Black and Blue V - Helium escrita por Minerva Lestrange


Capítulo 1
Helium


Notas iniciais do capítulo

https://www.youtube.com/watch?v=nLnpvbBSjUY
Link da música Helium, da Sia, que inspirou essa parte da história.
Espero que gostem.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/742254/chapter/1

I'm trying but I keep falling down

I cry out but nothing comes now

I'm giving my all and I know peace will come

I never wanted to need someone

Úlitsa Kosygina

O Alto Outono

Hermione tornara-se uma dessas pessoas noturnas. Ao longe, percebia a cidade de Moscou completamente adormecida e silenciosa. Tinha a impressão de que Malfoy escolhera aquela casa suntuosa em um bairro tão rico quanto vazio na mesma medida propositalmente. Não se ouvia som não fosse o de animais passeando pelo jardim ou um carro passando, sem muito alarde, na rua a vários metros de sua janela. Provavelmente, seu quarto também fora escolhido a dedo em busca de uma tranquilidade que não podia ser encontrada facilmente em seu interior.

Apesar de bem cuidado, o Jardim de Astoria já sofria os efeitos causados pela estação. A grama já não se encontrava tão esverdeada quanto fora na época de sua chegada ali, dominada pelo sépia. Bonito, mas muito mais melancólico. Hermione quase preferia dessa forma. No início, irritava-se constantemente com a mulher e sua mania de manter aquele espaço em perfeita harmonia, ainda que fosse por magia. Astoria ia contra a ordem natural das coisas e aquele verde milimetricamente planejado para combinar com todas as outras cores vivas que tomavam o jardim não agradavam seu atual estado de espírito.

Porém, com o tempo, passou a ver alguma beleza em como Greengrass dedicava-se ao seu único passatempo em uma cidade tão estranha para ela quanto para Hermione. Às vezes, de sua janela privilegiada, percebia alguma expressão de satisfação alargando-se no rosto delicado ao ver a evolução positiva de uma de suas plantas e até mesmo a acompanhava com um meio sorriso. Mas elas nunca passaram das meias palavras e do entendimento mútuo sobre sua presença ali.

Não se tornara amiga da esposa de Malfoy, embora também não pudesse afirmar que não gostasse dela, pois não tinha nenhum motivo para isso. Vivia na casa de Astoria e, ainda que fosse por vontade de Malfoy, tinha certeza de que ela cedera a pedido dele, o que supunha não ter sido fácil, pois estavam em seus primeiros meses de casados. Oficialmente casados. Em certo final de semana, os dois foram à Inglaterra e voltaram, sem muito alarde, trazendo grossas alianças em seus dedos anelares e uma expressão feliz no rosto da nova Sra. Malfoy. Draco, por sua vez, mantinha suas feições sempre indecifráveis. Eles não comentaram sobre o assunto, tanto quanto Hermione não perguntara. Não havia nada a ser dito.

Naquela noite, soubera por um elfo doméstico trazido da Inglaterra que o casal fora a uma festa promovida pelo Ministério Russo, mas era comum que eles fossem a muitos eventos trouxas, como o balé russo ou o circo tradicional da cidade, o que não deixou de surpreendê-la. Entretanto, Malfoy lhe dissera que Astoria sempre fora mais tolerante com a “questão de sangue”, além de que ali não havia ninguém para exigir algum comportamento específico de sua classe social ou controlá-los. Então, começara a entender o motivo de ele ter aceitado tão facilmente comandar a empresa da família em um país tão distante e tão diferente de sua cultura original: liberdade.

Ali, Malfoy e Astoria vivam da forma como entendessem melhor, sem a presença constante e quase ameaçadora de seus pais ou da própria sociedade bruxa. Em Moscou, Malfoy não era o antigo Comensal da Morte, derrotado na Guerra, pois a Guerra não chegara até a Rússia. Ali, Malfoy não carregava o peso de seu sobrenome com tanta penúria. Ali, Malfoy poderia ajudá-la sem ser condenado por isso, ainda que poucos soubessem do acontecido. Ele não precisara lhe dizer tudo isso com tantas palavras, mas o observava, tanto quanto Astoria, e entendia entrelinhas melhor do que ninguém.

Então, quando o casal apontou no portão, trajados elegantemente e percorrendo o caminho completamente reto que os levava à porta, firmemente de mãos dadas, Hermione virou-se para encostar-se alinhada à cabeceira da cama, a qual ficava contra a cortinada janela. Sentia-se uma intrusa em certos momentos que ambos deviam ter privacidade, além do incômodo que a sensação causava a si mesma. Por isso, tentava a todo o custo não intrometer-se no caminho deles e dedicar-se a si mesma.

Na semiescuridão de seu quarto, sua missão diária era decifrar o dialeto russo. Lia livros da língua que encontrava na biblioteca da casa, assim como comprara dicionários e freqüentava a Biblioteca Municipal, onde sempre encontrava um pouco de tranqüilidade para estudar. A magia ajudava neste aspecto, pois com uma varinha em mãos o que ouvia era automaticamente traduzido para sua língua. Entretanto, sempre fora uma grande apreciadora do saber e, assim, aprendia da forma trouxa.

Tratava-se de seu maior passatempo desde que chegara a Moscou, pois não se sentia segura o suficiente para sair sozinha, embora estivesse, certamente, mais tranquila naquelas ruas estranhas e desprovidas de dolorosas lembranças. Londres já não era mais a mesma para Hermione. Seu sentimento pela cidade mudara, assim como ela, embora tudo continuasse no mesmo lugar. Externamente. Sempre que andava por seu antigo lar, as lembranças do que Greyback lhe fizera a perseguiam, como uma peste alastrando-se cada vez mais em seu ser até torná-la paranoica a respeito de sons, pessoas e lugares.

Em Moscou, tudo era novo, como Malfoy fizera questão de lhe mostrar algumas vezes, determinado como estava a tirá-la de casa após alguns dias de reclusão no quarto de hóspedes. Ainda sentia medo de sair sozinha, mas era uma sensação diferente e, senão boa, bem perto disso. Naquela cidade, seus fantasmas não poderiam amedrontá-la tão facilmente quanto intencionavam e apreciava esse novo estado após tanto tempo a mercê destes e da vontade onipotente de Greyback.

Yeah, I wanted to play tough

Thought I could do all just on my own

But even Superwoman

Sometimes needed Superman's soul

Loja GUM

O Fim do Outono

Àquela hora da noite, as ruas ainda estavam lotadas de pessoas indo e vindo pelo centro de Moscou. Assolada pelo vento frio que anunciava o inverno iminente dali algumas semanas, Hermione caminhava encolhida ao lado de Malfoy, ainda que estivesse completamente agasalhada, ouvindo o mesmo recitar rapidamente sobre como alguns russos poderiam ser turrões e inusitados, mas que ele conseguira negociar um grande carregamento de poções que seriam destinadas a Universidade Bruxa de Moscou, a maior do país.

— ... Eles têm noção de que somos os maiores fabricantes da região e que, se insistisse em comprar dos fornecedores de São Petersburgo, pagaria um preço maior, além da taxa de entrega caríssima que eles cobram por aqui. – Ele ajeitou o casaco escuro ao redor do corpo ao adentrarem rapidamente a secular loja de departamentos.

— Ainda fico impressionada sobre como conseguiu se adaptar tão rápido às leis de comércio bruxo daqui. – Malfoy apenas deu de ombros enquanto subiam uma escada que levaria ao segundo andar do prédio que, atualmente, abrigava várias lojas de luxo. – A cultura russa é completamente diferente da nossa e os negócios de poções parecem bastante positivos nestes últimos meses.

— Estudamos muito todas as possibilidades antes de concretizar isso, você sabe. Pegamos a melhor época. – Ela o encarou, falsamente espantada.

— Em outra época, simplesmente, diria que era o melhor no que fazia.

— Realmente, eu sou.

Malfoy abriu um sorriso superior, no que ela simplesmente o empurrou com os ombros e revirou os olhos, seguindo o caminho sob o suntuoso e moderno teto de vidro da loja. Abaixo, várias pessoas andavam apressadas por todos os lados, algumas repletas de sacolas, outras apenas sentadas entretidas em conversas, outras simplesmente impressionadas com o prédio que, além de tudo, era quase uma obra de arte, interna e externamente. Via sua exata reação nos rostos de muitos que estavam ali, pois tudo em Moscou parecia grandioso e exageradamente arquitetado para conceder certa aura lúdica ao país.

Ainda assim, descobria a cidade aos poucos. Malfoy, geralmente, estava com ela, também desbravando e, às vezes, lhe mostrando algo que descobrira com Astoria. A loja GUM fora um dos primeiros lugares que ele a levara, meses atrás, o que fizera com que ela se tornasse quase dependente dos chocolates de uma loja específica do shopping. Tornara-se um costume: sempre que iam a algum monumento histórico, passavam por GUM e compravam uma caixa de seu doce preferido e, às vezes, algo para presentear Astoria. Ele não falava sobre seu relacionamento, mas era claro que precisava fazer muito pela mulher para que a hospedagem de Hermione não fosse incomodada.

— O que aconteceu?

Hermione tirou os olhos de uma criança que lhe sorria em inocência para encará-lo. Às vezes, esquecia-se de como sua relação com Malfoy evoluíra a ponto de não precisarem de muitas palavras para entender um ao outro, o que ainda lhe era estranho. Malfoy passara de alguém completamente desconhecido à figura que a ajudara em sua hora mais escura e, além disso, num dos poucos homens em que conseguia confiar. Não era uma questão de querer, ela sabia, era apenas... Tudo que acontecia a levava a isso, se aproximar ainda mais, ainda que soubesse não poder. Ainda que ambos soubessem.

Então, de repente, os olhos acinzentados lhe pareceram pesados demais sobre sua alma. Era como se Malfoy soubesse exatamente o que se passava com ela e perguntasse apenas por educação. Porém, obviamente, aquilo era apenas um devaneio de uma mente que aprendera a devanear demais nos últimos meses. Por isso, desviou-se dele, simplesmente, negando que algo estivesse acontecendo. Não queria tocar no assunto e estragar o resto da noite, que já havia sido comprometida antes deixar o Morro dos Pardais.

 - Vamos nos apressar. Astoria estará nos esperando, não é?

Era algo de sua boa educação que Astoria não deixava perder com o tempo ou a distância que se encontrava de quem a moldou daquela forma. Ela era uma dama. Delicada, organizada, elegante, pontual. Tudo que dizia respeito ao lar dos Malfoy sempre estava do jeito esperado. Daí, o jantar era servido todos os dias, pontualmente, no mesmo horário. Geralmente, Hermione jantava em seu próprio quarto, concedendo alguma privacidade proposital ao casal, mas era mais comum que eles insistissem em sua presença. Ambos. Pois Astoria fora treinada para ser uma ótima anfitriã.

Todavia, ele segurou seu braço, impedindo-a de ir mais longe. Ela não o olhou novamente, certa como o vento seco lá fora de que cederia à sua vontade, além do fato de que estava próxima o suficiente para que sentisse o calor acolhedor de seu corpo, embora ambos estivessem sob grossas camadas de tecido. Hermione fizera um trabalho muito bom até ali em evitar qualquer contato que pudesse parecer inapropriado, por isso soltara-se cautelosamente, escondendo as trêmulas mãos nos bolsos antes de encará-lo.

— Harry. Recebi uma de suas cartas hoje. – Disse em tom baixo. – Apenas... Chateou-me mais do que o normal.

Após encontrar-se completamente certa de que ficaria em Moscou durante um tempo, Hermione informara a seus amigos que estava bem. Apesar de nenhum destes entenderem exatamente o que fazia ali, coincidentemente no mesmo período que Draco Malfoy, todos pareceram aceitar que estava fazendo algumas pesquisas. Apenas Harry sabia que se tratava de uma válvula de escape para Londres, Greyback e todas as asquerosas lembranças de tudo aquilo, ainda que não tivesse mencionado o elemento Malfoy ao lhe contar. A questão, entretanto, era que seu amigo parecia estar obcecado em fazer o lobisomem pagar pelo que lhe fizera.

— O que sobre Potter poderia deixá-la assim? – Questionou ele, apoiando-se despreocupadamente contra a balaustrada de pedra. Hermione fez o mesmo, desejando sentir-se acolhida após tanto tempo. Seus dedos tocaram-se levemente e ela não evitou morder os lábios, reprimindo-se, mas não se afastando. – Pensei que só trocassem notícias esporádicas.

— Greyback confessou a Harry o que fez... Naquela noite. – Notou o corpo dele tencionando e os olhos percorrerem seu rosto. – Harry usou sua posição no Ministério para ir até Azkaban, repetidamente. Ele pressionou Greyback de todas as formas possíveis...  Até que ele lhe narrasse o que aconteceu. Em detalhes. Por seu ponto de vista. Ele o deixou... Revoltado e enojado. Porque esse sempre foi seu objetivo, não é? Atingir a todos nós da pior forma possível. – Hermione suspirou em exasperação, a garganta se fechando pelas lembranças e pelas próprias palavras de seu melhor amigo. – O problema é: para que Greyback seja condenado pelo que me fez, precisarei ir a Londres depor e sei que não estou pronta para me expor dessa forma.

Podia quase ouvi-lo pensando sobre o assunto, considerando todas as hipóteses possíveis, os olhos encarando-a com curiosidade. Porém, para Hermione, não havia muito que pensar. Não queria reviver tudo aquilo novamente, não por si e não pela consciência de Harry. Não sabia se um dia estaria pronta para tanto, mas, agora, podia ver com clareza que isso não importava muito desde que estivesse, psicologicamente, bem. Com si mesma, seu corpo, suas recordações.

— Potter... – Ele iniciou em tom de dúvida, no que Hermione também o encarou, quase a ponto de sentir sua respiração contra o rosto. – Irá entender se fizer uso dos argumentos corretos.

— Você não o conhece. Quando Harry coloca algo na cabeça...

— Ele não poderá obrigá-la. – Malfoy decretou, afastando de seu rosto uma mecha de franja que dizia irritá-lo. – Faça-o entender que não pode lidar com Greyback enquanto está tentando deixar aquilo para trás, que estar aqui é importante para isso. Uma condenação do Lobisomem não tornará sua vida melhor, pois ele já está preso... Só fará com que reviva tudo da forma mais dolorosa possível.

— Se alguém descobrir sobre aquele dia, voltarei à estaca zero. – Ela declarou em um quase sussurro. – E não quero viver tudo daquela forma novamente.  

Hermione já ultrapassava algumas noites sem pesadelo algum sobre Greyback e a forma vil com que ele a tocara. Malfoy lhe dissera que estava mais calma e até mesmo seu semblante lhe demonstrava isso, embora Hermione não soubesse como, pois não percebia nenhuma mudança tão visível assim. Além de tudo, já ia a alguns pontos turísticos de Moscou sem sua companhia, embora munida de sua varinha e sem muitas delongas pelo caminho. Com o tempo, começava a se sentir sufocada por toda a movimentação e só retomava a calma inicial quando estava em casa, segura.

— Nada disso irá acontecer, tudo bem?

Dessa forma, antes que pudesse prever, ele entrelaçou seus dedos firmemente, deixando que sentisse a textura de sua pele fria pelo clima, acariciando leve e distraidamente sua mão, pequena entre a dele. Usualmente, aquele tipo de contato não era característico entre eles, por isso, simplesmente observou como sua pele parecia mais bronzeada em comparação à dele, ainda que o sol em Moscou fosse escasso, principalmente naquela época do ano.

— Como pode ter certeza? – Perguntou, ainda mantendo a conversa privada, ouvindo-o e sentindo-o suspirar.

— Eu não tenho. Mas sou a pessoa mais confiante que já conheceu, não é? Isso deve valer de alguma coisa. – Hermione levantou a cabeça para encará-lo, quase cética, tão próximo que era possível decifrar alguns matizes azuis em seus olhos presumivelmente acinzentados. – Vamos deixar tudo para trás, é o motivo de ter vindo para Moscou e de ter deixado Londres. Confie em mim.

Hermione sentia seu coração ser esmagado a cada vez que Malfoy demonstrava estar do seu lado daquela forma, afinal era raro que ultrapassassem essa barreira imposta por ambos. Além disso, ouvir tais palavras, repletas de uma certeza incerta, se isso fizesse algum sentido que não fosse para os dois, só a deixava mais convicta de como se encontrava dependente do loiro, cada vez mais consciente de como ele precisava estar ao seu lado para que ficasse bem.

Não era o ideal. Em algum momento, Malfoy seguiria em frente, inevitavelmente sem ela. Ele soltaria sua mão, realmente, e, então, o desafio maior chegaria junto ao momento que deveria conseguir caminhar com os próprios pés. Mostrara-se incapaz disso, sozinha em Londres por algumas semanas e, se tinha algo que detestava, mas no que estava completamente viciada, era a tal dependência entranhada em seu corpo como uma droga, fixando-se pela constância, pela leveza, pela confiança. Por enquanto, contudo, Hermione colocaria de lado de bom grado todos os malefícios, pois os efeitos benéficos eram viciantes e inquestionavelmente mais atrativos do que qualquer possibilidade negativa que aquela relação inusitada lhe traria.

— Sabe que confio.

Então, de forma súbita o metal frio fez com que seus olhos recaíssem sobre a aliança prateada que ele carregava na mão esquerda, lembrando-a que, definitivamente, deveria tocar sua vida. Ela por si mesma. Embora devesse admitir ser uma decisão muito difícil de ser tomada enquanto o sentia tão próximo, encarando, analisando e decifrando com tanto afinco cada expressão e sentimento que alcançava seus olhos, seu rosto, sua alma.

— Vamos, vamos comprar seus chocolates e uma nova matrioshka.

Malfoy a empurrou levemente na direção de seu destino final após algum tempo, quebrando o contato entre seus corpos e seus dedos. Eles seguiram pelo extenso corredor da Loja, comentando uma vez ou outra a respeito de algum produto interessante que viam, sem muita pressa de encontrar o caminho de volta ou da saída, apesar de ser o ideal.

Help me out of this hell

Your love lifts me up like helium

Your love lifts me up

When I'm down down down

When I've hit the ground

You're all I need

Úlitsa Kosygina

O Solstício de Inverno

Apesar de a água fluir quente sobre sua pele, sentia-se trêmula sobre o jato forte da ducha. Seus poros encontravam-se arrepiados e os olhos firmemente fechados enquanto abraçava o próprio corpo nu. Não raras vezes, nos momentos mais inoportunos, as lembranças a encontravam. A maioria de seus dias era de tranqüilidade, mas Greyback parecia exercer certo controle macabro sobre sua vida, ainda que preso muito longe dali.

As recordações estavam sempre presentes, nunca a abandonavam, apenas ficavam à espreita esperando uma oportunidade para penetrar em seu âmago da forma mais dolorosa possível. Ter consciência de que seu corpo fora usado de forma tão vil sem seu consentimento fora revoltante desde o primeiro lapso de conhecimento sobre isso. As mãos do homem percorrendo caminhos não autorizados e privados de sua pele seriam uma constância indesejada enquanto vivesse.

Sentia o odor asqueroso daquele beco sujo e mal iluminado, assim como a textura das pedras lodosas contra a palma de sua mão. Tudo tão vívido que, ao esporadicamente abrir os olhos, assustava-se com a capacidade da própria mente em reconstruir tantos detalhes. Um capricho de seu cérebro traumatizado. Seus cachos caíam, grudados contra as costas, mais compridos do que um dia já tinham sido, mas tais quais àquela fatídica noite, onde a chuva caía torrencialmente sobre Londres e sobre o castigo de Hermione.

Os azulejos de mármore bege do banheiro refletiam sua silhueta de forma desfocada, lhe enviando a fortíssima impressão de decadência que a tomava sempre que se via anuindo a um destino que nunca fora seu devido a uma mudança brusca não planejada. Às vezes, como então, detestava se perceber em Moscou, deixando para trás todo o futuro brilhante que lhe tinham prometido e que a própria arquitetara. Pois costumava ser brilhante, mas agora era, meramente, nada. A sensação de que ainda podia fazer muito com esforço e inteligência se desvanecia facilmente em vista da incapacidade imposta por Greyback.

Hermione quis chorar. Sentiu os olhos pinicarem e os lábios tremerem, a garganta se fechando em quase desespero. Reprimiu-se, desesperadamente, cansada daquela rotina diária. Encostou a testa contra a parede, sentindo-a fria demais, talvez, mas quase refrescante à sua mente debilitada. Respirou fundo, desobstruindo a garganta dolorida, lembrando a si mesma que a água que agora caía contra seu corpo não eram as gotas da chuva assoladora daquela noite, que Moscou era renovação, um reencontro com si mesma. 

 Assim, forçou-se a desligar o chuveiro e sair, os pés confortavelmente acalorados pelo tapete macio. O grande espelho embaçado do banheiro a refletia corada pelo banho, mas com uma ruga quase sempre presente em sua testa. Seu semblante já não era mais o mesmo há muito tempo. Por isso, se dedicou a agasalhar-se automaticamente e ganhar o quarto, pronta para desfazer-se da toalha que absorvia a água de seus cabelos molhados e penteá-los. Entretanto, ao adentrar o quarto, deparou-se com uma presença questionável e talvez indesejada.

Astoria Malfoy encontrava-se encostada a uma das pilastras que ladeava a comprida porta que levava ao balcão do lado de fora. Estava fechada, de modo que as cortinas pesadas mantinham-se imóveis, mas era possível enxergar o efeito das luzes do jardim contra seu rosto impecavelmente maquiado, quase imaculado. A mulher, pequena e delicada, nunca era vista senão em seu estado mais perfeito, lembrando-a uma estátua bem esculpida e inalcançável.

A aparência da esposa de Malfoy nunca lhe importara, ela era sempre a mesma com suas saias longas de cores escuras; ou vestidos justos e neutros; ou mesmo as blusas de tecidos finos. Porém, quando Astoria voltou-se a ela, algo em sua feição havia mudado. Hermione nunca vira aquela frieza em seus olhos, nem mesmo a dureza denunciada em sua expressão e postura.

— Cheguei à conclusão de que nunca vou me acostumar a este país e a esta cidade fria, impessoal e seca. – Ela deu de ombros, divagando. – Vir para Moscou jamais teria sido uma opção, se eu tivesse uma. A única pergunta que tive de me fazer foi: eu queria Draco ou não? Mas essa nunca foi uma dúvida. Eu sempre o quis. Draco sempre foi o objetivo final de todos os meus atos. Então, se para tê-lo, eu precisaria mudar-me para Moscou, seria o que eu faria, sem hesitar.

Hermione nunca soubera tanto sobre uma pessoa com palavras tão reduzidas, assim como nunca ouvira tantas palavras de Astoria dirigidas a ela reunidas em uma única frase. A mulher parecia ter um objetivo ali, por isso, simplesmente descartou a escova que tinha em mãos e cruzou os braços, esperando, ao mesmo tempo em que percebia que a outra parecia escolher e pesar tudo que lhe dirigia.

— É impressionante como nos anulamos por um homem, não? – Ela continuou, o tom não alcançando o pesar em momento algum enquanto meneava a cabeça. – Eu deixei de lado tudo que poderia conquistar na Inglaterra e segui Draco. Vim por ele e pela vida que disse podermos construir com o tempo, juntos, longe de tudo o que nos prendia. Imaginei toda uma história com o homem que eu sempre amei, sem nenhum empecilho dessa vez. Então... Você apareceu.

A outra soltou os braços finos ao lado do corpo e, finalmente, pode visualizar o que a outra tinha em mãos. Calmamente, a viu andar até a cômoda no canto do luxuoso aposento e depositar uma matrioshka ao lado de suas semelhantes, organizadamente dispostas sobre o móvel. Hermione, quando chegara a Moscou, decidira apegar-se a algo completamente mundano, algo que não teria feito em seu status quo. A coleção de bonecas russas crescera com o tempo, mas sem pressa, acompanhando sua própria evolução. Sempre saía de casa, fazia questão de adquirir uma delas, um souvenir para recordá-la seus passos rumo à distante superação.

— Aonde quer chegar? – Astoria voltou a olhá-la, as luzes do jardim sombreando seus olhos pequenos, mas fugazes.

— Eu a encontrei no escritório de Draco. – Ela confessou, aproximando-se. – Junto disso. Interessante não?

Sem cerimônias, a mulher enfiou em suas mãos uma embalagem retangular ilustrada por um bebê sorridente e chamativo. Chocolates Alionka haviam se tornado seus favoritos. Malfoy sabia e, pelo visto, sua esposa também. Às vezes, quando lhe era oportuno, o mesmo lhe trazia uma boneca russa que achava combinar com Hermione ou as demais matrioshkas de sua coleção. O significado que tinham para Hermione não importava a Malfoy. O mesmo aplicava-se ao chocolate. Ela não pedia, ele simplesmente se lembrava.

 Era possível perceber como apenas encontrar aqueles objetos na posse de seu marido a haviam perturbado. Porém, se fosse necessário um palpite, Hermione diria que o incômodo de Astoria a acompanhava desde que Hermione batera à sua porta. Ela não a culpava, de qualquer forma. Não era uma tola, percebia que a mulher se esforçava para ter consigo o máximo da atenção de seu marido, pois, supostamente, tinha dentro de seu próprio teto uma ameaça à vida feliz que planejara.

— Eles não são meus.

— Não. – A outra concordou um murmúrio que não teria ouvido se estivessem distantes. Porém, Astoria aproximara-se o suficiente para que Hermione sentisse a tensão exalando de cara poro seu, para que percebesse como ela falava sério e que poderia, também, ser tão ameaçadora quanto uma Malfoy deveria. – Mas seriam. Draco, provavelmente, planejava presenteá-la com eles pelo Natal.

— Eu duvido muito disso. – Desviou-se dela, jogando a embalagem sobre a cama de forma displicente.

Malfoy não lhe parecia um tipo apegado a datas. Ele lhe levava matrioshkas e chocolates quando bem queria, assim como presenteava Astoria com peças caras, bruxas e trouxas, quando achava necessário. Às vezes, a própria Hermione lhe auxiliava na busca por algo que sua esposa fosse gostar, pois a adjetivava “observadora demais para manter tal dom inutilizado” e, por tabela, era uma distração de suas lembranças. Todavia, não se tratava das datas e sim das pessoas.   

— De qualquer forma, agora o são. Eu os dei a você. – Astoria continuou a falar de costas a ela. – Você estragou tudo de bom que eu poderia ter construído com Draco durante estes meses, meramente, com sua presença perturbadora e decadente. Você é tudo que eu sempre quis evitar aqui, pois o remete a um passado que Draco quer esquecer a qualquer custo, mas você... Sua presença é tão tóxica que ele está cada vez mais tomado por essa aura danosa que carrega consigo.   

— Astoria...

— Não! – Ela a cortou, suspirando alto. – Eu vejo a forma como ele a olha. Percebo como Draco a trata diferente e como vê em você essa distância que sempre quis de um mundo que é nosso. Meu e dele, não seu.

— Eu não sou dona das vontades dele, Astoria.

Todavia, seu momento de divagação e quase defesa pareceu soar aos ouvidos da mulher como a gota d’água, que se voltou a ela com rapidez. Ela não chorava, percebeu. Astoria jamais se digladiaria perante Hermione para conseguir o que quisesse. Mas os olhos estavam vermelhos, injetados pelas lágrimas e a raiva, até então guardadas.

— Quero que vá embora da minha casa.

And if you let go I'll float towards the sun

I'm stronger 'cause you fill me up

But when the fear comes and I drift towards the ground

I am lucky that you're around

Rio Ruza

O Alto Inverno

A tempestade rugia lá fora como se o mundo estivesse se despedaçando ao seu redor. Escuro como breu, apenas podia ouvir como o vento fazia seu estrago, a neve acumulando a cada segundo em seu vasto quintal com vista para o rio Ruza. Durante o dia, quando tivera coragem de abrir a porta de vidro para checar o inverno mais rigoroso pelo qual passara, a água do mesmo corria lenta e calmamente, onde, é claro, já não estava congelada. O Inverno mudava completamente a vida dos russos e podia entender por que. Porém, os bruxos possuíam certos meios para resistir às baixas temperaturas, mais adequados e menos prejudiciais à vida que não podia parar. Dessa forma, adaptavam-se ao novo clima e seguiam relativamente conformados.

Assim, fora uma surpresa que Malfoy aparecesse em meio à tempestade de neve que assolava a cidade e batesse à sua porta, quase que desesperadamente, justamente àquela noite. Trabalhando a leste do bairro Nagatino, onde também ficava a sede do Governo Bruxo Russo, Malfoy passava a maior parte de seus negócios na empresa de sua família. Porém, desde que se mudara para a casa de campo rústica às margens do Rio Ruza, há pouco mais de um mês, Malfoy a visitava regularmente três vezes por semana.

Eles passavam muito tempo conversando, às vezes sobre nada, às vezes sobre tudo, mas sempre arranjavam um motivo para dividir uma garrafa de vinho ou, preferivelmente, vodka. Hermione gostava dos dias em que se embebedava. O sono era tranquilo, sem pesadelos ou lembranças desagradáveis entre as sombras de seu solitário quarto – se fosse desconsiderar o enjoo causado pelo álcool. Todavia, Malfoy, geralmente, ia embora sempre que notava que estava mais alterada que o normal.

— Merlin, você precisa ir ao Ministério para dar um jeito nessa lareira. – Ele decretou, passando mais que rapidamente para o lado de dentro. – Chegar à sua casa é o caos.

— Eu ainda não tive tempo.

O viu resmungar, pois a desculpa de que não tinha tempo não colaria jamais. O que Hermione mais tinha em sua vida era tempo para reviver e remoer as lembranças indesejáveis que nunca a deixavam. Porém, a forma como ele atravessara a sala e encaminhara-se diretamente ao pequeno bar próximo à janela lhe tomara a atenção. Malfoy não costumava ser agitado, mas naquele dia parecia estranhamente inquieto. Seus gestos, sempre contidos, soavam descontrolados e fora de ordem, principalmente para alguém tão observadora.

Percebera como ele tirara o lacre da vodka sem muito cuidado e buscara um copo no armário de madeira ao lado do fogão, como se acostumado ao gesto e lhe fosse completamente automático. De fato, Malfoy andava por sua casa como se fosse dele – aliás, como o fazia em todos os lugares pelos quais passava. Entretanto, dessa vez, se encontrava completamente tenso e um tanto pálido. Por isso, aproximou-se cuidadosamente, analisando-o, invertendo os papéis tão facilmente pela primeira vez.

Era claro que algo o perturbava, mas o silêncio impregnou a casa toda assim que ele tomou toda a dose de bebida que servira para si, sem preocupar-se com sua presença. Então, aproximou-se, apoiando-se no balcão que os separava, apenas observando-o e esperando. Malfoy não era do tipo que soltava coisas quando pressionado. Ele gostava de estar no comando e de solucionar problemas por si mesmo. Do contrário, Hermione não estaria ali, ou mesmo o próprio Draco. Exceto que, dessa vez, ele não estava.

Reparou nos olhos injetados, nervosos e dispersos, parecendo ainda digerir algo que o assustava. Então, ele respirou fundo, apoiando-se no balcão como um reflexo de Hermione, mas a cabeça baixa que fazia com que seus cabelos, claros como a lua, caíssem em uma curta cascata. A pele do rosto dele, quase sempre translúcida, continha manchas vermelhas em alguns pontos, o que não era raro, mas que sabia apenas acontecer quando Malfoy encontrava-se muito nervoso. Em algumas ocasiões, ele chegara ali em tal estado, mas nunca se dispusera a demonstrar uma cólera tão profunda perante ela. Era parecido com Astoria nesse ponto. 

Ao longo dos minutos, ouvia-se apenas o som de sua respiração em meio aos ruídos cada vez mais gritantes da tempestade que assolava Moscou. A iluminação dentro de sua casa era um tanto escassa, vinda apenas de abajures dispostos em locais estratégicos, o que tornava a sombra dos olhos acinzentados cada vez mais acentuada. Entretanto, notou quando ele finalmente a encarara.

— Astoria está grávida.

A voz rouca preencheu o ambiente enquanto Hermione mantinha-se impassível aos olhos dele. Malfoy fizera isso por ela, continuava a fazê-lo, repetidamente, desde que estavam ali, e agora era ele quem precisava, se esse era um assunto que demandava tanta perturbação. Ela poderia lidar com seus próprios fantasmas em uma ocasião posterior, ainda que isso lhe exigisse certo esforço.

Hermione correu uma das mãos pela madeira do espaçoso balcão, a fim de alcançar a dele, tensa e rígida, mas o loiro foi rápido em voltar-se à vodka novamente, servindo apenas a si mesmo e tomando um novo e generoso gole em uma careta ao sentir o líquido rasgando a garganta enquanto percorria seu caminho em direção à embriaguez. Portanto, Hermione também foi rápida em tirar a garrafa de seu alcance.

— A bebida não vai ajudá-lo a tornar mais fácil. – Disse em tom neutro, dando a volta no balcão para guardar a mesma, ganhando tempo para ela mesma pensar sobre o assunto.

— Isso... Não é nada como o planejado. – Ele disse ainda de costas enquanto Hermione suspirava, encostando-se à bancada.

— Esqueça os planos, Malfoy. Se fôssemos considerá-los, eu não estaria aqui hoje. Moscou não estava em meus planos mais remotos. – Ela abaixou o tom. – Se a vida fosse construída em cima de planos... Nós não seríamos o que somos hoje.

— E o que nós somos, Granger?

Draco a interrompeu antes que pudesse concluir seu pensamento e, para isso, não havia uma resposta. Ele a encarou com seus olhos intimidadores, esperando, questionando silenciosamente, como sempre fizera, pois a questão também lhe era confusa. Hermione mordeu os lábios e quebrou o contato visual, temerosa. Aquela não era uma região segura pela qual caminhava com facilidade e conhecimento. Pelo contrário, sempre fora tão repleta de armadilhas que evitara a todo e qualquer custo.

— É o seu filho, a família que está construindo com Astoria. Não precisa ser mais complicado do que isso. – Ela voltou a olhá-lo, firmemente. – Você será um bom pai, Draco.

— Queria que tivesse vindo antes. – Hermione prendeu a respiração à mudança de assunto. – Que não tivesse aparecido no meio da noite pra questionar todas as minhas escolhas.

Não sabia por que ele mencionara como sua chegada a Moscou fora inconveniente, mas nunca pensara nisso sob tal aspecto, nunca questionara a si mesma sobre o que Draco realmente queria ao convidá-la para mudar de cidade, nunca pensara em questioná-lo porque estava imersa demais em dores que consideravam mais iminentes e traumáticas, tão concentrada em si mesma, que talvez não tivesse pesado todos os pontos ao negar veemente uma mudança tão drástica no início.

— Não me coloque como uma válvula de escape. Estamos nisso há tempo suficiente para saber que o contrário é muito mais plausível.  – Ela declarou em tom baixo, no que ele meneou a cabeça, mais concentrado no piso de madeira entre eles do que em Hermione.

— Reprimir a ideia não vai mudar o fato.

“Eu vejo a forma como ele a olha. Percebo como Draco a trata diferente e como vê em você essa distância que sempre quis de um mundo que é nosso.”

A voz de Astoria soou forte em sua mente e Hermione rejeitou a praticidade dele, lhe dando as costas e caminhando em direção a porta de vidro que a separava do caos climático do lado de fora. Malfoy, entretanto, parecia decidido a conversar sinceramente enquanto ela, na mesma medida, gostaria de poder fugir de qualquer assunto inapropriado. Sua esposa estava grávida, apenas isso já bastava para colocar fim a qualquer suposição que ele pudesse fazer.

Dessa forma, antes que pudesse esperar, a aproximação se tornara inevitável. Os braços dele a cercaram, embora não a tocassem realmente. As mãos de dedos finos apoiaram-se contra o vidro e ela pode sentir o corpo quente próximo, assim como enxergar o reflexo turvo de ambos. Draco chamava a atenção pela forma como sua altura destacava-se perto dela enquanto seus cachos caíam furiosos sobre os ombros, tapando a pele claramente arrepiada.

— Você se tornou mais importante do que achei que poderia. – Ele declarou em um murmúrio, quase como se tivesse medo. – Durante a maior parte do tempo gostaria... Que as coisas tivessem sido diferentes, que a roda girasse da forma como imaginei, que tivesse aceitado vir... Antes de tudo.

— Eu não quero... Que me culpe por suas escolhas. – Suspirou quando o sentiu apoiar a cabeça contra a sua, aspirando ao aroma de seus cachos. Hermione manteve o tom baixo, escolhendo calmamente suas palavras. – Mas aceito a idéia de ser sua válvula de escape. Sempre estarei aqui, assim como sempre estará por mim.

— Granger...

— Eu aceito, Malfoy. – Ela disse mais firmemente, voltando-se a ele entre seus braços. Os olhos do mesmo, agora, encontravam-se mais azuis do que um dia já vira. – A questão é: no momento, precisa estar por sua família. Não é mais sobre você ou sobre Astoria, é o melhor que podem ceder a essa criança. Eu sempre estarei aqui.

Ambos concordaram brevemente, mas não houve menção de afastamento. Pelo contrário, já apoiada contra a porta de vidro, via Malfoy tornar-se cada vez mais próximo ao ponto de suas respirações encontrarem-se de forma tentadora, fazendo com que as batidas de seu coração se misturassem facilmente aos ruídos lá fora. Ele ainda não a tocava, mas a energia que parecia rodeá-los era tão forte que Hermione estava arrepiada apenas com a idéia e a forma como ele encarava seus lábios. A essa altura, sua respiração já se encontrava ofegante e o contato escovado de seus narizes parecia quase tentador demais para resistir.

— Não faça isso. – Sussurrou o pedido, molhando os lábios automaticamente.

— Eu já fiz isso.

— Não faça isso, novamente.

Repetiu ante a resposta dele, mas só serviu para que ele efetivamente unisse seus lábios. Simples. Ansiado. Amedrontado. Hermione sentiu a textura fria do vidro contra suas costas, e as mãos dele em sua cintura, adentrando sua larga blusa de lã, buscando algum contato com sua pele, arrepiando-a e levando-a tão próxima a si quanto a física permitia.

Suas línguas entrelaçaram-se lascivamente, movimentando-se como se já se conhecessem e seus próximos passos fossem conhecidos e esperados. Tateando com os dedos o calor de sua nuca e a maciez dos cabelos loiros, Hermione gemeu ao ter sua língua massageada convictamente pela de Draco, enviando espasmos de prazer a seu baixo ventre enquanto o homem explorava sua cintura e barriga.

Pareciam encaixar-se, encontrando um ritmo que satisfizesse a ambos com tanta facilidade que lhe era assustador em um primeiro momento. Porém, percebendo como essa completude era benéfica, sentindo todas as sensações que o conhecimento de um sobre o outro proporcionava, deixava de lado todos os questionamentos para aconchegar-se àquele lugar que almejava a tempo suficiente para não conseguir se lembrar quando começara.

Sentia o perfume dele e os dedos em sua nuca, enrolando-se lentamente em seus cabelos, da mesma maneira que a textura da barba por fazer roçava contra a pele de seu rosto e tudo isso parecia tão familiar e confortável que Hermione não queria, simplesmente, deixar ir, pois fazia tempo demais que se sentira daquele jeito a respeito da forma como um homem a segurava.

Então, o beijo cessou, mais rápido do que quereriam, embora ambos se recusassem a quebrar o contato de seus corpos ou de seus rostos colados. As respirações ofegantes, os olhos fechados, demonstravam o quanto a proximidade era apreciada, o quanto desejavam poder continuar sem nenhum empecilho. Porém, aquela era uma linha muito mais difícil de ultrapassar no caminho tortuoso que resumia ambos ao momento.

O último roçar de lábios foi dela, por ela. Então, suspirando, obrigou-se a se afastar, mordendo os lábios e evitando encará-lo, pois sabia que cederia se o fizesse. A convicção de Malfoy era algo com que estava acostumada a lidar e não precisava ter prova alguma disso. Ainda sentiu as mãos lhe apertando a cintura, deixando um rastro quase ardente em sua pele clara, antes de, finalmente, quebrarem todo o contato.

— Vá para a casa, Draco. Eu estarei aqui. 

Yeah, I wanted to play tough

Thought I could do all just on my own

But even Superwoman

Sometimes needed Superman's soul

Represa Pererva

O início da Primavera

— Hermione.

Encostada contra a balaustrada que a separava das águas da Represa que rodeava as construções do esplendoroso e altivo Ministério Russo, Hermione se voltou ao chamado sem precisar forçar um sorriso aos dois homens que caminhavam em sua direção. Não importava a implicação ou qualquer que fosse o motivo para estarem ali, sempre ocupariam o lugar de porto seguro para onde voltar quando a insegurança de outras marés se fizessem mais insuportáveis. 

Harry e Ron a abraçaram, agasalhados e desconfortáveis em um ambiente quase hostil que, para eles, era a Rússia. Porém, apesar da sensação de desconhecimento que carregavam, a aura familiar que os rodeava e que significava muito mais a ela era mais forte. Sentia falta de ambos. De suas tardes desocupadas jogando conversa fora nos fins de semana ou dos drinks que sempre costumavam tomar após o trabalho ou, até mesmo, das discussões empreitadas no Salão Comunal da Grifinória nos tempos de paz.

 - Você está bonita.

Tendo as bochechas ainda coradas pelas temperaturas baixas remanescentes do difícil inverno, Hermione sorriu a Ron, agradecida, e enganchou o braço no dele, encaminhando-os a um dos bares da Rua da Faia, o local onde havia maior movimentação bruxa em horário comercial de toda a Moscou. Via como seus dois amigos encaravam tudo com extrema curiosidade, percebendo a dinâmica e a cultura diferente que os cercava. Reconhecia-se nos olhos muito verdes de Harry e nos azuis cristalinos de Ronald, ela mesma ainda não havia se acostumado a tanta beleza e excentricidade coabitando um só lugar.

— Este lugar é incrível, não?

Verbalizou o que eles tinham em mente antes de abrir a porta do bar a que se dirigiam e começasse a descer as escadas que os levariam às mesas. Era escuro e abafado devido à falta de iluminação natural, as poucas luzes acesas àquela hora enfrentavam dificuldades para alcançar o ambiente todo, repleto de gente e conversas animadas. Enquanto sentavam-se, supôs que estavam se preparando para voltar à superfície das ruas após o inverno, como Draco disse que era o feitio dos comerciantes dali, com a ajuda de um feitiço local.

— Sabíamos que as chances de detestar este policiamento seriam imensas, mas precisávamos saber como estava, Hermione. – Harry começou na defensiva, após cada um marcar o pedido no cardápio mágico que ficava sobre cada uma das mesas. Entretanto, Hermione apenas lhe sorriu, tranquila. 

— Eu estou feliz que estejam aqui, sinceramente. – Buscou as mãos de ambos sobre a mesa. Quentes e familiares até mesmo nos calos. – Por mais que adore Moscou e toda a novidade, tudo que deixei na Inglaterra faz muita falta. Como estão Ginny, as crianças, Molly e todo o resto?

Porém, procrastinara o encontro o quanto foi possível, sem deixar que percebessem suas intenções. Tinha em mente que queria, não somente aparentar estar bem e feliz com sua nova vida, mas efetivamente sentir isso em suas veias e seus poros a cada vez que se lembrava de todas as possibilidades que a aguardavam no ninho de surpresas que era a Rússia e Moscou. Seu objetivo sempre fora refazer-se e estava apenas começando, mas sentia-se melhor do que jamais estivera desde o acontecido com Greyback.

Por isso, podia afirmar que ficava, realmente, feliz em ouvir sobre o casamento de Ron, marcado para o Outono daquele ano, assim como passara a se interessar com mais facilidade pelas histórias de Harry e as resoluções de seus casos, além de falar sobre si mesmo com mais segurança do que já fizera em muitos meses. Demorara a chegar àquela altura e não podia afirmar que suas cicatrizes haviam se curado, mas os pontos já não soltavam tão facilmente.

Encontrara um trabalho como tradutora de livros bruxos ingleses e americanos, o que, segundo eles, não poderia combinar mais com ela e sua eterna alma de estudante. Hermione já podia se considerar fluente na língua russa, o que impressionara Draco quando lhe contara, mas não surpreendera nenhum de seus amigos, pois eles a conheciam há tempo suficiente para esperar algo do tipo. Por fim, podia-se dizer que todos estavam satisfeitos com suas vidas, ainda que Hermione tivesse alcançado certa plenitude profissional por um caminho mais tortuoso e dolorido, que não deveria ser imposto a ninguém.

— Harry me contou sobre Greyback. – Ron soltou sem nenhum aviso, o que fez com que o moreno o encarasse exasperado, num comportamento típico de ambos. Enrijeceu à tensão, mas não se importou pela falta de jeito do ruivo, conhecedora o bastante para entender que não mudaria sua personalidade quase insensível com muita facilidade. – Queria ter estado lá por você, Hermione. Eu sinto muito.

Viu o mesmo olhar condescendente de Harry na face arrependida de Ron, como se um deles tivesse culpa sobre o que aconteceu quando o único culpado estava preso há quilômetros demais dali. Não era justo que todos se sentissem responsáveis por ela de tal forma, mas, no ponto em que estava, desfrutava da injustiça sem muita culpa, pois via a necessidade da presença constante de Malfoy em sua vida, assim como, agora, entendia a preocupação de seus amigos, embora detestasse fortemente o olhar penetrante de pena.

— Já faz muito tempo, Ron. – Disse com voz apaziguadora. – Eu sei que teriam feito algo se pudessem. Greyback estaria morto, se dependesse de vocês, e eu quis muito que isso acontecesse. Ainda quero, mas sinto esse sentimento começar a se deteriorar à medida que vou reconstruindo minha vida longe do caos que ele a tornou.

— Me desculpe por tentar fazer com que retornasse àquele pesadelo. – Pediu Harry referindo-se à sua insistência, meses atrás, de que deveria voltar à Inglaterra e acusar Greyback. – Nenhum de nós dois pode mensurar o que passou e, talvez, tenha sido um pouco insensível.

— Eu não digo que nunca retornarei ou... Que nunca tentarei fazer algo em relação a ele, eu apenas... – Deu de ombros, procurando as palavras certas enquanto brincava com os próprios dedos. – Estou me encontrando novamente. Parece-me que estou em um eterno processo de mudança para tentar desvendar quem eu sou. Então, deixe-me pisar com cuidado, tateando as feridas e cicatrizando-a sem pressa. É só nisso que penso.

Viu Harry e Ron assentirem. Por confiarem nela. Por desejarem seu bem, mesmo acima da busca de justiça pelo que Greyback merecia. Então, encontrou um novo rumo para a conversa, sem grandes dificuldades, pois, entre eles, sempre fora fácil demais, e aproveitou a agora rara companhia de seus amigos mais antigos. Certa vez, ouvira que se pode ir muito longe, alçar diversos voos e sempre desfrutar da jornada; mas não se pode ir tão longe a ponto de esquecer o caminho de volta. Hermione não esqueceria, pensou, tão certa quanto o vinho carmim em sua taça, não o importasse a duração de seu percurso.

Help me out of this hell

Your love lifts me up like helium

Your love lifts me up when I'm down down down

When I've hit the ground

You're all I need

'Cause your love lifts me up like helium

Your love lifts me up like helium

Úlitsa Kosygina

O início do Outono

          - Pensei que não fosse vir vê-lo.

          O quarto exalava um aroma pesado de lavanda e tudo ao seu redor remetia à tranqüilidade e infantilidade em tons verdes claríssimos e o predominante branco. Detalhes em bege eram vistos em pontos estratégicos, como, por exemplo, nos desenhos lindamente expostos dos enxovais e no grande tapete fofo em que pisava.

          Porém, seus olhos estavam vidrados na criança que dormia plena e sem preocupações no berço suspenso, que encontrava disposto próximo a uma janela. Embora Agosto fosse alvo de superstições bruxas, fortemente enraizadas, principalmente na comunidade inglesa, Scorpius Malfoy viera ao mundo no início daquele mês, o fim do forte verão no Reino Unido. Draco lhe contara que Astoria se recusara terminantemente a tê-lo em Moscou, longe de sua família e de seus costumes. Por mais que não se dessem bem, Hermione a entendia. A Greengrass sentia-se uma forasteira naquela terra distante, onde nada lhe era querido e conhecido. Ela estava ali por Draco e somente isso, uma estadia temporária.

          Agora, a mulher encontrava-se à porta. Braços cruzados e aparência cansada, ainda que envolvida pela seda púrpura e cara do longo robe. Era visível como os cuidados com o bebê a estavam esgotando. Astoria era dedicada e se recusava a contratar ajuda para cuidar de seu filho. Hermione supunha que o fato de Scorpius ter nascido com um mês de antecedência, despertara nela certo instinto protetor maior do que o considerado normal. Entretanto, se fosse mãe de uma criança tão linda como aquela à sua frente, talvez entendesse o sentimento.

          Apesar da condição de prematuro, Scorpius ganhara peso em seus quase dois meses e agora aparentava uma face corada e expressão saudável. Draco lhe dissera que ele nascera muito pequeno e que o parto, ainda assim, fora complicado. A família Greengrass, entretanto, fora bastante útil nas primeiras semanas enquanto a mãe se acostumava à nova vida pela qual era responsável e aprendia os cuidados que devia tomar. Agora, em Moscou, eram apenas Astoria e Draco. Ele lhe narrara como tudo fora amedrontador na primeira noite, no que Hermione apenas riu, supondo que fosse uma sensação que o acompanharia pelo passar dos anos. Mas, ainda segundo ele, as coisas se tornaram interessantes com o tempo.

          - Ele é perfeito.

O murmúrio saiu fácil, ignorando a alfinetada proposital. Havia quase um mês que Astoria voltara da Inglaterra – não sem alguma resistência, é claro. Supunha que o conforto de casa e do conhecido fossem muito apelativos à mulher. Todavia, conscientemente, Hermione esperara que Scorpius estivesse melhor quando fosse conhecê-lo e, inconscientemente, evitava a visita por medo. De Astoria, que praticamente a expulsara de casa; de si mesma, pelo que emergia em seu íntimo a cada vez que via Malfoy.

          - Se parece com ele, não é? – Hermione apenas concordou, no que ela se aproximou, parecendo amena e de guarda baixa. Era estranho vê-la daquela forma, ainda mais em se tratando de Hermione visitando seu precioso bebê. Draco lhe contara que Astoria estava diferente depois de dar à luz, mas não mencionara o motivo e ela não fizera questão de perguntar. – O ângulo do rosto, o nariz fino, os olhos... Merlin, você ficará encantada com os olhos!

          - Imagino que sim.

          Astoria continuara a contar sobre o filho, como a mãe orgulhosa que era, mas logo pareceu cansar-se de rodear o berço e, por isso, acomodou-se sobre uma cadeira de balanço almofada. Pele pálida, despida da maquiagem habitual, mas, ainda assim, sustentando uma expressão altiva e a postura impecável nos ombros altos e nas pernas cruzadas, o corpo parecendo ainda mais magro do que de costume, notou.

          - Pegue-o. – O corpo de Hermione enrijeceu enquanto encarava a outra com o questionamento cristalino em seus olhos amendoados.

          - Eu não tenho jeito com crianças. – Não era mentira. Fora uma criança solitária e uma mulher adulta que não considerava a possibilidade de ter uma em um futuro próximo, principalmente depois de todo o acontecido. Bebês não eram o seu forte, por mais que fossem lindos e exalassem saúde por todos os poros.

          - Vamos, pegue-o. Scorpius é macio e receptivo, não irá estranhá-la. – A morena insistiu. – Além disso, encontrará motivos para gostar de você. Draco encontrou, não foi?

          Encarou a mulher de forma atravessada pela insinuação. O ciúme ainda persistia, ainda que Hermione não vivesse mais sob seu teto e, mesmo que Astoria estivesse cercada pela fachada de civilidade, era possível perceber o rancor nas entrelinhas. Já fazia quase ano desde que deixara a casa dela e tentara ficar fora de seu caminho, do percurso de seu casamento e da gravidez. Continuava próxima de Draco, porque precisava dele e concordara em ser uma bússola, mas tinham seus limites, ainda que a Greengrass não fosse capaz de enxergá-los, cega pelo que considerava incômodo em sua presença.

          - Não seja essa mulher, Astoria. – Disse em tom baixo, quase lamentando. – Draco está aqui. Esteve por você durante todos esses meses e, agora, há Scorpius. Vocês estão ligados, para sempre, como provavelmente sempre desejou...

          - Não estou sendo “essa mulher”, Granger. – A outra a interrompeu com um sorriso de desprezo. – Dias contados não podem ser somados. Draco e eu estamos chegando ao fim. Lenta e dolorosamente. Ambos sabemos.

          Hermione não encontrou o que dizer em relação àquilo, pois ainda se lembrava muito claramente das palavras de Draco, meses atrás, assim como sua promessa. Aquela era a maior recíproca que podia providenciar naquele momento: aceitar estar lá por ele, quando precisasse. Era racional demais para permitir qualquer outra coisa, assim como ele, que se sentia responsável por Astoria, sua estadia ali, o filho que esperavam. Tudo parecia ter acontecido rápido demais. Além disso, ele não comentava a que pés andavam o casamento, era quase um tabu. Evitavam falar de Astoria, embora o mesmo não soubesse sobre a discussão que tiveram antes de Hermione deixar a casa deles. Draco tomara por uma decisão completamente singular e deveria ficar assim.

          - Quando Draco a encontrou naquela noite, eu realmente lamentei por você. – A mulher voltou a falar, quase a obrigando a prender a respiração. Não sabia que Draco lhe contara sobre Greyback e aquela noite.  – Eu odiei Greyback por você, por lhe submeter àquilo. Porque sou mulher também e imaginei a dor que sentia. Coloquei-me no seu lugar, tive empatia e até auxiliei Draco a encontrar um médico de confiança para curar suas feridas. Ao menos as externas, as mais superficiais e+m comparação com as outras. Draco a ajudou como pôde, mas ele jamais será capaz de medir o que passou, talvez nem mesmo eu. Mas, como mulher, sei que estou mais apta a me aproximar da humilhação que deve ter lhe tomado. Eu vi seu estado e enojei muitos homens por isso.

          - Pare. – Hermione pediu de dentes apertados, tentando conter as lágrimas quase torturantes em seus olhos.

          - Draco estava no lugar certo, na hora certa, e eu o amei ainda mais. – Astoria já não sorria, apenas encarava um ponto na parede, apesar de parecer reviver outros momentos em sua mente. – Então, vi a forma como ele cuidava de você, como ele a encarava, como ele pareceu ficar mexido por toda aquela situação, se aproximando ainda mais porque estava... Frágil. Foi a palavra que ele usou quando apareceu naquela porta. E eu amaldiçoei a tudo e todos que o fizeram estar lá exatamente naquele momento. Desejei que Draco não tivesse lhe salvado porque, eu sabia, você iria estragar tudo.

          Simplesmente, não podia imaginar um cenário onde Malfoy não a tivesse salvado. Hermione, provavelmente, estaria em uma situação muito pior – ainda considerando que os meses após o acontecido não havia sido fáceis. Greyback a teria marcado de forma muito mais permanente e traumatizante. Por isso, era cruel que Astoria lhe revelasse um desejo como aquele apenas porque seus sonhos de infância, idealizadores de um casamento perfeito, haviam sido desiludidos.

          - Eu jamais tive a intenção de contar seus dias com Draco, Astoria. – Disse com dificuldade, trêmula pelo que as palavras de Astoria a proporcionavam. – Não é a razão para eu me manter aqui e, como mulher, deveria imaginar. Afinal, é tudo que está ao seu alcance.

          Pois a outra poderia imaginar, mas sentira na pele a sensação. Hermione a detestava por isso, ainda que Astoria tivesse feito tudo que estivesse dizendo. Pois a mulher, inconsciente ou conscientemente, a culpava por toda aquela situação. Já lidara com a culpa por muito tempo, certos dias ainda eram piores que outros; quando a culpa, a humilhação e a vergonha tornavam-se insuportáveis. Não precisava de Astoria relembrando-a cada momento ruim que a levara até Moscou.

          - Tento não ser “essa mulher” todos os dias, Granger. – Ela levantou-se, sem pressa, e pegou Scorpius do berço. O mesmo fez menção de acordar, mas somente aninhou-se melhor aos braços da mãe. – Por isso, sei que nunca teve a intenção. De qualquer forma, o destino o destino parece ter se encarregado disso por conta própria.

Your love lifts me up like helium
Your love lifts me up when I'm down down down
When I've hit the ground
You're all I need

Rio Moscou

O Pleno Outono

 O vento era frio contra sua pele, mas não tanto quanto já havia sido. Agora, todos acompanhavam com certa letargia o cair das folhas amareladas da estação, preparando-se para o próximo e inevitável rigoroso inverno. A cidade fluía com rapidez e equilíbrio, assim, às suas costas, era possível ter uma vista privilegiada do Kremlin, a sede do governo russo, altivo e imponente em seu vermelho alaranjado.

Porém, apesar de tudo, seus olhos não se distraíram por muito tempo com a paisagem sempre encantadora, logo se desviando para a figura, aparentemente calma e quase inexpressiva, debruçada contra a amurada de ferro da ponte sobre as águas do rio Moscou, também chamado Moscova em uma variação linguística. Dessa forma, caminhou sem hesitação pelos ladrilhos da antiga de ponte de pedra até que seus saltos anunciassem com sucesso a presença junto a um Draco Malfoy de semblante sério.

Agasalhado em vestes caras e escuras, como era de seu costume, Malfoy parecia ainda mais intimidador. Ele sempre passara tal impressão sem esforço algum. Certa vez, supusera que a habilidade se devia a criação, então mudou de direção, levando em consideração a personalidade diferente de tudo que conhecia e considerava correto. Por fim, desistiu de tentar decifrá-lo a respeito disso. Malfoy, simplesmente, parecia apreciar ser assim e nada tinha a ver com tanto.

— Deveria ter me contado sobre Astoria.

Proferiu, de maneira corajosa, não se referindo ao fato de Astoria saber sobre o que Greyback lhe fizera. Ainda precisara de alguns dias após a visita a Scorpius para chegar a uma conclusão satisfatória sobre o que realmente acontecia com a mulher. Ele somente anuiu em concordância, sem se preocupar em retrucá-la. Agora que analisava mais atentamente, parecia tão cansado quanto Astoria, dias atrás. Seus olhos transpareciam pelos orbes acinzentados certa exaustão que estava ali há meses e que apenas não notara porque não sabia o que procurar. Então, lembrara-se da maneira com que Draco sempre a encarava em desafio quando tateavam qualquer assunto mais delicado, como se esperasse que o notasse, como fazia com ela.

— Ela não queria que contasse. – Malfoy relevou em tom baixo. – Sabíamos que descobriria por conta própria.

Suspirou em rendição, pois era, de fato, um pedido que Astoria não hesitaria em fazer. A Greengrass jamais quereria Hermione a importunando em seus problemas pessoais, as lutas que ela devia enfrentar ao lado de Draco, ainda que ambos soubessem como estavam à deriva em um mar sem soluções. A encruzilhada sem fim onde apenas Malfoy’s poderiam estar, para bem ou mal. Ainda isso era um recado de Astoria e quase riu, não fosse uma piada de extremo mau gosto.

Dessa forma, simplesmente seguiu o olhar do loiro, fixo, em direção às águas turvas do majestoso rio. De alguma maneira estranha e quase fria, Malfoy parecia conformado demais com o que viria. Ele tivera meses para acostumar-se à ideia, tivera Astoria ao seu lado por tempo suficiente para que chegassem a uma conclusão juntos sobre tudo que vinha acontecendo. A gravidez fora um estopim para o fim, a mulher sabia disso como se acompanhasse uma bola de cristal privada e talvez macabra.

— Sinto muito, Draco.

Ela proferira após encontrar a verdade em suas palavras, no que o mesmo anuíra novamente, envolvendo-os em silêncio doloroso, mas confortável, por muito tempo. Naquele momento, toda sua atenção encontrava-se no homem ao lado. Ouvia os ruídos da cidade ao seu redor, mas apenas como um eco, preocupação exalando em cada poro seu enquanto observava o semblante quase intacto de Malfoy e a brisa que balançava levemente seus cabelos finos. 

— Vou precisar de você.

Malfoy, finalmente, voltou-se à Hermione, analisando-a como era de seu costume. Ela o examinou de volta, notando-o como devia ter feito desde o início, embora estivesse ocupada demais em suas próprias adversidades. Felizmente, o outro sabia disso, conhecia-a o bastante para não exigir muito de sua preocupação, para entender que Hermione mal mantinha a si mesma em pilares firmes e inabaláveis.

“Vou precisar de você, como você precisou de mim”.

Não foi necessário que ele dissesse para que Hermione entendesse em um olhar trocado. Malfoy não estava cobrando, sabia. Talvez, pela primeira vez na vida, ele pedia. Não era uma ordem, não vinha recheado da arrogância e prepotência habitual. Draco pedia porque concordara que estaria por ele quando precisasse e haviam aprendido confiar na palavra um do outro. Um no outro, mesmo sem promessas.

— Eu sei.

Ele conformou-se com sua anuência compreensiva e ainda a encarou por algum tempo, afastando de seu rosto uma mecha de seus cachos que sempre o incomodava. Não tinha idéia do que se passava pela mente dele, Malfoy sempre fora uma incógnita e não havia perspectivas de quando deixaria de ser. Contudo, não precisava lê-lo para saber que, agora, deveriam manter um ao outro em estabilidade quando as fortes ondas viessem, ainda que tivesse de guardar em uma caixa lacrada todas as suas relutâncias em relação ao que era a vida depois de Greyback.

Por fim, ela o puxou contra um abraço, paciente e firme, os braços rodeando seus ombros, as mãos acariciando delicadamente sua nuca. Hermione sentia seu perfume, inebriada, ao mesmo tempo em que os braços de Draco a seguravam de forma confortável, apoiando o rosto contra a curva de seu pescoço, como se o fizesse o tempo todo. Então, ali ficaram ignorando a cidade, ouvindo o murmúrio baixo e lamentoso das águas do Moscova, metros abaixo da amurada que haviam estabelecido como só deles naquele momento.

Cause your love lifts me up like helium

Your love lifts me up like helium


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Eeeeei!
Finalmente, a penúltima parte do Projeto e eu estou tão feliz que chegamos até aqui. Sério, espero que tenham gostado.

Estamos meio que voltando as raízes, não? A capa já é bastante parecida com a primeira, lá de Black and Blue, em suas cores e modelo. Ao mesmo tempo, temos uma Hermione que luta contra seus traumas durante o passar dos meses, mas envolve-se em uma nova trama que, agora, envolve Astoria.

Tenho que dizer, eu AMEI escrevê-la aqui. Talvez vocês queiram me matar por deixá-los como um casal? Talvez. Mas podemos discutir isso nos comentários ;) Ela teve um papel bem maior do que havia planejado inicialmente, pois o meu foco é sempre Draco e Hermione, certo? Mas não pude deixar de colocar aquelas partes para explorar mais uma trama sua, mas que ela sabe que ainda se encontra à sombra de Hermione. Eu tentei fazê-la não ser "aquela mulher" ciumenta e irracional, tentei encontrar um equilíbrio e você precisam me dizer se obtive sucesso nisso!!

A forma de narrar também foi algo que escolhi para que não ficasse maçante e, ao mesmo tempo, pudesse desenvolver o relacionamento deles sem uma aceleração desnecessária, afinal se passa, mais ou menos, um ano entre o final de Soon We'll be Found e o fim dessa. Por isso, as estações!!

Enfim, tivemos uma aproximação bem efetiva nessa parte e... Espero que tenham percebido a pequena pista que deixei sobre esse romance. Além disso, relevações, não??? Astoria já estava lá em Black and Blue!

Bom, espero muuuito que me digam nos comentários o que acharam para que eu possa preparar com bastante carinho a parte final. Sim! Eu também me apeguei, mas também já tenho até a música escolhida. Muito, muito obrigada pelos comentários na outra parte, assim como as recomendações. Eu os aceito e anseio aqui também hem!! :D

Até uma próxima, abraços ♥