Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 67
LXV




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Eu deixei-me cair no cadeirão no canto do quarto, sentindo o chão oscilar como um navio em alto mar. Ouvira bem? Lithiel dissera mesmo que… tinham tentado arrancar o coração de Lee? Como… era isso possível? Porquê…? Quem…?

— Isto não vai ser fácil de curar… Vamos ter a amarrar e amordaçar — murmurou Nevra para Lithiel. As suas palavras despertaram-me do choque, mas também duplicaram a minha apreensão — Vê se encontras algo naquele armário que possamos usar.

Lithiel assentir e encaminhou-se para o dito armário. O seu afastamento permitiu-me finalmente ter uma visão desimpedida do corpo de Lee, mas, depois do que ouvira, não tinha a certeza se queria ver o que se passava no peito da ninfa. Preferi continuar concentrada na doppelganger. Pelo bem da minha escassa sanidade mental…

Lithiel tirou uma fronha lavada do armário e atulhou a boca de Lee com ela. A ninfa levantou a mão como se pretendesse tirar o tecido entre os seus dentes, mas Lithiel impediu-a, prendendo os seus dois pulsos contra a almofada. Entretanto, Nevra trepou para cima da cama e sentou-se sobre as coxas de Lee, atravessando os pés sobre os joelhos dela.

— Pronta? — perguntou ele à doppelganger.

Lithiel acenou e o vampiro inspirou profundamente antes de se inclinar para enterrar o rosto no esterno de Lee. Não dava para ver o que ele estava a fazer, mas talvez fosse melhor assim…

Lee gemeu e agitou-se com o primeiro toque de Nevra, mas não se debateu de uma forma que justificasse a decisão do vampiro de manietá-la. Aquilo não parecia ser assim tão…

Antes de poder concluir o meu pensamento, Lee levantou a cabeça da almofada e soltou um berro que, mesmo abafado pela fronha, gelou o sangue nas minhas veias. A ninfa lutou para se libertar com tanta violência que quase atirou o vampiro de cima dela. Nevra conseguiu recuperar o equilíbrio, mas teve de abraçar as costelas de Lee contra a boca para não voltar a perder o contacto com a ferida. Lithiel teve de usar todo o peso do seu corpo para manter os pulsos da ninfa presos, mas, mesmo assim, Lee contorcia-se e sacudia-se em todas as direções. A fronha impedia que os seus gritos se propagassem pelo ar, mas ainda eram audíveis e horripilantes o suficiente para me provocar pesadelos para o resto da vida. As veias no seu pescoço destacaram-se contra a pele delicada e lágrimas cristalinas sugiram nos cantos dos olhos cerrados com força. Parecia que ela estava a ser torturada em vez de curada…

Incapaz de assistir ao sofrimento de Lee, fechei os olhos e tapei os ouvidos. Aquilo também era culpa minha… Lee estava naquele estado e a passar por aquele suplício porque eu a deixara sozinha durante a minha ida à Terra. Eu sabia do ódio mortal que Ashkore nutria pela ninfa, afinal, ele só a poupara porque eu lhe pedira… Devia ter calculado que ele não a deixaria em paz quando eu já não estivesse lá para a proteger. Era tudo culpa minha…

Não sei quanto tempo durou o tratamento. Estava demasiado concentrada na minha autoacusação para poder contar os minutos. Só abri os olhos e levantei a cabeça quando me apercebi de que o quarto estava novamente em silêncio.

Nevra permanecia sentado sobre Lee, com o rosto virado para o lado oposto ao meu, e os movimentos das suas mãos davam a entender que estava a limpar apressadamente a boca e o queixo. Entretanto, Lithiel soltara os pulsos de Lee e estava a examinar o peito da ninfa.

— Caramba… Podias deixar o Ezarel e a Eweleïn sem trabalho com esses poderes curativos — comentou a doppelganger.

— Não acho que os pacientes apreciariam o meu método — murmurou Nevra com voz enrouquecida.

Lithiel fez uma pequena careta.

— Pois, é provável…

— Vamos deixar o Ezarel tratar-lhe do braço — atalhou Nevra, saindo lentamente de cima da ninfa — Ele poderá cuidar desse corte sem qualquer risco de descobrir a identidade da Lee e…

— Como é que sabes que ela tem um corte no braço? — interrompeu Lithiel, incrédula.

— O corte abriu-se enquanto ela se debatia — explicou o vampiro — Sinto-lhe o cheiro…

A doppelganger verificou rapidamente o braço ferido da ninfa e soltou um palavrão ao ver o sangue fresco que manchava as ligaduras.

— As suturas devem ter rebentado — constatou ela.

— Vamos deixar o Ezarel tratar disso — repetiu Nevra — Será melhor para ela se for ele. Já a torturei o suficiente para um dia…

Lithiel acenou uma fraca concordância, distraída a examinar a ninfa. Nevra virou timidamente o rosto na minha direção, mas, quando os nossos olhos se encontraram, apressou-se a desviar o olhar para o chão.

— Bem… eu vou chamar o Ezarel. Volto já…

— Espera — pediu Lithiel, antes que o vampiro pudesse sequer dar um passo — Precisamos de discutir algo antes.

— O quê?

— O interrogatório da Miiko. Vai ser impossível não mencionar o Lee no meu relato e, se estiver sob o efeito do elixir da verdade… não vou conseguir mentir sobre o facto de ele ser uma mulher. Eu não tenho muitas razões para o proteger, na verdade, mas entendo as razões que o levam a mentir e não acho justo revelar o segredo dele desta forma.

Nevra piscou o seu único olho várias vezes antes de soltar um pequeno suspiro, passando uma mão pelos cabelos.

— Vocês só me dão trabalho — resmoneou baixinho — Eu posso dar um jeito no elixir, mas vou interrogar-te com ele mais tarde — avisou, apontando um dedo intimidador a Lithiel.

— Tudo bem.

— Não saiam daqui — acrescentou antes de sair do quarto.

O silêncio instalou-se depois de Nevra fechar a porta atrás de si e eu lancei um olhar inquieto a Lithiel.

— Como estás? — inquiri num murmúrio — Não estás… ferida?

— Não, estou bem. Estarei como nova depois de tomar um banho e comer qualquer coisa — disse a rapariga, sentando-se na borda da cama de Lee — E tu? Como foi a desintoxicação? Já clareaste as ideias?

Fixei os meus próprios pés, hesitando na resposta.

— Eu não me lembro de muita coisa da desintoxicação e, de resto… eu não sei o que pensar…

— Não há nada para pensar. O teu irmão manipulou-te e tu caíste que nem um patinho idiota na armadilha dele. Simples.

— Uau, obrigada, Lithiel, sinto-me muito melhor — respondi com sarcasmo.

A doppelganger fez um meio sorriso, mas rapidamente voltou a adotar uma expressão séria.

— O que é que te aconteceu depois de voltarmos da Terra? Eu ouvi dizer que estavas na enfermaria da colónia…

— Ah… Sim, estava…

— Porquê? O que é que o Ashkore te fez?

Senti-me corar levemente ao recordar o que acontecera no quarto do titã e levei instintivamente a mão ao pescoço.

— Foi… um pequeno acidente…

— Ele magoou-te?

— Não, quero dizer… n-não foi de propósito, ele só…

— Sugou o teu sangue até te deixar exangue? — completou Lithiel.

Eu lancei-lhe um olhar surpreendido.

— Como… como é que sabes?

Lithiel fez um sorriso desdenhoso.

— Porque ele fez-me o mesmo.

— O quê…?

A porta do quarto abriu de rompante, interrompendo a nossa conversa. Ezarel foi o primeiro a entrar, dirigindo-se de imediato para a paciente na cama e empurrando Lithiel para o lado com tanta brusquidão que quase a atirou ao chão. Nevra, Miiko, Leiftan e Huang Hua entraram atrás dele.

— Já vais responder às nossas perguntas? — perguntou a Sacerdotisa a Lithiel, interrompendo o olhar irritado que esta última lançava ao elfo que a empurrara. A doppelganger soltou um suspiro enfastiado.

— Sim, Miiko, vou responder às vossas malditas perguntas. Satisfeita? Onde está o elixir?

Nevra estendeu-lhe um frasco de vidro e Lithiel foi buscá-lo. No processo, os dois trocaram um breve e discreto olhar que, aparentemente, foi o suficiente para responder às preocupações de Lithiel. Ela emborcou o conteúdo do recipiente sem hesitar e foi sentar-se aos pés da cama de Lee, longe da azáfama de Ezarel. Depois, fez um sinal a Miiko para iniciar o interrogatório.

— Foste vista em Eel pela última vez a sair da cidade na companhia do Nevra e do Lee — relembrou a Sacerdotisa — O que aconteceu depois disso?

Lithiel dirigiu mais um olhar a Nevra, que fez um discreto aceno afirmativo.

— Acompanhei a Eduarda até ao covil do titã — admitiu a doppelganger — Ela apareceu de repente à porta do meu quarto e pediu-me ajuda para encontrar o Lee. Eu aceitei com a condição de ir com eles até ao titã.

Miiko olhou-me por breves instantes antes de voltar a concentrar-se em Lithiel.

— O Nevra contou-nos que a Eduarda estava à procura do Lee porque ele via os seres elementais. Descobriram porquê?

— Se eles descobriram, não me contaram.

Miiko voltou a fixar-me, lançando-me um olhar interrogativo desta vez.

— Não… não descobrimos — menti, tentando ser o mais convincente possível. A Sacerdotisa não pareceu muito convencida, mas voltou a interrogar Lithiel:

— E depois? O que aconteceu no esconderijo do titã?

Lithiel encolheu os ombros.

— Fui trancada nas masmorras. O titã fez-me uma visita poucos dias depois para me interrogar e aproveitou para me contar a verdade sobre a Titanomaquia, mas, depois disso, a Eduarda era a minha única companhia. Só fui autorizada a sair no dia da partida para a Terra.

— Isso quer dizer que acompanhaste a Eduarda na busca pelos titãs na Terra?

— Sim. Ainda antes disso, ajudei a Eduarda com os seus planos para estabelecer um acordo de paz entre os faeries e os titãs. A ideia era, em vez de procurarmos os titãs na Terra, abrirmos um novo portal de lá para Eel para podermos apresentar-te as nossas propostas. Infelizmente, o titã foi mais esperto. Deu uma poção do amor à Eduarda e ela esqueceu todos os nossos planos para cumprir os desígnios dele.

— Quantos titãs trouxeram da Terra para Eldarya?

— Só um.

— Foi o único que encontraram? Não sabem onde estão os outros?

— Não, não sabemos.

Miiko hesitou, parecendo perdida nos seus pensamentos, mas rapidamente recuperou a compostura.

— E como conseguiste fugir do covil do titã?

— Longa história. Tudo começou com o nosso regresso a Eldarya. Enquanto a Eduarda se ia alegremente deitar na cama do titã, eu fui novamente trancada nas masmorras. Mais tarde, nesse mesmo dia, o titã veio ver-me. Ou, melhor dizendo… veio sugar o meu sangue.

— Ele… o quê? — admirou-se a mulher-raposa.

— Ele sugou o meu sangue — repetiu a doppelganger — Nem o reconheci no início, sem a máscara e sem a armadura. Parecia meio ébrio, mas… — fez uma pequena careta — Não me agrada admiti-lo, mas ele dominou-me sem suar uma gota de esforço. Prendeu-me pelos pulsos e mordeu-me no pescoço. Pensei que ia matar-me, mas ele parou quando estava prestes a perder a consciência. Não me disse nada depois disso, limitou-se a limpar a boca e ir embora. Eu fiquei lá deitada, sem me conseguir mexer.

— Porque… porque é que ele fez isso? — perguntou Miiko, chocada.

— Descobri no dia seguinte. O titã veio novamente à minha cela, mas, desta vez, vinha acompanhado por uma mulher. Ela estava a dizer que não tinha a certeza de querer fazer aquilo, mas o titã insistiu que ela precisava de recuperar as forças e que aquele era o método mais rápido. Pelo que pude deduzir da conversa deles… o titã mordeu-me para, através do sangue, sugar a Maana de Úrano e Gaia que o meu corpo absorveu durante a viagem na Terra.

Os faeries retesaram-se ao assimilar as palavras de Lithiel, incluindo Ezarel, que ficou com a agulha com que suturava Lee suspensa no ar.

— O titã consumiu a Maana de Úrano e Gaia? — inquiriu Huang Hua num murmúrio pasmado.

— Sim. E a Maana no meu corpo não foi a única que ele sugou — Lithiel lançou-me um olhar penetrante, fazendo-me engolir em seco — Ele também bebeu o teu sangue, não foi, Eduarda?

— S-sim — admiti hesitantemente —, mas… ele… o Ashkore disse-me que simplesmente gosta de beber sangue quando se envolve fisicamente…

— Ah, não tenho dúvidas nenhumas disso — disse Lithiel num tom mordaz — Sangue condimentado com endorfinas e Maana de Úrano e Gaia deve ser um lanchinho bastante saboroso e nutritivo para um titã.

— O Ashkore… não faria isso… — murmurei num tom trémulo e nada convincente.

— A mulher que acompanhava o titã — disse subitamente Leiftan, atraindo todos os olhares — Ela também bebeu o teu sangue?

— Ah, sim — confirmou a doppelganger — Ela tirou o pouco de Maana que me restava.

— Como é que ela era? — insistiu o investigador.

Lithiel fez uma expressão pensativa.

— Não me lembro bem, a minha visão não estava muito apurada naquele momento e não a voltei a ver depois disso… mas sei que ela se chamava Ihlini.

Procurei instintivamente o olhar de Leiftan e ele fez o mesmo. Porém, no momento em que os nossos olhares se cruzaram, ele desviou rapidamente o seu e devolveu-o a Lithiel.

— O que aconteceu depois? — perguntou.

— Bem, como eu estava a dizer, a mulher tirou o pouco de Maana que me restava no corpo e quase morri por causa disso. Fiquei inconsciente durante uns dois dias e, quando acordei, estava no que parecia ser um quarto da enfermaria. Uma única curandeira tratava de mim, mas o comportamento dela era… suspeito. Ela agia como se estivesse a esconder algo e eu não tardei a arrancar-lhe a verdade: ela estava a tratar de mim em segredo a pedido da tal Ihlini. O Ashkore pretendera deixar-me morrer depois de a Ihlini consumir a Maana no meu corpo, mas ela sentira-se culpada pelo que me tinha feito e pediu à curandeira para me salvar. Levaram-me para a enfermaria com a desculpa de preparar o meu corpo para os rituais fúnebres e, daí, levaram-me para o quarto da curandeira. A Ihlini fez um feitiço para que o titã não pudesse sentir a minha presença entre aquelas quatro paredes e eu não tive outra opção senão ficar dentro do quarto. Se saísse, ele saberia que eu estava viva e matar-me-ia de uma vez por todas.

— Como conseguiste fugir, então? — perguntou Miiko.

Lithiel fez um sorriso satisfeito e meio maldoso.

— A curandeira disse-me que o titã estava a preparar-se para partir “em busca de justiça”. Só tive de ser paciente e esperar pelo dito dia. Neutralizei a curandeira, adotei a aparência dela e fui buscar o Lee antes de roubar um dos shau’kobows da colónia — apontou para a ninfa inconsciente com o polegar — A propósito, ele já estava assim quando o encontrei, não sei o que lhe aconteceu.

Ninguém se moveu ou pronunciou durante vários instantes. Um silêncio denso e inquieto instalou-se no quarto enquanto todos processavam as revelações de Lithiel. Foi Miiko quem o quebrou para murmurar mais uma questão:

— És uma espiã do titã?

— O quê…? Não — respondeu Lithiel, confusa.

— És uma espiã da titânide que te salvou, então?

— Não! Porque é que achas que sou uma espiã?!

— Tu sempre estiveste do lado dos titãs — acusou Miiko, lançando um olhar ameaçador à doppelganger — Foste tu, aliás, quem pediu para ser levada à presença do titã. É difícil acreditar que mudaste de ideias tão depressa — fez um sorriso escarninho — Por outro lado, virar a casaca é uma especialidade da tua espécie, não é?

O olhar de Lithiel escureceu perigosamente.

— É verdade que eu teria adorado soltar um titã bem na tua cara… e tenho muita pena que o Ashkore não te tenha dado de comer aos sluagh em Eel… mas não vou deixar as poucas pessoas que amo desamparadas só porque elas escolheram ficar do lado de um monte de bosta como tu. Não é por ti que estou aqui, Miiko, e, definitivamente, não será por ti que irei lutar.

O sorrisinho de Miiko alargou-se.

— Ah… estás aqui por ela…

— Preocupa-te com os titãs, Miiko — cortou Lithiel, quase sobrepondo a sua voz à da mulher-raposa — Eles são o teu maior problema no momento.

O sorriso da Sacerdotisa feneceu lentamente.

— De facto… Nós não só estarmos a enfrentar quatro titãs em simultâneo, como dois deles assimilaram recentemente Maana de Úrano e Gaia, além da titânide que absorveu a Maana do cristal azul. Como vamos derrotá-los…?

— Vamos encontrar uma maneira — disse Huang Hua, confiante — Não podemos perder a esperança…

— Não posso perder o que nunca tive — disse Miiko num tom lúgubre. Huang Hua abriu a boca para replicar, mas a Sacerdotisa elevou a voz para a interromper — Os titãs estavam separados durante a primeira Titanomaquia e, mesmo assim, exterminaram metade do nosso povo. Como podemos derrotá-los com eles a atacar em conjunto? Mesmo que a Eduarda concorde em lutar ao nosso lado, o que poderá ela sozinha fazer contra três titãs mais fortes e experientes do que ela? A miúda está tão seca de Maana que até eu a derrotaria num duelo! — concluiu Miiko, indicando-me com um gesto desdenhoso.

— Eu e o Adonis podíamos reverter isso facilmente — disse Nevra num tom seco e áspero —, mas tu proibiste-nos de aproximar da Eduarda…

— Ela ainda não nos deu uma resposta — recordou Miiko num tom ácido.

— Mesmo que a Eduarda não queira lutar por nós, tu não a podes manter prisioneira…!

— Nós não vamos ter esta discussão de novo, Nevra!

— A Eduarda já disse que não nos fará mal…!

— Silêncio, vocês dois! — ordenou Ezarel, sobrepondo a sua voz às de Miiko e de Nevra. Ele tinha uma mão sobre a testa de Lee, que se sacudia levemente — Preciso de calma e concentração para reconstruir o nariz deste infeliz! Se vão discutir, façam-no lá fora!

— E quanto tempo demorará até esse elfo acordar? — inquiriu Miiko num tom brusco, apontando para Lee — Quero fazer-lhe umas perguntas também.

— Miiko, eu acabei de fechar um buraco do tamanho do meu punho no peito do Lee e o Ezarel está prestes a reconstruir-lhe o nariz — disse Nevra — Será demasiado pedir um pouco de compaixão? Além disso, o que irá o relato do Lee acrescentar ao que nós já sabemos? Achas que ele recolheu alguma informação relevante enquanto estava a ser torturado até ao limiar da morte? Por favor, Miiko… Deixa-o recuperar em paz, pode ser?

As caudas de Miiko ondularam perigosamente nas suas costas, mas Huang Hua poisou uma mão no seu ombro antes que a Sacerdotisa pudesse abrir a boca.

— Vamos fazer como o Mestre Nevra disse. Nós poderemos falar com o elfo mais tarde. Por enquanto, vamos refletir nas informações preciosas que a Lithiel nos forneceu e ponderar o nosso próximo passo.

Miiko hesitou, mas acabou por concordar com um aceno hirto.

— Muito bem, assim seja… Quero, porém, aproveitar a ocasião para esclarecer uma outra questão — a mulher-raposa virou-se na minha direção com o sobrolho franzido — Já tens uma resposta definitiva para me dar, Eduarda?

Antes que eu pudesse sequer abrir a boca, Nevra colocou-se na minha frente, como se me estivesse a escudar de Miiko.

— A Eduarda dar-te-á uma resposta definitiva ao cair da noite — anunciou ele — O dia extra que lhe deste para pensar ainda não terminou, tanto quanto sei…

Miiko cerrou os dentes, mas não disse mais nada. Limitou-se a sair do quarto, com Leiftan e Huang Hua atrás dela. Nevra permaneceu na minha frente e espreitou-me timidamente por cima do ombro.

— Estás bem?

Eu acenei afirmativamente, confundida pela pergunta. O vampiro hesitou, parecendo querer dizer mais qualquer coisa, mas desistiu e recambiou a sua atenção para Ezarel, que estava a limpar cuidadosamente o que antes fora o nariz de Lee.

— Precisas de ajuda, Ez? — inquiriu o vampiro.

— Não, deixa estar. Isto não é um problema em que possas simplesmente cuspir…

— Bela escolha de palavras, Ezarel — disse Lithiel num tom sarcástico.

— Ah, mas podes tirá-la daqui — acrescentou o elfo, apontando para a doppelganger — O cheiro dela está a dar-me a volta ao estômago…

— É melhor susteres a respiração, então, porque eu não pretendo deixar-te sozinho com o Lee — anunciou a rapariga.

— Francamente, Lithiel, qual é o teu problema? — perguntou Ezarel, irritado — Estás com ciúmes de eu estar a tocar no teu namorado?

— Lithiel — chamou Nevra, impedindo-a de responder ao elfo — Sei que estás preocupada com o Lee, mas não precisas de ser tão protetora. Ele já está fora de perigo… E, desculpa dizer-te, mas o Ezarel tem razão, precisas mesmo de um banho. Aliás, Eduarda, gostarias de tomar banho também? — acrescentou o vampiro, olhando-me por cima do ombro.

Eu assenti levemente com a cabeça.

— A estalagem tem uma sala de banhos pública — anunciou Nevra — Venham, eu mostro-vos onde é.

O Mestre da Sombra encaminhou-se para a porta e eu e Lithiel não tivemos outra escolha senão segui-lo. Descemos as escadas e, a partir do que parecia ser uma pequena receção, percorremos um curto corredor que terminava em duas portas: uma levava ao vestiário feminino e a outra, ao masculino.

Enquanto Nevra ia à procura de uma muda de roupa para nós, eu e Lithiel entrámos no vestiário. Felizmente, tanto este quanto a sala de banhos estavam vazios, poupando-me dos olhares pouco amistosos que os faeries com certeza me lançariam. Não tinha a mínima vontade de enfrentar o mundo naquele momento. Não estava pronta…

— Eu passei por Eel a caminho daqui — disse subitamente Lithiel, arrancando-me dos meus pensamentos. Olhei para ela, no chuveiro ao lado do meu, ensaboando os cabelos — Parece ter sido uma luta feia… Como é que aquilo aconteceu?

Soltei um pequeno suspiro trémulo.

— Não… quero falar sobre isso…

— Bem, mas eu quero. Não esperava mesmo encontrar-te aqui. Não esperava sequer que estivesses viva. Quando a curandeira me disse que tinhas partido com o Ashkore para o ataque a Eel, presumi que a promessa que assinaste com o Leiftan te mataria antes de teres tempo de fazer algum estrago. A promessa não foi quebrada quando decidiste ajudar o teu irmão a destruir a cidade?

— Eu não… escolhi, conscientemente… destruir a cidade — murmurei com a cabeça baixa — Eu não participei na luta, eu só… desativei um dos círculos que impediam o meu irmão de entrar.

— E a promessa não foi quebrada nessa altura? — insistiu Lithiel.

— Foi…

— Como é que sobreviveste, então?

— O Leiftan apareceu e libertou-me.

— A sério? — admirou-se a doppelganger, erguendo as sobrancelhas – Nunca pensei que ele fosse fazer isso…

— Ele não parecia querer, mas… acho que o Nevra o convenceu…

— Estou a ver… E, pelo que entendi da conversa da Miiko com o Nevra, ela está a tentar recrutar-te para o exército faery?

Confirmei com um aceno.

— Isso com certeza não foi ideia da Miiko. Ela não costuma dar segundas oportunidades — comentou Lithiel em voz baixa antes de me lançar um olhar curioso — E então? Vais aceitar a proposta dela?

Eu soltei um novo suspiro, fixei o olhar nos meus próprios pés e não respondi. Não sabia o que dizer… Não sabia o que fazer… Não sabia o que pensar… Ou talvez até soubesse, simplesmente não queria admiti-lo…

Subitamente, senti-me como se o ar se tivesse tornado demasiado espesso para respirar. O meu peito não tardou a doer com a força que fazia para sorver o ar e, mesmo assim, não conseguia encher os pulmões. Eu… tinha de sair dali…

— Eduarda? Onde vais? — admirou-se Lithiel ao ver-me sair de baixo do chuveiro e enrolar apressadamente o corpo na toalha. Encaminhei-me para o vestiário e a doppelganger seguiu-me depois de uma breve hesitação.

Eu estava disposta a sair só de toalha e ir procurar ar fresco lá fora, mas estaquei quando me apercebi de que não estávamos mais sozinhas. Quando Lithiel me alcançou, também ela petrificou. A brownie ruiva com orelhas de coelho, Ykhar, estava diante da porta do vestiário, com um monte de roupa dobrada nas mãos. Ela mirava-me e a Lithiel com os olhos cinzentos cheios de lágrimas e uma expressão indecifrável no rosto. Eu tê-la-ia questionado sobre o que estava a fazer ali, mas a tensão que sentia emanar da rapariga ao meu lado impediu-me. Por alguma razão, sentia que não devia intervir…

Finalmente, Ykhar moveu-se. Com movimentos lentos e metódicos, foi deixar o monte de roupa num banquinho próximo da porta. Depois, virou-se na nossa direção… e atravessou a sala quase a correr para espetar uma bofetada em Lithiel. O golpe estalou como um chicote no meio do silêncio e fez a doppelganger cambalear para o lado até cair sentada sobre um banco próximo. Ykhar fulminou-a com os olhos cheios de lágrimas e os punhos cerrados a tremer.

— Isto… é culpa tua — gemeu ela — É tudo… culpa tua!

Lithiel não se moveu ou pronunciou, mantendo o rosto virado para o chão enquanto a sua pele adquiria uma palidez cadavérica. Eu estava tão surpreendida que nenhum som me saia da boca. Entretanto, Ykhar continuava a acusar a doppelganger:

— A Miiko avisou-me… Ela disse-me várias vezes que desconfiava de que eras uma adepta do titã, mas eu não quis acreditar. Mesmo quando dizias que os titãs eram os senhores de Eldarya, eu recusei-me a acreditar que pudesses estar do lado deles! Achei que não serias assim tão estúpida! Não tinha muitas razões para confiar nas tuas intenções, mas confiava na tua inteligência! E, afinal… afinal só estavas à espera de uma oportunidade para ires até eles! Foi por isso que te aproximaste e treinaste a Eduarda, não foi?! Querias que ela te levasse aos outros titãs! E quando ela o fez, não perdeste tempo em contar-lhes como entrar em Eel e soltar a titânide lá presa! Parabéns, Lithiel! Provaste a tua teoria! Sim, os titãs não foram exterminados na Titanomaquia! Sim, havia um titã aprisionado em Eel! Estás contente?! O titã por que tanto procuraste está finalmente livre para nos matar a todos! Então, porque estás aqui? Não devias estar com os teus “senhores” neste momento? Não devias estar em Eel a festejar a vossa vitória sobre os cadáveres dos meus amigos?!

Ykhar fez uma pequena pausa para recuperar o fôlego, mas Lithiel não aproveitou a ocasião para se defender. Ela parecia ter virado pedra, de tão dura e pálida que estava.

— Tu não me enganas mais, Lithiel — disse Ykhar, num tom mais calmo, mas frio como gelo — Eu conheço-te bem… Sei que só estás aqui para salvar este monstro e levá-lo de volta à “família”! — apontou um dedo à minha cara antes de poisar os olhos ardentes de ódio em mim — E tu… tu fizeste de nós parvos o tempo todo. Fizeste-nos crer que eras só uma faeliena inofensiva vinda da Terra enquanto tecias os teus planos para libertar os teus queridos irmãos! Eu não sei como é que o Nevra convenceu a Miiko a manter-te viva, não sei como é que ela acreditou que poderias lutar por nós… mas fica sabendo… — ela aproximou-se até quase roçar o seu nariz no meu, o dedo indicador ainda apontado à minha cara — Se magoares mais algum dos meus amigos… vou-te fazer arrepender amargamente do momento em que poisaste um pé em Eldarya!


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