Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 73
LXXI




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Adonis regressou passado uns quinze minutos e, além de um grande tabuleiro cheio de comida, trazia companhia.

— Karenn! — reconheceu Lee, animada — Vieste fazer-me uma visita?

A pequena vampira ensaiou um sorriso e confirmou com um aceno. Enquanto se aproximava, os seus olhos cruzaram-se com os meus durante breves segundos e eu engoli em seco quando me deparei com o ressentimento e a tristeza marcados no seu semblante. Karenn parecia ter envelhecido uns quinze anos desde a última vez que a vira. O rosto era o mesmo, mas os olhos… os olhos tinham perdido todo o brilho e alegria.

— Como te sentes, Lee? — perguntou a vampira num quase murmúrio, quedando-se a dois passos de distância da cama. Entretanto, Adonis estava a deixar o tabuleiro em cima da mesa junto da janela.

— Ótimo! Quero dizer, tirando a sede. Está mais fácil de suportar do que ontem, mas ainda incomoda um bocadinho.

— Ah, sim, o Nevra contou-me que és meio vampiro. Não fazia ideia.

— Acredita, eu também não…

Karenn fez mais um sorriso minúsculo e virou-se para mim. O seu tom foi estranhamente mecânico ao perguntar:

— E tu, Eduarda? Como estás?

— Estou bem… dentro do possível…

— O Nevra disse-me que aceitaste lutar do lado dos faeries.

— O quê? — admirou-se Lee, endireitando-se — Eu não sabia disso. Tu vais enfrentar o teu irmão, Eduarda?

Eu limitei-me a confirmar com um aceno.

— Fizeste a escolha certa — apoiou Karenn antes de fazer uma pequena careta — É claro que teria sido melhor se tivesses tomado essa decisão antes de ajudares os teus irmãos a devastar Eel, mas…

— Karenn! — ralhou Lee, franzindo o sobrolho — Isso não é coisa que se diga! A Eduarda estava sob o efeito…!

— Eu sei — cortou a pequena vampira, baixando o olhar para os próprios pés — Eu sei sobre a poção do amor, a desintoxicação e tudo o mais. É por isso que estou a tentar não culpar a Eduarda pelo que aconteceu, mas… — Karenn comprimiu os lábios numa linha fina e sacudiu levemente a cabeça — Desculpa, Eduarda, mas não consigo perdoar-te pelo Chrome…

Foi a minha vez de baixar o olhar, engolindo em seco. Apertei as mãos uma contra a outra para tentar esconder os tremores.

— O que aconteceu ao Chrome? — perguntou Lee, curiosa e apreensiva. Esperei que Karenn tomasse a iniciativa de responder, mas ela limitou-se a sacudir novamente a cabeça. Lee virou o seu olhar inquiridor para mim e eu inspirei fundo algumas vezes antes de abrir a boca:

— O Chrome… morreu. O Ashkore matou-o.

— O-o-o quê? N-não — balbuciou Adonis, parado ao lado da mesa onde deixara o tabuleiro — N-nós não sabemos se isso é verdade. O Chrome está só desaparecido…

— Ele está morto — cortei com a voz mais firme do que seria de esperar — Eu vi. Eu vi-o morrer…

Um silêncio frio e denso instalou-se lentamente no quarto. Durante o que pareceu uma eternidade, ninguém falou, nem se mexeu, até Karenn soltar um suspiro trémulo enquanto as lágrimas escorriam silenciosamente pelo seu rosto.

— Eu estou a fazer o melhor que posso para não te odiar, Eduarda… mas está difícil. O rapaz por quem me apaixonei morreu por tua causa e o meu irmão passa mais tempo a cuidar de ti do que a apoiar-me. Mesmo quando está comigo, o Nevra só fala e pensa em ti! Ele está a dar em doido por pensar que o titã se aproveitou de ti, sabias? Fica possesso só de imaginar o número de vezes que o titã te tocou enquanto estavas sob o efeito do feitiço, incapaz de o recusar. Eu compreendo que o Nevra tem razões para estar preocupado e tento dizer a mim mesma que precisas dele tanto como eu, mas… não consigo evitar sentir… que me estás a roubar tudo. Começando pelas pessoas que mais amo…

— Karenn — chamou Lee num tom triste — Isso não é verdade…

— Eu sei. Ou, pelo menos, é nisso que quero acreditar. Eu… eu não consigo pensar como deve ser. É tudo muito recente e confuso para mim. Tem vezes em que fico com pena da Eduarda e tem vezes em que só quero que ela… — calou-se antes de concluir o seu desabafo, limpou as lágrimas com as costas das mãos e soltou um pequeno suspiro, tentando recuperar a calma — Preciso de tempo para aprender a lidar com tudo isto. Preciso de tempo e espaço…

— Claro — murmurei, voltando a baixar os olhos — Eu percebo…

— Ótimo. Nesse caso… vou voltar para o acampamento.

— Já? Porque não ficas mais um pouco? — pediu Lee, ansiosa — Podemos falar sobre…

— Não — interrompeu Karenn — Desculpa, Lee, mas não me parece uma boa ideia. Não confio em mim mesma para estar perto da Eduarda neste momento. Só vim porque queria certificar-me de que estás bem.

— Oh… mas eu queria que me contasses as novidades — disse a ninfa num tom desconsolado.

— Teremos tempos de falar sobre isso mais tarde. Procura-me no acampamento quando receberes alta, pode ser?

— Hum, pode ser…

— Certo. Vemo-nos nessa altura, então. As melhoras, Lee. Até logo, Adonis. Adeus, Eduarda…

Feitas as despedidas, Karenn deu meia volta e foi-se embora. Eu, a ninfa e o centauro ficámos mergulhados numa atmosfera bastante soturna até Lee decidir quebrá-la com uma exclamação animada.

— Hora de comer, hora de comer! — cantarolou enquanto empurrava as cobertas para o lado. Adonis ficou aflito ao vê-la levantar-se e pediu-lhe que ficasse na cama que ele levar-lhe-ia a comida, mas Lee afastou o seu excesso de zelo com uma gargalhada e foi sentar-se à mesa. Eles começaram uma conversa inocente e descontraída enquanto Lee enchia o seu prato, mas calaram-se abruptamente ao fim de algum tempo.

— Eduarda? — ouvi a voz hesitante de Adonis chamar-me — N-não vens comer?

Abrir a boca foi inesperadamente difícil, mas lá consegui murmurar:

— Talvez mais tarde…

— Mais tarde? — repetiu Lee — Não estavas cheia de fome ainda há pouco?

Sim, estava, mas o encontro com Karenn fora muito eficaz em arrancar-me o apetite. Na verdade, sentia que iria vomitar a qualquer momento. A minha cabeça parecia rodar sobre os ombros. A minha respiração estava mais curta e rápida. O meu coração palpitava. Ondas alternadas de frio e quente percorriam-me o corpo todo, deixando-me a tremer. E, no meio de tudo isso, a voz de Karenn soava tão clara como se ela ainda estivesse no quarto.

“O rapaz por quem me apaixonei está morto por tua causa…”

Sentindo-me asfixiar, levantei-me com um pulo e quase corri para fora do quarto. Ouvi Lee e Adonis bradar o meu nome, mas não tinha tempo para olhar para trás. Eu só queria sair dali. Encontrar um sítio sossegado onde pudesse respirar. Um sítio onde não houvesse ninguém para me lembrar dos meus crimes…

Desci as escadas tão depressa que por pouco não tropecei. Lancei-me contra a porta e comecei a abri-la, mas o barulho da multidão do lado de fora fez-me estacar. O movimento no exterior parecia ser bastante intenso e isso reduzia a zero as minhas hipóteses de passar despercebida. Para piorar, desta vez, eu não tinha Nevra do meu lado, o que me deixaria completamente indefesa e desprotegida no meio do bando de faeries. Se ao menos houvesse uma maneira de passar por eles sem ser vista…

Apeteceu-me dar uma chapada na própria testa quando me lembrei que havia uma maneira. Os meus níveis de Maana talvez estivessem em baixo, mas deveriam estar altos o suficiente para me camuflar até algum lugar seguro.

— Eduarda!

Ouvi a voz de Adonis algures atrás de mim, mas não me virei para o encarar. Em vez disso, invoquei o bendito poder que me tornaria invisível e saí porta fora.

O largo diante da estalagem estava cheio de gente e o barulho e o movimento conseguiram distrair-me das minhas angústias durante algum tempo. Pelo menos até notar os rostos envelhecidos e distorcidos pela dor, pela tristeza e pelo medo. Ansiosa por me afastar de tudo o que me lembrasse do que eu fizera, fui procurando as zonas e ruas menos movimentadas até finalmente encontrar um lugar completamente deserto. Não tive, contudo, tempo para respirar de alívio, porque não tardei a ouvir passos atrás de mim. Ao dar meia volta, vi Leiftan aproximar-se.

O investigador da Reluzente vinha com uma pequena mochila pendurada no ombro e, alheio à minha presença, entrou numa casota de madeira que, pelo aspeto e cheiro, devia ser um estábulo. Eu segui-o sem sequer pensar e vi-o abrir a porta de uma das baias, puxando para fora o que parecia ser um pegasus com o pelo semelhante ao céu noturno, negro e salpicado de estrelas. Leiftan fez algumas carícias no focinho do bicho para o acalmar e depois foi buscar uma cela pendurada num suporte na parede. Enquanto ele apertava as fivelas em redor das costelas do cavalo com asas, deixei cair a camuflagem.

— Vais a algum lado?

Não sei quem se assustou mais, Leiftan ou o pegasus. O animal relinchou e recuou, levantando a cabeça como se fosse empinar-se. O investigador, por outro lado, deu um pulo e soltou uma praga antes de se virar para mim.

— E-Eduarda? — reconheceu enquanto se refazia do susto — O que estás a fazer aqui?

— Estava a… passear — era o eufemismo do ano, mas não me sentia muito disposta a discutir com Leiftan sobre o turbilhão de pensamentos e emoções que me trouxera até ali — E tu? Onde vais?

— Estou de partida para Nuum. Eu e a Ykhar iremos na frente para preparar algumas coisas.

— Ah. Estou a ver…

Leiftan assentiu debilmente antes de se virar para o pegasus, continuando a apertar as fivelas da cela.

— Bem, eu adoraria ficar a conversar, mas a Ykhar está à minha espera…

— Porque é que disseste aos outros que não me adoraste durante a viagem até Ryss? — cortei.

Leiftan petrificou e, como ele não se mexeu ou pronunciou durante vários instantes, decidi continuar:

— Porque é que lhes disseste que estava só a “estudar o meu comportamento”? Tu não precisavas de fazer isso, pois não? Tu sabias, e provavelmente ainda sabes, mais sobre mim do que eu mesma. Portanto… porque é que mentiste? Porque é que fazes tanta questão de esconder o que realmente aconteceu entre nós? Tens medo de sofrer represálias por parte dos faeries? Manchar a tua preciosa reputação?

— Tu não entendes…

— Pois não! Não entendo rigorosamente nada sobre ti! Como queres que entenda?! Tu treinaste-me e adoraste-me, mas depois disseste que só me deixaste viver para ser a isca do Ashkore! Tu ajudaste-me a esconder o que sou, mas depois meteste um quartel inteiro atrás de mim! Tu disseste que eu era uma ameaça e merecia morrer, mas depois salvaste-me da promessa que me fizeste assinar! Leiftan, sinceramente… O que diabos queres de mim?

Leiftan continuou sem se mexer durante bastante tempo e, quando finalmente o fez, foi para continuar a prender a sela ao pegasus. Agindo como se eu não tivesse dito absolutamente nada.

— Leiftan? Leiftan, responde-me, se faz favor. Acho que me deves pelo menos isso.

— Eu não te devo nada — respondeu num tom tão baixo que quase não o ouvi.

— Ah, deves, sim. Tu mentiste-me, enganaste-me, planeaste matar-me… tudo isso enquanto te aproveitavas de mim!

— Eu nunca me aproveitei de ti…

— Então o que diabos foi o que houve entre nós?! — vociferei, batendo o pé no chão — Se não me estavas a adorar, se não sentias nada por mim, então a nossa “relação” não teve qualquer utilidade! Como podes dizer que não te estavas a aproveitar de mim?! Estás a tentar fazer de mim parva agora ou mentir é só uma compulsão tua?! Além de titã, também és parte doppel…?!

Leiftan moveu-se tão depressa que quase não o vi. Num momento estava a seis ou sete passos de mim, ao lado do cavalo com asas. No outro, estava mesmo na minha frente, cobrindo a minha boca com a mão, silenciando as minhas palavras e abafando o meu guincho de susto.

— Estás a tentar matar-me? — sibilou num tom baixo e grave, olhando-me por entre as pestanas — É assim que te pretendes vingar de mim? Falando na Ihlini na frente dos outros? Falando do que sou onde qualquer um te poderia ouvir?!

Foi a minha vez de franzir o sobrolho antes de empurrar o seu braço com o meu.

— Ninguém sabe que és bisneto dela, pois não?

— É claro que não! O que achas que os faeries me fariam se soubessem que sou…? — deteve-se e desviou nervosamente o olhar enquanto humedecia os lábios — Enfim, não estou à espera que entendas…

— A sério, Leiftan? Tenho de te relembrar que sou uma titânide? Tenho de te relembrar que passei os últimos meses a morrer de medo do que os faeries me fariam se descobrissem o que sou? E que esse medo triplicou nos últimos dias?

Leiftan soltou um risinho de desdém.

— É essa a diferença entre nós, Eduarda. Tu sentes esse medo há alguns dias. Eu senti-o durante toda a minha vida! Cresceu comigo, está-me entranhado nos ossos! Eu vi os faeries torturar e matar os meus pais, Eduarda! Vivi anos na rua, dormindo ao relento, roubando para comer, fugindo sempre que alguém se aproximava por medo de ser reconhecido! Tu tens a sorte de ter ao teu lado pessoas que te defendem e apoiam, mas eu não tinha ninguém! Estava completamente sozinho! Ainda estou completamente sozinho!

— Isso… — tentei interromper, mas Leiftan não permitiu, continuando com uma voz mais baixa e sinistra:

— Eu estava finalmente a desfrutar de uma vida minimamente normal quando tu chegaste para estragar tudo. Tu viraste o meu mundo de pernas para o ar! Era óbvio que os titãs pretendiam servir-se de ti para escapar dos cristais e eu sabia que a atitude mais segura seria denunciar-te antes que pudesses causar-nos problemas… mas não consegui. E até me congratulei pela minha maldita fraqueza quando percebi que eras completamente inocente. Tu não sabias nada sobre os titãs ou sobre a Titanomaquia, não sabias sequer o que eras… e eu presumi que, se nunca descobrisses, nunca terias motivos para socorreres os teus irmãos.

— Leiftan… — tentei interromper de novo, sem sucesso.

— Infelizmente, como de costume, nada correu como eu gostaria. Não só a tua casca humana começou a cair, como a Sirsha conseguiu falar contigo em sonhos. Era só uma questão de tempo até a verdade vir ao de cima, mas a forma como enfrentaste o Ashkore na primeira noite da nossa viagem deu-me uma nova esperança; a esperança de que escolherias ficar do lado dos faeries, mesmo depois de descobrires a verdade. Como eu fiz… — Leiftan baixou timidamente o olhar — Pensei que… pensei que talvez fosses a pessoa que finalmente ficaria do meu lado. A pessoa que me entenderia. A pessoa com quem poderia falar, desabafar e ser eu mesmo. Mas, de novo, as coisas não correram como eu gostaria… e tu decidiste trair-nos…

— Tu traíste-me primeiro! — acusei — Tu querias matar-me!

— Oh, por favor, Eduarda! Depois do que acabei de te contar, acreditas mesmo que te queria matar?!

— Eu ouvi-te dizer ao Nevra…!

— Eu menti! Menti como sempre fiz! Ter-lhe-ia dito o que fosse preciso para o impedir de descobrir que te estava a ajudar! O Nevra não é parvo, Eduarda! Se ele tivesse a mínima suspeita de que eu estava do teu lado, do lado de uma maldita titânide, ele não hesitaria em denunciar-me aos Sacerdotes, acusando-me de ser um adepto dos titãs!

— Também vais dizer que estavas a mentir quando disseste que eu era uma ameaça que merecia morrer? — inquiri, levantando uma sobrancelha duvidosa.

— Eu libertei-te da promessa, não libertei? De que mais provas precisas?! — volveu o investigador, arreliado. Esfregou o queixo e o lábio inferior com uma mão exasperada antes de acrescentar — Se queres que seja completamente honesto, depois da tua fuga com o Ashkore, eu realmente tentei dizer a mim mesmo que não eras diferente dos outros titãs e que não merecias uma segunda oportunidade. Tentei convencer-me de que seria melhor deixar-te morrer, mas, como pudeste ver… não fui muito convincente.

— Também não estás a ser muito convincente agora. Eu posso perceber que estavas com medo que os outros descobrissem o teu segredo e que tivesses de contar umas quantas mentiras para manteres o teu papel de nobre defensor dos faeries, mas isso não justifica nenhuma das mentiras que me contaste. Nem justifica a tua decisão de meter o quartel general de Ryss atrás de mim!

— O que querias que fizesse? A Ihlini avisou-me que o Ashkore te estava a meter macaquinhos na cabeça e, logo de seguida, tu usaste a camuflagem e desapareceste sem deixar rasto. Eu presumi que ele te tinha convencido a libertar a Ihlini e decidi que tinha de fazer o que fosse preciso para te impedir!

— Eu só aceitei libertar a Ihlini depois de ouvir a tua conversa com o Nevra!

— E como é que eu ia adivinhar?! Se estavas a ouvir a nossa conversa e ela te deixou tão revoltada, porque não te revelaste?! Podias ter-me batido, arranhado, esmurrado, esfaqueado, o que fosse preciso para te sentires melhor! Eu terei aceitado tudo! Tudo, menos soltar a Ihlini!

Eu desviei o olhar, trincando o lábio com força.

— Isso teria realmente sido mais simples… mas a vossa conversa não foi a única razão por que aceitei ajudar o Ashkore. Eu estava prestes a transformar-me, Leiftan, no meio de uma cidade cheia de faeries… e o Ashkore não só prometeu proteger-me, como me prometeu um regresso a casa. Eu não podia desperdiçar a oportunidade…

— Eu também te teria protegido…

— Ah, sim? Como? Tinhas algum plano engenhoso para esconder uma titânide de cinco metros de altura no meio de uma cidade faery? Mesmo que tivesses, atrever-te-ias a coloca-lo em prática? Provavelmente não. Isso colocaria a tua pacata rotina em risco, não é? Sacrificar-me era mais seguro e conveniente! Só terias de contar mais umas quantas mentiras para poderes lavar as tuas mãos do assunto e ficar simplesmente a ver-me ser encarcerada num cristal ou executada em praça pública. Nada muito diferente do que tentaste fazer em Ryss, portanto…

— Tu não tens qualquer direito de me condenar por isso, Eduarda. Ou tenho de relembrar que também achaste conveniente colocar este mundo em perigo por uma oportunidade para regressares a casa?

Abri a boca para contestar, mas não me saiu nada. Ele não estava errado, pois não? Eu nunca parara para pensar nisso, mas a única razão por que não houvera um massacre em Ryss, como acontecera em Eel, era porque Ihlini estava do lado dos faeries. Se ela estivesse do lado de Ashkore, ou se fosse outro titã qualquer… Eldarya poderia estar destruída por aquela altura.

— Ouve, Eduarda — chamou Leiftan num tom conciliador — Lamento muito por tudo o que aconteceu, mas o que está feito, está feito. Não podemos mudar o passado. Vamos simplesmente dar-nos por felizes por estarmos vivos e seguir em frente, pode ser?

Eu não consegui evitar um risinho escarninho.

— Para ti, é fácil dizer isso, não é? Não é sobre os teus ombros que pesam a morte de centenas, talvez milhares de pessoa…

— Se essas mortes realmente pesam nos teus ombros, compensa-nos salvando centenas ou milhares de pessoas na próxima batalha.

— Compensar? — repeti com um novo risinho e os olhos cheios de lágrimas — Não dá para compensar vidas que se perderam, Leiftan. E mesmo que desse… olha bem para mim! Não vês que não passo de uma miúda completamente comum? Não vês que não sou a criatura omnipotente que vocês parecem pensar que sou? Olha para mim! Eu não sei lutar! Não sei usar os poderes que vocês tanto temem! Nem os meus próprios pulsos e tornozelos consigo curar! E vocês estão à espera que salve vidas na próxima batalha? Leiftan… é mais provável eu tornar-me um estorvo do que um trunfo. Eu… eu sou completamente inútil…

A minha voz falhou quando perdi a luta contra as lágrimas e deixei a minha cabeça pender para o peito. Não tinha mais força para a manter erguida. Os pensamentos e sentimentos que me tinham trazido até ali estavam novamente a puxar-me para baixo. E eu estava cansada… tão cansada de tudo…

Senti um toque quente no meu queixo, puxando-o suavemente para cima, até os meus olhos se cruzarem com os de Leiftan. Ficámos assim durante vários minutos, calados e imóveis, enquanto os olhos do investigador escrutinavam o meu rosto banhado em lágrimas.

— Não é uma miúda comum que vejo quando olho para ti, Eduarda — ele murmurou finalmente, numa voz baixa e rouca — Pelo contrário. Vejo… uma mulher única, incomparável e insubstituível. Uma mulher que tem dentro de si a força, a ousadia e a convicção necessárias para fazer o que quiser, embora ela se tenha esquecido disso.

— A única convicção que tenho é que essa mulher não sou eu — resmunguei.

— Claro que és — Leiftan abriu um pequeno sorriso, inclinando a cabeça para o lado — Não te lembraste da carga de trabalho que deste a toda a gente quando chegaste a Eldarya? Fugiste da prisão, cuspiste na cara do Ezarel, invadiste o escritório da Miiko com o Lee para saber como se abria um portal… A Miiko também me disse que desconfiava que tu e o Nevra tinham burlado o resultado do teste das Guardas. É verdade?

— Ah… hum, bem…

— E é verdade que meteste a mão dentro das calças do Nevra no meio da cidade?

— Co… como é que sabes disso?! — admirei-me.

O sorriso de Leiftan alargou-se.

— Vocês estavam na frente da boutique da Purriry, ela viu e ouviu tudo. Ela até fez o Nevra comprar uma data de roupa interior quando ele foi encomendar as roupas iguais que tu e a Lithiel usaram durante a nossa viagem!

Eu limitei-me a olhar para Leiftan até um pequeno sorriso incontrolável se desenhar nos meus lábios.

— A sério? Ela fez mesmo isso?

Leiftan assentiu e eu soltei um risinho divertido. Ainda me estava a rir quando ele deslizou uma das mãos pelo meu rosto, limpando o rasto das minhas lágrimas.

— Pronto. Assim está melhor…

— Leiftan!

Eu e o investigador saltámos de susto, virando rapidamente a cabeça para a porta do estábulo, onde um Nevra com cara de poucos amigos nos observava por entre as pestanas negras. Leiftan afastou-se rapidamente de mim, recuando alguns passos.

— Nevra… O que estás a fazer aqui?

— Vim à tua procura para te relembrar que a Ykhar está à tua espera! — disse o vampiro num tom incisivo.

— Ah, sim, claro — Leiftan encaminhou-se rapidamente para o pegasus — Desculpa, distrai-me a conversa com a Eduarda.

— Pois, estou a ver… A propósito, Eduarda, o que estás a fazer aqui? Não devias estar com o Lee?

— Ah… Sim, mas… decidi vir apanhar ar.

— Num estábulo? — inquiriu Nevra, levantando uma sobrancelha desconfiada.

— Não, claro que não, eu estava só de passagem, mas vi o Leiftan e decidi vir falar com ele.

— Hum…

— Tudo pronto. Podemos ir — anunciou o investigador, voltando a aproximar-se, desta vez com o cavalo com asas atrás de si. Enquanto Nevra saia da frente da porta para lhe dar passagem, Leiftan dirigiu-me um pequeno sorriso — Espero ver-te em Nuum em breve, Eduarda. Cuidar-te…

Eu acenei e murmurei um fraco “boa viagem” enquanto o via atravessar a porta, acometida por uma repentina pontada de tristeza. Era uma pena que Leiftan estivesse prestes a partir. A nossa conversa, apesar de atribulada, fizera-me sentir muito melhor. Durante algum tempo, sentira que era novamente eu mesma…

Devolvi rapidamente minha atenção a Nevra quando notei que ele fez qualquer gesto no sentido de seguir Leiftan. Em vez disso, estava parado ao lado da porta, com os braços firmemente cruzados e o sobrolho levemente franzido.

— Sobre o que estavam tu e o Leiftan a falar? — perguntou com uma voz suave que não condizia com a expressão no seu rosto. Ele parecia… zangado.

Ah… Talvez ele nos tivesse ouvido falar da sua roupa interior?

— N-nada de especial. Estávamos só a… esclarecer uns mal-entendidos — respondi vagamente.

O sobrolho de Nevra franziu-se ainda mais.

Espera, pensando bem, o Mestre da Sombra não era o tipo de pessoa que se irritaria com uma mera conversa sobre roupa interior, pois não? E a expressão na sua cara…

— Estou a ver — murmurou o vampiro num tom lento e suspeitoso. Pensei que ele iria continuar a questionar-me sobre a conversa com Leiftan, mas, aparentemente, achou melhor mudar de assunto — Disseste que vieste até aqui para apanhar ar?

— Sim…

— Porquê? Aconteceu alguma coisa?

— N-não. Não aconteceu nada.

— És péssima a mentir, sabes disso, não sabes?

— Não estou a mentir. Não aconteceu nada. Eu só… precisava de ficar um pouco sozinha.

— Sozinha com o Leiftan?

— Não, não, ele apareceu depois — expliquei rapidamente.

— Hum… E não aconteceu mesmo nada? Ninguém te incomodou no caminho até aqui?

— Não, eu vim camuflada.

— Já te consegues camuflar? Isso é ótimo. Não precisas de mim para te acompanhar de volta à estalagem, então — concluiu o vampiro, descruzando os braços e encaminhando-se para a porta — Não te demores muito por aqui ou vais perder a hora de almoço — acrescentou em jeito de despedida.

Finalmente sozinha, franzi levemente o sobrolho enquanto tentava entender o que acabara de acontecer. Era impressão minha… ou Nevra fora francamente frio comigo? Eu fizera ou dissera alguma coisa para o irritar? Não, não podia ser isso, nós estávamos perfeitamente bem naquela manhã e não nos tínhamos encontrado depois disso… Será que era eu que estava mal-habituada? O carinho e cuidado que o vampiro me mostrara nos últimos dias tinham-me feito esquecer quão sério, eficiente e até severo ele era enquanto desempenhava as suas funções de Mestre da Sombra? Talvez ele estivesse stressado com o trabalho e irritado com a demora de Leift…

A verdade atingiu-me como uma pedra na cabeça e eu esbugalhei tanto os olhos que, por um milésimo de segundo, acreditei que me iam saltar das órbitas.

Não, a mudança de humor de Nevra não estava relacionada com o trabalho. Céus, como não notara antes? Era tão óbvio! Não era sequer a primeira vez que o vampiro se comportava daquela forma, eu já vira aquilo antes, aquela expressão na sua cara, durante a viagem até Ryss!

Nevra estava com ciúmes de Leiftan!


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