Poemas e Textos Aleatórios escrita por Flicts


Capítulo 5
Eu sou uma engrenagem




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"Somos como um grande relógio", o patrão disse. "Cada um de vocês é uma peça desse relógio, se vocês trabalharem bem, o relógio funciona perfeitamente. Se não trabalharem, tenho centenas de peças reserva. Então trabalhem!"

E nós trabalhamos, trabalhamos até nossos músculos doerem. E então trabalhamos mais ainda, até cada osso dos nossos corpos parecer pesar uma tonelada. E trabalhamos mais ainda. Quando saímos, a lua brilhava alto - embora não muito forte - no céu dessa velha cidade.

Somos peças. Existem muitas peças reservas. Existem muitas pessoas com fome. Todos têm fome.

Minha barriga ronca.

 

***

 

— Oi. - Ela senta ao meu lado. A lua brilha pálida, mal podendo iluminar as nuvens negras que avançam sobre nós.

Não respondo, e ficamos em silêncio por bastante tempo. "Tempo". Somos parte desse relógio. Todos nós.

— Que peça você seria? Acho que você seria um parafuso... ou talvez uma engrenagem - diz franzindo as sobrancelhas  e quebrando o silêncio.

— Eu não sei, Letícia. Por que? - talvez eu seja ranzinza demais pra minha idade, talvez eu pense demais também. Peças não deviam pensar tanto, peças trabalham. Apenas.

— Hum... - ela põe a mão no queixo e encara as nuvens - Não sei, eu só tenho pensado nisso. "Somos peças", "parte desse relógio". Blah! Que chato, e se eu não quiser ser? Quem decidiu isso por mim? - ela me encara, como se esperasse uma resposta.

Quem decidiu isso por ela? Quem decidiu isso por mim?! Não sei, só sei que é assim. Desde que eu nasci, e desde que meu pai nasceu. E antes do meu avô, que descanse em paz, já era assim.

Somos peças, é o que eu sei. Peças que fazem parte desse enorme relógio. Que é um dos vários relógios que existem por aqui, sempre trabalhando, sempre produzindo. Dia e noite. Noite e dia. E esses relógios são um membro (é o que dizem) desse grande corpo, desse sistema, dessa cidade velha.

Mas cada membro tem sua importância, eu acho. Alguns mais, outros menos. "Você pode viver sem um braço", eles dizem, "com dificuldades, mas viveria. Mas você viveria sem a cabeça? Claro que não! Então não seria a cabeça, que pensa e comanda um membro, mais importante do que o braço que executa? Assim também é com nossa grande nação". Eles dizem.

Eles dizem muita coisa, eles pensam muitas coisas (e nós trabalhamos), pois eles são a cabeça (e nós... os dedos? Você viveria sem um dedo?).

Eu penso também, mas não penso ser essa uma coisa boa.

— Não sei, mas as coisas são assim.

Ela revira os olhos e cruza os braços. Eu sei que ela está brava, mas o que eu posso fazer? Bem que eu queria que isso mudasse (ser uma mão talvez?), mas... o que eu posso fazer?

— Eu... queria sair disso, sabe? - ela está (chorando) de costas pra mim agora - Por que tem que ser tudo tão difícil pra gente? Nascer, crescer o suficiente pra girar uma manivela. "Trabalhe! Trabalhe!". Eles só pensam em dinheiro!! Nesse maldito relógio!! E eu... eu... eu só quero poder viver, sabe?! Não existir, mas viver!!

Eu fico parado, não sou bom com pessoas, sou bom com máquinas. Foi um dom que Deus me deu, é o que o patrão diz. Mas não são as pessoas também como as máquinas? Talvez ela esteja quebrada, como uma máquina. Mas como consertar uma máquina humana quebrada?

Eu não sei, por isso não faço nada.

 

***

 

O trabalho não é muito difícil. Liga as máquinas, pega o tecido, coloca na máquina, espera, pega o tecido e leva pra próxima, tira e guarda. Não, é bem fácil. O difícil é o tempo, o tempo passa devagar demais nesse relógio. E com o tempo vem a fome, e nada vem pra levar a fome embora.

Eu volto a sair tarde, mas hoje não tem lua no céu, só as nuvens - negras como a fumaça que sai dessas chaminés. Bom, talvez seja daí que vem as nuvens, das chaminés. Mas de onde vem a chuva então? Devem ser os anjos chorando por esse povo miserável (ou cuspindo de nojo pelo que eles vêem aqui).

Não tem lua, nem Letícia. Sento sozinho hoje, olhando as nuvens se aproximando. Os anjos começam a cuspir. Vou pra casa.

 

***

 

Hoje a lua veio (e os anjos, prontos pra cuspir em todos nós), ela não. Vou procurar por ela amanhã, talvez ela ainda esteja quebrada. Vou levar a caixa de ferramentas do meu pai.

 

***

 

Eu achei ela.

Mas por quê eu não consigo consertar? Todas as peças estão aqui, dentro dela, mas... ela não liga. Ela sempre foi quente, tão quente quanto aquelas chaminés, mas agora está fria, como uma máquina. Uma máquina quebrada. Uma máquina que eu não consigo consertar... Por quê?!!

Eu corto a corda, e a deito no chão frio. Tiro meu colete, é o único que eu tenho, mas ela precisa dele mais. Tão fria. Coloco sobre ela. Os anjos começam a cuspir com nojo de mim, muito mais forte agora, tanto que chega a doer a pele. Nojo por eu ter deixado a luz deles ser quebrada, por não ter consertado ela. Por não ter feito nada.

Eu sinto o frio e a fome, mas nem a fome dói tanto agora quanto meu peito. Eu acho que quebrei também, porque meus olhos estão vazando.


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