar seu marido por uma vida feliz. Ela era egoísta por pensar nisso. Não há pureza ou honra nos atos egoístas. Amaldiçoou-se por, ainda assim, não ter coragem de tomar uma decisão.

                - Sabe de uma coisa? - sussurrou para a imensidão no vazio - acho que não sou tão corajosa assim sem você segurando minha mão...

                - Acho que você entendeu errado, May - virou-se para encontrar os olhos castanhos pelos quais se apaixonara tantos anos antes, seus lábios formando um pequeno "O" sem permitir que nenhuma palavra escapasse por eles -, era você quem nos passava confiança, não o contrário. Você sempre foi nosso porto seguro. - o homem parou ao lado dela, como os outros dois. As mãos enfiadas nos bolsos. O mesmo rosto deles, mas sua expressão era outra. Não saberia explicar, se lhe fosse pedido, mas ela o reconhecia.

                - Q-Quem...?

                - Eu sou você. E sou Oskar Berht.

                - Oskar... Eu... Eu estou...

                Ele assentiu.

                - Com dúvida... Tem dúvida se nós queremos que você pule lá? Pois pode apostar que não. Nem um pouco. - estendeu o braço para ela, entrelaçaram os dedos e ele a puxou para cima. Ficaram frente a frente quando não se via mais sinal da Estrela no horizonte, os dedos entrelaçados como quando a pedira em casamento - escuta, May... eu não posso dizer o que seria o certo, mas posso dizer o que nós queremos. E queremos que você seja feliz, de preferência bem longe daquele buraco. Não importa se você se casar denovo, se tomar esse xarope e esquecer da gente... Se você estiver feliz, nós estaremos.

                Deu-lhe seu melhor sorriso encorajador. Não convenceu.

                - Mas como eu posso ser feliz longe de você, idiota? - ela lutava contra as lágrimas, sua visão embaçada.

                Sentiu sua respiração se aproximar, seu hálito. Então seus lábios se encontraram e jogaram gasolina naquela vela meio-acesa.

                - A decisão é sua, meu amor...

                Então ele desapareceu, assim como os outros. Mas agora levara a Estrela consigo e a luz e o calor da terra. E Maya sentiu pela primeira vez a dor da perda. E foi como um soco na "boca do estômago" dado por um colega mal educado do ensino fundamental. Sentiu um nó se formar em sua garganta e sentiu vontade de chorar. Olhou para o céu e para a lua, piscando as lágrimas para longe dos olhos. Então virou-se para o abismo e encontrou os olhos de Oskar lá embaixo, fitando-a. E naquele momento ela soube que, sem ele para aquecer sua alma, seria sempre noite em seu coração.


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Notas finais do capítulo

Se curtirem, deixem um comentário. To querendo voltar a escrever, e isso estimula muito a gente a continuar. :)