Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 58
LVI




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Não havia uma maneira discreta ou delicada de fazer aquilo. Enviar uma mensagem à minha melhor amiga, que deveria ter passado os últimos meses a julgar-me raptada ou morta, iria instalar a confusão no momento em que ela visse o nome do remetente. Felizmente, os novos telemóveis mostravam uma prévia de cada mensagem recebida e eu poderia usá-la para impedir Andreia de contar a toda gente que eu dera sinal de vida. Foi com essa ideia em mente que comecei a mensagem com um “NÃO MOSTRES ESTA SMS A NINGUÉM!!”, seguida de um “Preciso da tua ajuda. É importante. Estás na faculdade?” Inspirando um fôlego de coragem e rezando para que Andreia não chamasse a polícia ao ver o meu nome, premi o botão de enviar.

— Que instrumento é esse? — perguntou Lithiel, apontando com o queixo para o telemóvel enquanto comia o que restava das minhas batatas fritas.

— É um aparelho que te permite comunicar à distância com outras pessoas. Podes enviar uma mensagem escrita ou… — o toque do telemóvel interrompeu-me enquanto o nome de Andreia surgia em grandes letras brancas no ecrã — …ou telefonar — concluí com um suspiro antes de encostar o dito cujo ao ouvido — Estou?

— Edu? — chamou a voz chorosa de Andreia do outro lado — Edu… és mesmo tu?

— Sou eu, sim…

— Edu — gemeu num tom que misturava alívio e angústia — Edu, como é que…? Como é que estás a telefonar-me do teu telemóvel?! Onde tens estado?! O que é que te aconteceu?! Tens noção do quanto estávamos preocupados?!

— Andreia, calma…

— Meu Deus, eu… eu não consigo parar de tremer! Onde é que estás? Em casa?

— Não, eu…

— O que querias dizer com aquela mensagem? Está tudo bem? Precisas da minha ajuda para quê? Ai, não me digas que te meteste em algum negócio perigoso!

— Não é nada do que estás a pensar…

— Não? Então?

— É… difícil explicar…

— Por favor, diz-me que estás bem e não tens nenhum mafioso atrás de ti — suplicou Andreia.

Eu não consegui evitar um sorriso divertido.

— Sim, estou bem, e não, não tenho nenhum mafioso atrás de mim.

— Ai, ainda bem — disse a minha melhor amiga com um longo suspiro de alívio.

— Estás na faculdade? — perguntei antes que ela começasse uma nova torrente de perguntas.

— Estou, sim, acabei de sair da aula… E tu? Onde estás?

— Estou no McDonald’s junto da estação de comboios. Podes vir até aqui?

— Vou apanhar um autocarro — aprontou-se a minha melhor amiga — Estou aí dentro de dez, vinte minutos.

— Okay…

Não saias daí! — exigiu ela, num tom ameaçador — Juro que te atropelo com o carro que o meu pai me ofereceu no Natal se meteres um pézinho que seja fora do restaurante!

Eu soltei mais um risinho.

— Combinado. Falamos melhor quando chegares, pode ser?

— Okay… Até já, Edu.

— Até já…

Terminei a chamada e recostei-me no banco com um suspiro extenuado. Lithiel dirigiu-me um olhar muito curioso.

— Consegues mesmo falar à distância com outras pessoas através desse instrumento?

— Sim…

— Isso é muito conveniente…

— É…

— Como é que funciona?

— É difícil explicar, o telemóvel é uma coisa complicada.

— Hum… E com quem estavas a falar?

— Com a minha melhor amiga, Andreia. Ela já está a caminho, deverá chegar dentro de dez ou vinte minutos.

— Porque é que a chamaste?

— Porque precisamos de um sítio para pernoitar enquanto estivermos na Terra e porque ela poderá ser uma ajuda para encont… — silenciei-me mesmo a tempo de me impedir de falar demais — Ela poderá ajudar-nos com a nossa missão.

— Estou a ver… E já sabes por onde começar a nossa missão?

— Não. Só conseguirei começar a pensar nesse assunto quando estiver escondida num lugar seguro.

Lithiel assentiu e a conversa abrandou. A doppelganger parecia querer colocar algumas questões sobre o que via em seu redor, mas eu não estava com o humor certo para lhe responder. O reencontro iminente com a minha melhor amiga estava a deixar-me numa pilha de nervos.

Andreia entrou no restaurante a correr, com os curtos cabelos castanhos em desalinho, as bochechas coradas e os olhos cor de avelã arregalados enquanto escrutinava ansiosamente o interior do estabelecimento. Quando os poisou em mim, comprimiu os lábios numa linha fina e aproximou-se com passos apressados. Levantei-me para a saudar e ela atirou os braços em redor do meu pescoço, soluçando no meu ombro.

— És mesmo tu — choramingou — És mesmo tu…

Eu dei-lhe umas palmadinhas desajeitadas nas costas, murmurando:

— Está tudo bem, está tudo bem…

— Não, não está! — negou ela, afastando-se, mas mantendo as mãos nos meus ombros — Por onde tens andado?! O que é que te aconteceu?! Porque não deste notícias?! Tu desapareceste durante quatro meses, Edu! Quatro meses! Estávamos todos raladíssimos contigo! E agora apareces de novo, assim, completamente do nada?! Como?! Porquê?!

— Pois… hã… Eu não… não te posso contar…

— O quê?!

— S-senta-te, Andreia, vamos… vamos conversar com calma…

Indiquei a mesa que eu e Lithiel estivéramos a ocupar com um gesto da mão e foi só nesse momento que Andreia se apercebeu da presença da outra rapariga.

— Quem é ela? — perguntou sem rodeios, desconfiada.

— Uma amiga. Lithiel, esta é a Andreia. Andreia, é a Lithiel.

Lithiel fez um sorriso de lábios apertados e um aceno com a mão. Andreia franziu o sobrolho e abriu a boca para, imagino, fazer mais perguntas, mas eu impedi-a ao insistir:

— Andreia, senta-te, por favor…

Desconfiada, a minha melhor amiga cedeu. Eu regressei ao meu lugar, humedecendo nervosamente os lábios enquanto tentava decidir a melhor maneira de começar aquela conversa.

— Podes começar a falar, Edu — disse Andreia, cruzando os braços na frente do peito — Tens muito que explicar!

— P-pois… Infelizmente, n-não é assim tão simples — neguei — Eu… eu não posso contar-te o que aconteceu…

— Edu — chamou Andreia de súbito, inclinando-se sobre a mesa e envolvendo as minhas mãos com as suas — Diz-me a verdade… Prometo que não conto a ninguém, mas preciso de saber… Há alguém a ameaçar-te? Foi por isso que desapareceste sem deixar rasto? É por isso que não me podes contar o que te aconteceu? Foi por isso que me pediste para não contar a ninguém da tua mensagem?

Eu abri a boca para negar, mas voltei rapidamente a fechá-la. Se Andreia julgasse que alguém me estava a ameaçar para me manter em silêncio, pararia de insistir, certo? Não me agradava nada a ideia de mentir à minha melhor amiga, mas entre isso e ouvi-la chamar-me louca…

Andreia decidiu interpretar o meu silêncio como um “sim” e endireitou-se lentamente, com uma expressão grave no rosto.

— Disseste que não tinhas um mafioso atrás de ti — recordou ela — Estavas a mentir ou… é realmente outra coisa?

O seu olhar deslizou discreta e desconfiadamente na direção de Lithiel.

— Não é nada do que estás a pensar — afiancei — A Lithiel não tem nada a ver com o meu desaparecimento. Ela é só alguém que conheci enquanto… estive longe.

— Outra vítima? — alvitrou Andreia, embora a suspeição não abandonasse o seu rosto.

— É-é… mais ou menos…

— Que tipo de vítima?

Eu hesitei, sem saber como desviar-me daquela pergunta, mas não tive sequer tempo de começar a pensar numa estratégia. Lithiel adiantou-se-me, resmungando:

— Sou uma vítima das mentiras dos Sacerdotes.

— Sacerdotes? — repetiu Andreia, agarrando de imediato a nova pista — Espera aí… Edu… não me digas que te meteste em algum culto maníaco?!

— Culto maníaco?! Não…!

— Eles veneram-te — lembrou-me Lithiel, erguendo uma sobrancelha.

— O quê?! Ai, meu Deus — gemeu Andreia, levando as mãos à cabeça — Isso quer dizer que… — ela olhou discretamente em volta antes de se chegar à frente e sussurrar — Há um culto maníaco que acha que és uma espécie de… divindade?

— Isso mesmo — confirmou Lithiel, chegando-se também à frente —, mas essa é a parte boa e inofensiva do culto. O problema são os seus rivais…

— Rivais?!

— Sim… Eles são crentes e tementes aos deuses, mas querem servir-se deles em vez de servi-los. Encarceraram vários outros deuses para lhes drenarem os poderes e…

— Encarceraram outros deuses? Isso quer dizer que… eles mantêm outras pessoas presas?!

Lithiel assentiu com uma expressão grave antes de acrescentar:

— E farão o mesmo com a Eduarda se a apanharem.

— Foi por isso que fugiste — constatou a minha melhor amiga, lançando-me um olhar arregalado pela compreensão.

— A Eduarda não fugiu — negou Lithiel — Ela foi raptada pelos seus seguidores porque eles acreditavam que assim estariam a protegê-la.

— Quê? Que confusão…

— Pois é… Os adoradores da Eduarda não lhe fizeram mal, mas também não a deixavam sair para não correr riscos. Eu, por outro lado, não acredito nessas histórias de deuses, só estou no culto porque os meus pais me obrigaram, por isso, decidi ajudar a Eduarda a fugir. O problema é que…

— Precisamos de um sítio onde nos possamos esconder — intrometi-me, tentando recuperar o controlo da conversa. O que diabos estava Lithiel a fazer…?

— Nós não podemos ficar em casa da Eduarda ou na minha — continuou a doppelganger — Seriam os primeiros lugares onde nos iriam procurar.

— Claro, claro — concordou Andreia — Imagino que queiram ficar em minha casa, então?

— Se não te importares…

— Claro que não me importo, Edu, jamais deixaria uma amiga minha desamparada! Farei qualquer coisa para te ajudar a livrar desses maníacos! A propósito, vocês já tentaram falar com a polícia?

— Não podemos — neguei, decidindo entrar na história de Lithiel — Há membros das duas fações do culto infiltrados na polícia. É demasiado arriscado.

— Isso é sério?

— Claro. Como achas que o culto me conseguiu raptar sem deixar qualquer rasto? Eles pediram aos infiltrados na polícia para eliminar as provas…

— Faz sentido — concordou Andreia, pensativa — O teu desaparecimento foi realmente muito estranho, parecia que te tinhas esfumado no ar…

— Eu sei de alguém que pode ajudar-me a livrar do culto de uma vez por todas — revelei, chegando-me à frente com ar conspiratório —, mas não sei onde encontrar essa pessoa. Preciso de tempo e da tua ajuda para a encontrar.

— Claro — concedeu Andreia — Farei o que puder.

Eu fiz um pequeno sorriso e apertei as mãos da minha melhor amiga entre as minhas.

— Obrigada — murmurei, sincera — Muito obrigada…

— Nós precisamos de nos meter a caminho — disse Lithiel — Estamos há demasiado tempo no mesmo sítio…

— Certo, certo — disse Andreia, levantando-se apressadamente — Eu vou levar-vos até minha casa. Vamos…

Eu troquei um breve olhar com Lithiel antes de seguirmos a minha amiga humana para o exterior do restaurante.

— Nunca pensei que iria enganar alguém com a verdade — murmurou a doppelganger a jeito de só eu ouvir — Quero dizer, parte dela…

— Resultou estranhamente bem…

— Desculpa que te diga, mas a tua amiga é estupidamente crédula…

— Meninas, vamos a pé ou de autocarro? — questionou Andreia, alheia aos nossos cochichos de tão concentrada que estava no seu telemóvel — O próximo autocarro é só daqui a quinze minutos, é quase o mesmo tempo que demoramos a chegar a casa a pé…

— Vamos a pé, então — decidi.

Andreia acenou uma concordância e guiou-nos pelas ruas movimentadas da cidade até ao apartamento que ela partilhava com quatro outros alunos universitários. Felizmente, nenhum estava em casa para me ver chegar. Eu não conhecia pessoalmente os colegas de casa de Andreia, mas cruzara-me com alguns nas raras ocasiões em que viera ali durante o primeiro semestre. Eles deveriam conhecer o meu rosto e saber que eu estava desaparecida. Seria um problema se algum deles me denunciasse à polícia…

— O meu quarto não é muito grande e só tem uma cama de solteiro, mas acho que… — dizia Andreia enquanto abria a porta.

— Não te preocupes com isso, nós temos sacos cama — tranquilizei-a rapidamente — Podemos dormir no chão.

Andreia fez uma pequena careta.

— Mesmo assim, não é nada confortável…

— Melhor que nada.

Andreia soltou um risinho e fez-nos sinal para entrar. O quarto era realmente pequeno, não sobraria chão para pisar quando eu e Lithiel estendêssemos os nossos sacos cama, mas teria de servir. Não tínhamos outra opção…

Arrastei a minha mala de viagem para um cantinho da divisão, mas não fiz qualquer gesto no sentido de abri-la. Não queria atiçar a curiosidade de Andreia com a quantidade de objetos “estranhos” que trazia lá dentro. Felizmente, a minha melhor amiga estava demasiado concentrada no telemóvel para reparar na minha hesitação.

— Ai… A Beatriz mandou-me uma mensagem — anunciou ela — Quer saber onde estou…

— Diz-lhe que tiveste de tratar de um assunto urgente, ou assim — sugeri, encolhendo os ombros.

— Isso não é, de todo, mentira — disse Andreia, rindo, enquanto começava a escrever a mensagem. Subitamente, parou e ergueu o olhar para mim — Não lhe posso contar que voltaste? Ela ficaria muito feliz por saber…

— É melhor não… Quanto menos pessoas souberem que estou aqui, melhor.

O canto da boca de Andreia descaiu num trejeito triste, mas ela acenou e voltou a guardar o telemóvel no bolso.

— Então… O que faremos agora? — perguntou, batendo as mãos na sua frente, pronta para entrar em ação.

Eu troquei um olhar apreensivo com Lithiel. Era justamente ali que todos os meus planos terminavam, ou seja… eu também não tinha a mais pálida ideia sobre o que deveria fazer a seguir. Encontrar nove titãs escondidos entre os humanos, sem ter sequer uma pista sobre onde começar a procurar, afigurava-se impossível. Ashkore dissera-me para usar a magia para expandir os meus sentidos, mas eu não tinha a certeza de como faria isso. Gostaria de sentar-me no chão e experimentar, mas, para isso, precisava de tempo, precisava de me concentrar… e precisava de tirar Andreia dali para que não me visse “fazer magia”. A questão era: como poderia expulsá-la da sua própria casa sem levantar suspeitas?

Lithiel, felizmente, parecia estar em sintonia com os meus pensamentos e sabia o que fazer.

— Posso beber um copo de água? A caminhada deixou-me com sede…

— Claro! Anda, aproveito e apresento-te à cozinha…

A cozinha, como as restantes divisões da casa, era minúscula, e a grande mesa retangular no centro da divisão não ajudava em nada. Um grupo de oito cadeiras desordenadas rodeava a mesa e Andreia teve de afastar algumas do caminho antes de conseguir chegar ao frigorífico. Retirou uma garrafa de água com o seu nome escrito num post-it, mas, em vez de entregá-la a Lithiel, ficou a mirar o conteúdo do frigorífico com o nariz franzido.

— Hum… Parece que terei de ir às compras. Não tenho comida suficiente para nós as três. E, falando nisso, tenho de avisar a Beatriz e os outros de que não vou almoçar com eles…

— Não vais? Porquê? — perguntei, embora tivesse uma boa ideia de qual seria a sua resposta.

— Não vos vou deixar aqui sozinhas, vocês precisam de mim — disse ela, confirmando as minhas suspeitas. Eu fiz um pequeno sorriso comovido.

— Não te preocupes connosco, Andreia. Eu e a Lithiel sabemos tomar conta de nós mesmas. Não devias desmarcar um almoço com a malta só por nossa causa.

— Isso seria suspeito — reforçou Lithiel — Se começares a alterar a tua rotina por nossa causa, acabarás por chamar a atenção de algum informador dos cultos. Eles sabem que tu és amiga da Eduarda. Estarão de olho em ti…

— Achas? — perguntou Andreia, preocupada.

— Tenho a certeza.

— E se… e se eles me tentarem raptar para me interrogar?!

— Eles não farão isso. O desaparecimento da melhor amiga de uma rapariga desaparecida iria expô-los demasiado, mas não tenhas dúvidas de que eles irão começar a vigiar-te e estudar o teu comportamento para tentar perceber se manténs contacto com a Eduarda.

— Ai, isso é muito assustador…

— Sim e, justamente por isso, tens de fingir que nada mudou. Ninguém pode sequer desconfiar de que tens duas raparigas escondidas no teu quarto. Entendido?

— Sim, mas… não gosto nada da ideia de vos deixar aqui sozinhas. E se acontecer alguma coisa?

— Se acontecer alguma coisa, eu mando-te mensagem — garanti — Não te preocupes. Nós ficaremos bem.

Andreia soltou um pequeno suspiro, nem um pouco convencida, mas acabou por aquiescer.

— Precisamos de comida, mesmo assim — notou ela — Não quero que vocês morram de fome.

— Eu posso emprestar-te algum dinheiro — predispus-me.

— Não te preocupes com isso, Edu — disse Andreia, afastando a minha oferta com um gesto da mão — Imagino que não tenhas muito dinheiro contigo, mais vale guardá-lo para alguma emergência. Eu vou ao supermercado num instante, compro algo para o vosso almoço e depois vou ter com a Beatriz. A propósito, eu não devo vir a casa depois do almoço e as aulas duram até às seis da tarde, vocês ficarão bem até lá?

— Claro. Não há problema — garanti, fazendo um sorriso tranquilizador.

Andreia assentiu e foi ao quarto buscar a sua bolsa. Três minutos depois, eu estava sozinha com Lithiel.

— Mais uma etapa concluída com sucesso — disse a doppelganger com um sorriso satisfeito — O que se segue?

— A parte mais difícil — resmunguei, encaminhando-me para a mala de viagem e começando a puxar os nossos sacos cama — Agora, temos de encontrar aquilo-que-tu-sabes.

— Tens alguma ideia?

— Além de me sentar no chão e meditar numa solução? Não…

— O teu irmão não te deu nenhuma dica?

— Deu, mas não sei como colocá-la em prática e não pretendo tentar nada até a Andreia ir para as aulas. Não quero que ela me apanhe a “fazer magia”.

Lithiel acenou uma concordância e veio ajudar-me a estender os sacos cama no chão. Enquanto esperámos o regresso de Andreia, Lithiel começou a perguntar-me o que eram determinados aparelhos eletrónicos, em particular alguns eletrodomésticos que vira na cozinha. O frigorífico fascinara-a particularmente e ela ficou uns dois minutos a abrir e fechar a porta antes de eu a mandar parar.

Andreia voltou quinze minutos depois de ter saído, com uma quantidade considerável de sacos de compras nos braços. Além dos ingredientes necessários à confeção de várias refeições, ela trouxera um suculento frango assado no churrasco que, juntamente com um pacote de batatas fritas, seria o meu almoço e de Lithiel. O cheirinho da carne estava a deixar-nos com água na boca, mas fazia pouco mais de uma hora que tínhamos comido pela última vez, portanto, decidimos guardar o frango para mais tarde. Entretanto, sentámo-nos nos nossos sacos cama e eu fiz as minhas primeiras tentativas de “expandir os meus sentidos”. Sentei-me no chão de pernas cruzadas, com mãos nos joelhos, e fechei os olhos.

Eu não sabia o que deveria fazer, quanto mais como, mas decidi-me por um entendimento literal das palavras de Ashkore: usar a magia e confiar na minha intuição. Concentrei-me na minha Maana e deixei-me afundar nela até sentir que eu própria era feita de pura energia. Deixei de me sentir sólida ou concreta… mas senti-me incrivelmente poderosa. Eu conseguiria fazer aquilo. E, de alguma forma, sabia como fazê-lo.

Recorrendo à magia, estendi a minha mente além do meu corpo. Eu era como um círculo de tinta que se expandia à medida que mais tinta era vertida. O meu avanço, no entanto, era muito lento. Não era fácil abandonar o conforto da solidez bem delimitada do meu corpo e aventurar-me no vazio. Sentia-me como se estivesse prestes a cair e perder-me num abismo sem fim e o medo de não conseguir regressar restringia-me. Por outro lado, também não precisava de ter pressa.

Não sei há quanto tempo estava mergulhada naquele transe quando a minha mente aflorou aquela presença. Era como uma luz no meio da escuridão, como um pilar no meio do nada. O meu primeiro impulso foi recuar, temerosa, mas, como não houve qualquer reação, voltei a aproximar-me. Estudei a presença como se palpasse um objeto e, à medida que a ia entendendo, a sua imagem ia-se tornando clara na minha mente. Era uma pessoa. Uma rapariga. Uma doppelganger. Lithiel. Ela estava deitada de barriga para baixo, mas não conseguia ver onde. Eu estava consciente dos movimentos das suas mãos e dos seus olhos, que me levavam a crer que ela estava a ler algo, mas não conseguia ver o que era.

Procurando saber se aquilo era real ou só um sonho ou alucinação, recuei até regressar ao meu limite físico e emergi do meu transe. Levantei a cabeça que não me dera conta de ter deixado cair para o peito… e vi Lithiel a menos de um metro de distância de mim, deitada de barriga para baixo no seu saco cama, lendo um dos livros de Andreia. A doppelganger levantou o olhar do livro ao notar o meu movimento e fez uma expressão ligeiramente intrigada.

— Ah, já acordaste?

— Eu não estava a dormir…

— Não? Parecia… E porque é que estás a olhar para mim assim?

Eu deixei que um sorriso se desenhasse lentamente nos meus lábios.

— Nada. Só acho que descobri uma coisa…

— Ah, sim? O quê?

Levantei-me com um risinho e um pulo animado.

— Explico-te depois. Agora, quero é comer, estou cheia de fome! Onde está o frango?


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