Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 51
XLIX


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]



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A viagem de regresso à colónia pareceu-me bem mais curta do que a viagem a caminho de Eel. Talvez porque agora tinha Lithiel e Lee para me distrair durante o percurso. Lee, em particular, não parava de comentar sobre quão incrível era a vista, o sluagh ou a minha mão iridescente. Ele estava realmente entusiasmado com a situação, não parecia nem um pouco inquieto por estar prestes a ser interrogado por uma criatura com poder suficiente para destruir aquele mundo com um simples estalar de dedos. Lithiel, por outro lado, mantinha-se silenciosa e com uma expressão muito cautelosa. Eu partilhava dos seus sentimentos. Não fazia a mais pálida ideia de qual seria a reação de Ashkore quando a visse…

O sluagh deixou-nos no mesmo sítio em que me viera buscar na noite anterior e partiu depois de receber uma última festinha na cabeça feita de névoa negra.

— Então e agora? — perguntou Lee, olhando em seu redor com curiosidade — Para onde vamos?

— Não vamos a lado nenhum — respondi, sentando-me no chão — Temos de esperar que o Ashkore nos autorize a entrar.

— Mas ele sabe que estamos aqui?

— Sabe, sim…

Nem de propósito, senti um suave formigueiro percorrer-me as têmporas e a voz do titã vermelho troou na minha cabeça:

“Fico feliz por estares de volta, irmãzinha…”

“Eu também…”, respondi em pensamento. “Vais-nos deixar entrar?”

“Depende… Quem é essa rapariga que está contigo? Não ias só buscar o elfo?”

“Ia, mas aconteceram uns imprevistos e acabei por trazê-la também. Ela está do nosso lado, não te preocupes.”

“És muito ingénua, irmãzinha…”

“Talvez, mas ela foi uma das primeiras pessoas a saber que eu era uma titânide e protegeu-me durante todo esse tempo. Não tenho razões para duvidar dela. Se achas que ela é um perigo para nós, interroga-a sob o efeito de um elixir da verdade. Assim saberás que não está a mentir.”

Ashkore não respondeu de imediato, mas não parei de sentir a sua presença na minha cabeça.

“Ela sabe que a matarei se fizer algo para nos prejudicar, não sabe?”, perguntou ao fim de algum tempo.

“Hã… Sabe, tenho a certeza que sabe…”

“Muito bem… Vou deixar-vos entrar. O Mokuba já está a caminho de vos ir buscar. Trá-las à minha presença. Eu estou no salão principal…”

“Okay…”

Ashkore saiu da minha mente com a mesma delicadeza com que entrara e eu virei-me para Lee e Lithiel.

— O meu irmão vai-vos deixar entrar.

— Como é que sabes? — perguntou o elfo, intrigado.

— Telepatia — informei, batendo com o dedo indicador na testa.

— Os titãs são telepatas? — admirou-se ele — Não sabia! Uau! Não há mesmo limite para o vosso poder!

— Há muita coisa que não sabes sobre os titãs, Lee — disse Lithiel.

— Nem tu!

— Parem com isso — pedi com um suspiro — Não vamos começar a discutir outra vez… Lithiel, a propósito, como está a tua mão?

— Na mesma — resmungou ela, mostrando-me os dedos que enfaixara ainda na floresta, enquanto esperávamos a chegada do sluagh.

— Ama Eduarda, sê bem-vinda.

Levantei-me com um pulo e virei-me para ver Mokuba sair duma abertura onde há poucos segundos estivera uma rocha.

— Mokuba! Como estás?

— Encantado por vos ver — disse o centauro, fazendo uma vénia — A vossa beleza e poder não cessam de me deslumbrar, Ama Eduarda…

Lee e Lithiel entreolharam-se. Eu senti-me corar ligeiramente. Fora fácil habituar-me aos “afetos” dos habitantes da colónia enquanto vivera no meio deles, mas deixá-los fazer aquilo na frente dos meus amigos era… muito embaraçoso…

— O-obrigada, Mokuba. Levas-nos ao Ashkore?

— Certamente — confirmou o centauro, endireitando-se e voltando a entrar nos túneis — Vinde, por favor…

Eu segui-o com Lee e Lithiel e a segunda não tardou a colocar-se ao meu lado, encostando o seu ombro ao meu.

— “Ama Eduarda”? — repetiu, baixinho e contendo um sorriso.

— Esta é uma colónia de adoradores dos titãs — lembrei-a — Eles veneram-nos aqui.

— Deu para ver — murmurou Lee, colocando-se do meu outro lado — A tua beleza e poder não para de os deslumbrar, não é?

— Parem com isso — ralhei, corada.

— Espero que não estejais a importunar a nossa adorada Ama, caros convidados — disse Mokuba num tom agreste, alguns passos mais à frente.

— Não, não — disse Lithiel rapidamente — Estamos só… admirados com o tratamento que lhe dão aqui.

— A Ama Eduarda é um dos poucos exemplares da raça que nos criou e salvou da maldade humana. Merece todo o nosso respeito e devoção. Sem a força dos titãs, Eldarya teria perecido há muito… e nós também.

— Está tudo bem, Mokuba — tranquilizei-o antes que o centauro decidisse dar-lhes um sermão — Os meus amigos são uns idiotas, mas eu gosto deles assim.

Mokuba deteve os seus passos para se virar para nós e fazer uma vénia profunda.

— Não era minha intenção destratar os vossos amigos, perdoai-me…

— Não faz mal, Mokuba, não tens de te desculpar.

— A vossa bondade não tem limites, Ama Eduarda. Obrigado…

— Está tudo bem, está tudo bem — continuei a tranquiliza-lo, embaraçada com a sua subserviência — Vamos ter com o Ashkore, sim?

Mokuba curvou-se mais um pouco antes de se endireitar e continuar a caminhar. Lee e Lithiel voltaram a espremer-me entre eles.

— Sinistra a forma como eles vos obedecem — sussurrou a doppelganger — Nem parece que têm vontade própria…

— Nós vamos ter de fazer o mesmo? — perguntou Lee, também aos sussurros.

— Comigo, não, mas convém terem cuidado com o que dizem ao meu irmão — adverti-os — Ele tem um temperamento difícil.

Lee e Lithiel trocaram olhares ligeiramente alarmados, mas não voltaram a falar até chegarmos ao nosso destino.

O salão principal era a maior e mais bem tratada câmara no complexo dos túneis. Incontáveis faeries com afinidade com a terra tinham ornamentado paredes, chão e teto com esculturas, pedras e metais preciosos. Tinham também construído um altar em forma de meia-lua onde estavam dispostos cinco tronos de mármore e ouro maciço em intervalos bem espaçados. Ashkore estava sentado no trono do meio, rodeado por uma pequena multidão de mulheres que lhe abraçavam as pernas e os braços ou estendiam as mãos para lhe tocar no peito ou no rosto coberto pela máscara. O titã descalçara as luvas para receber os beijos das mulheres nas costas das mãos e a sua pele negra iridescente refulgia com uma intensa luminescência vermelha. Diante dele, fora do altar, uma outra multidão de homens e mulheres estava ajoelhada no chão e de cabeça baixa, transmitindo o seu afeto de longe.

Ashkore viu-nos entrar e soltou uma das mãos do abraço das mulheres para nos acenar, mas deteve-se subitamente a meio do gesto. Levantou-se e, por alguma razão, senti um calafrio percorrer-me.

— O mascarado é que é o titã? — perguntou Lee, sussurrando no meu ouvido.

— S-sim… — murmurei, vendo Ashkore vir até nós com passadas largas. Os seus adoradores saíram rapidamente do seu caminho.

— Não parece feliz por nos ver — comentou Lithiel.

— Pois não…

— Fizeste alguma coisa para o irritar?

— Não, tanto quanto sei, não — avancei um pequeno passo para interceptar o titã antes de chegar aos meus amigos — Ash, está tudo be…?

O titã ignorou-me completamente, passou por mim como se nem sequer ali estivesse… e fechou uma mão no pescoço de Lee, erguendo-o do chão.

— Ash! — gritei, correndo a segurar-lhe o braço — O que é que estás a fazer?! Poisa-o no chão!

— Como é que entraste aqui? — rosnou o titã para o elfo, voltando a ignorar-me.

Lee, com os pés a sacudir-se no ar e as mãos a arranhar os dedos do titã, só conseguiu arfar.

— Fala! — ordenou o titã, sacudindo o elfo como se fosse um boneco de trapos.

— Estás a sufocá-lo, Ash! — fi-lo ver — Poisa-o no chão!

Ashkore lançou-me um breve olhar irado antes de ceder às minhas súplicas, atirando violentamente o elfo ao chão. Lee ficou lá, enrolado numa bola, arfando e tossindo.

— Saí — ordenou aos adoradores — Saí, todos vós! Mokuba, leva essa contigo — pediu ao centauro, apontando para Lithiel.

— O que é que estás a fazer, Ash? — perguntei-lhe, atravessando-me na sua frente — O que é que se passa?!

— Não sabes o que ele é? — perguntou, apontando para Lee.

— Um elfo?

— Ele não é um elfo. Nem sequer é um faery! — Ashkore soltou um risinho perigoso — Faz sentido agora…

— Do que é que estás a falar, Ash?

Ele limitou-se a erguer uma mão, pedindo-me para esperar, enquanto observava os seus adoradores saírem ordeiramente do salão. Lithiel não parecia querer sair, mas o velho centauro arrastou-a para o exterior na mesma. Entretanto, fui até Lee e ajudei-o a sentar-se.

— Estás bem? — perguntei-lhe, preocupada.

Lee acenou debilmente com a cabeça, protegendo o pescoço com uma mão.

— Devia ter imaginado que não sou bem-vindo aqui — murmurou com voz enrouquecida.

— Porquê?

Lee tossiu mais um pouco antes de apontar para o titã com o queixo.

— Ele vai explicar-te tudo…

O salão ficou enfim vazio e Ashkore trancou a porta antes de se colocar diante de nós com os braços cruzados na frente do peito. O ódio no seu olhar eriçou-me todos os pelos do corpo.

— Últimas palavras? — perguntou ao Lee.

— Eu não vim para vos magoar…

— Não acredito em ti. Há mais da tua espécie por aí? Quantos de vós os Pais mandaram atrás de nós?

— Nenhuns… Tanto quanto sei, sou só eu e não vim a mando dos nossos Pais, juro. Vim… por pura curiosidade.

Ashkore soltou um risinho perigoso.

— Curiosidade… Estás mesmo à espera que acredite nisso?

— Porque não? É a verdade. Faz-me beber elixir se quiseres ter a certeza ou chama a doppelganger que mandaste lá para fora.

— Isso seria demasiado fácil. Prefiro soltar-vos a língua com métodos que vos farão pensar duas ou três vezes antes de me voltarem a mentir.

— Como o quê? Tortura? Não resulta comigo, Ash. Já passei por isso…

Ashkore aproximou-se lentamente, com passos premeditados. Quando teve o elfo ao seu alcance, assentou-lhe um pontapé tão forte que o elfo voou contra a parede vários metros atrás de nós. Ao escorregar de volta ao chão, tossiu uma lufada de sangue.

— Lee! — guinchei, aflita, correndo até ele. Abracei o elfo contra mim antes de enfrentar o meu irmão — O que é que estás a fazer, Ashkore?!

O titã ignorou-me, continuando a fulminar Lee com o olhar.

— Não me lembro de te ter dado permissão para me chamares Ash, ninfe…

— Ninfe? — repeti, baixando o olhar para Lee — O que é isso?

O elfo cuspiu mais algum sangue.

— Masculino de ninfa. Os homens-ninfa são raros, mas existem — murmurou — Eu nasci da união entre duas famílias das Astérias, Híades e Pléiades, mas sou mais Híade do que Pléiade, como o meu pai sempre me fez questão de lembrar…

— Não me interessa a tua casta ou os teus pequenos problemas familiares — disse Ashkore — Basta seres ninfe para eu querer arrancar-te a cabeça!

— O que é que tens contra os ninfes? — perguntei ao Ashkore, mas foi Lee quem respondeu:

— As ninfas foram o apoio que Úrano e Gaia deram aos humanos durante a guerra contra os faeries. Fomos nós que quase levámos os faeries à extinção…

— Espera aí… As ninfas participaram na guerra que conduziu ao Grande Exílio? E estavam do lado dos humanos?

— Sim… Nós não tínhamos liberdade de escolha na altura. Éramos meros fantoches de Úrano e Gaia, as nossas consciências estavam completamente subjugadas. Partindo do princípio de que sequer tínhamos uma consciência… Quando a guerra terminou e os nossos Pais nos deixaram ir, tornámo-nos meras ferramentas esquecidas num canto da garagem — Lee limpou o sangue no canto da boca com a manga da túnica — Foram os humanos que nos deram um novo propósito, enchendo-nos com a sua devoção.

— E entretanto Úrano e Gaia lembraram-se de que nós ainda existimos quando criaram a Eduarda e decidiram enviar-vos atrás de nós aqui em Eldarya — concluiu Ashkore — É por isso que queres voltar para a Terra? Para pedir reforços para nos matar?

— Não é nada disso — negou o elfo… ou ninfe — Eu não vim a mando dos Pais. Eles raramente se dirigem a nós, na verdade. A última vez que o fizeram… foi para nos anunciar o nascimento de uma nova geração de titãs.

— Uma nova geração de titãs? — repeti, interessada.

Lee assentiu.

— Úrano e Gaia acharam que nós, ninfas, precisávamos de uma nova entidade superior que nos governasse e decidiram criar uma nova geração de titãs. Criaram dez titãs dentro de dez ventres humanos e nós passámos os últimos dezoito anos à espera do seu despertar.

— E-espera aí — pedi, desorientada — Úrano e Gaia criaram dez novos titãs? Há dezoito anos atrás?

— Isso mesmo… Tu és um deles.

— Disseste que os Pais os criaram dentro de ventre humano? — continuou Ashkore.

— Úrano e Gaia não queriam repetir o fiasco que a vossa geração foi — disse Lee, apontando para o titã vermelho com uma mão ligeiramente trémula — e decidiram dar um corpo humano aos novos titãs, como medida de contenção — ergueu o olhar para mim — O vosso corpo humano é como… um travão de mão. Se vocês fizerem cagada ou tentarem rebelar-se contra os nossos Pais, eles têm o controlo remoto que vos reduzirá novamente à forma humana.

— Como é que a Eduarda fica no meio disso tudo? — perguntou Ashkore — Nós destruímos a casca humana dela com a nossa Maana, não foi?

— Não sei… Não sei como é que o invólucro humano alterou, na prática, a constituição dos novos titãs. Se a vossa Maana destruiu a parte humana da Eduarda, é possível que tenha “queimado os fusíveis” do controlo remoto de Úrano e Gaia.

— Usas termos muito estranhos, ninfe. Explica-te como deve ser.

— A Eduarda percebe-os — garantiu Lee antes de me dirigir um sorrisinho divertido — Eles não conhecem as maravilhas do século XXI…

— Tu vieste da Terra? — perguntei.

— Sim, cheguei a Eldarya há pouco mais de um ano. Usei a minha recém-adquirida liberdade dos dezoito anos para pesquisar mais sobre a primeira geração de titãs, já que em breve iríamos conhecer a segunda, e acabei por descobrir uma maneira de entrar em Eldarya. O problema é que não sabia como voltar para trás…

— Foi por isso que pediste para vir comigo para a Terra — conclui.

— Sim…

— Porque não pediste aos Sacerdotes para abrir um portal para te levar de volta, como eu fiz?

— Eu pedi, mas… — Lee sacudiu lentamente a cabeça — Não resultou lá muito bem…

— Porque não?

— Viste a reação do teu irmão ao ver-me? Os faeries não reagem muito melhor. Além disso, sendo uma ninfa vinda da Terra e sabendo coisas sobre os titãs que colocavam em causa as histórias construídas pelos Sacerdotes, eu era um alvo a abater. O Sacerdote de Ryss não gostou de me ouvir fazer perguntas sobre onde estavam os titãs ou dizer aos outros faeries que os titãs eram os seus verdadeiros criadores, então…

Lee hesitou e eu fiz-lhe uma carícia consoladora no ombro.

— Ele fez-te alguma coisa? — alvitrei, lembrando-me das suas reticências em entrar em Ryss.

O elfo… ninfe soltou um pequeno suspiro trémulo antes de admitir:

— Mandou-me matar. Um grupo de recrutas da Obsidiana de Ryss veio atrás de mim. Espancaram-me… — Lee hesitou de novo, com os olhos verdes cheios de lágrimas — …divertiram-se às minhas custas… e abandonaram-me no meio da floresta, convencidos de que estava morta.

— Morta? — repetiu Ashkore, desconfiado.

Lee ergueu os olhos marejados para mim.

— Eu sou uma rapariga, já agora…

— És… o quê? — guinchei, descrente.

— Sou uma rapariga — repetiu o elfo. Ninfe. Ninfa. Ai, estava tão confusa! — Eu sobrevivi ao que os mandatários do Sacerdote me fizeram, nem sei como, mas as sequelas… não me deixavam viver em paz. Tive de reorganizar as minhas ideias e… decidi que disfarçar-me de elfo homem era a opção mais segura.

— Porquê homem? O que é que…? — comecei a perguntar até uma ideia me ocorrer — Oh… Quando disseste que eles se divertiram às tuas custas… querias dizer que…

— Sim. Isso… — murmurou a ninfa, muito baixinho.

— A tua patética história de vida não me vai convencer a poupar-te, ninfa — avisou Ashkore.

— Achas mesmo que este é o momento certo para ameaçar a vida dele… dela? — perguntei ao titã, irritada.

— Mas é a verdade. Eu não vou poupá-la. Tens noção do quanto a espécie dela nos atormentou?

— E desde quando é justo culpar alguém pelo que os seus antepassados fizeram?

— Antepassados? Com a esperança de vida que as ninfas têm, ela bem pode ter participado na guerra!

— Não participei — garantiu Lee (seria mesmo esse o seu nome?) — Tenho dezanove anos, mesmo.

— Agora mentes — acusou Ashkore.

— Não estou a mentir… — Lee voltou a tossir e um novo fio de sangue escorreu-lhe por entre os lábios.

— Temos de te tratar — decidi.

— Nem penses — negou Ashkore, vindo até nós — Eu vou matar essa ninfa…

— Só vais matar esta ninfa por cima do meu cadáver! — cortei, levantando-me e colocando-me diante de Lee. Provavelmente era loucura enfrentar Ashkore. Ele era mais velho e mais experiente do que eu, tinha acabado de receber o afeto de uma multidão inteira enquanto eu gastara rios de Maana a usar a minha camuflagem em Eel. Se Ashkore realmente quisesse chegar a Lee, eu não o conseguiria impedir… mas não pretendia assistir, imperturbável, à execução de uma das pessoas que me ajudaram a superar as dificuldades geradas pela minha chegada a Eldarya. Eu acreditava em Lee e iria protege-la com tudo o que tinha.

Ashkore deteve-se a meio do caminho e fixou-me, perplexo.

— Sai da frente, Eduarda — ordenou.

— Só saio quando prometeres que não vais magoar o Lee.

— Eu não quero magoar-te…

— Nem eu a ti… maninho — acrescentei com desdém, cruzando os braços diante do peito.

Ashkore mirou-me por vários instantes, avaliando a situação. Eu mantive-me imóvel e irredutível até o titã desinchar a sua postura ameaçadora.

— Eu não me quero zangar contigo, Eduarda…

— Eu também não me quero zangar contigo, mas não te vou perdoar se magoares o Lee… Quero dizer, a Lee… Lee é mesmo o teu nome? — perguntei, olhando a ninfa por cima do ombro.

— Yap — confirmou ela, erguendo um polegar — Nomes unissexo são os melhores…

— Tu não entendes, Eduarda — disse Ashkore, retomando o assunto inicial — Não fazes ideia do que as ninfas são capazes!

— Ah, não faças uma tempestade num copo de água, Ash — disse Lee atrás de mim — Sabes bem que a força das ninfas é coletiva. Sozinhas, nós não somos mais fortes do que um faelien…

Ashkore enrijeceu como uma estátua de mármore e o brilho vermelho da sua pele intensificou-se. Antes que eu o pudesse impedir, o titã desmaterializou-se e voltou a ganhar forma mesmo ao lado da ninfa. Deu-lhe um novo pontapé, desta vez no rosto, desfazendo-lhe o nariz e deixando-a estendida no chão. Ashkore tentou avançar sobre ela, mas eu corri a impedi-lo, colocando-me na sua frente e poisando as mãos no seu peito.

— Não, Ash! Deixa-a em paz! — implorei.

Ele voltou a ignorar-me, dirigindo-se a Lee num tom ameaçador:

— Já te disse para não me chamares Ash, ninfa. Eu sou um titã, filho de Úrano e Gaia e Senhor de Eldarya! Trata-me com o respeito que me é devido ou farei com que te arrependas de ter nascido!

— Não! Ash! Olha para mim! — exigi, envolvendo o seu rosto coberto com a máscara feiosa e virando-o na minha direção — Ash… O Lee… Quero dizer, a Lee foi uma das pessoas que melhor me acolheu quando cheguei a Eldarya. Ela ajudou-me com o portal, ajudou-me a distrair-me dos meus problemas… fez-me sorrir quando a única coisa que eu conseguia fazer era chorar! A Lee não é má pessoa, Ash, acredita… Eu vejo-a como uma grande amiga! E é por isso que não te vou perdoar se a continuares a magoar… Estás a magoar-me a mim também, Ash! Por favor… não lhe faças mal. Não me faças perder uma das poucas amigas que tenho neste sítio…

Ashkore mirou-me demoradamente e temi que ele voltasse a ignorar-me, mas senti a tensão abandonar o seu corpo ao fim de alguns instantes.

— É verdade que a força das ninfas vem dos seus números, por isso essa aí não é um perigo imediato. Se ela é tão importante assim para ti, deixá-la-ei viver… mas matá-la-ei sem hesitar ao mais ténue sinal de traição — Ashkore fixou Lee por cima do meu ombro — Encara a tua vida como uma recompensa pela ajuda que prestaste à minha irmã, ninfa… É somente graças a ela que ainda respiras.

— Isso quer dizer o quê? Ela é a minha dona agora? — perguntou Lee com uma voz nasalada — Também vou ter de começar a chamar-lhe Ama Eduarda?

— Sim, isso mesmo — confirmou Ashkore — Ela não só salvou a tua miserável vida como, segundo as tuas próprias palavras, foi criada pelos nossos Pais para governar a tua espécie. Se isso é verdade, a Eduarda é realmente a tua Ama e não te deverá ser difícil vê-la como tal.

— A Lee pode continuar a tratar-me como tratou até aqui — refutei — Eu não me importo — virei-me para a ninfa e ajudei-a a levantar-se, passando um dos seus braços por cima dos meus ombros — Eu vou levá-la à enfermaria. Falamos melhor quando voltar, okay? Tenho um assunto muito importante para discutir contigo.

— Muito bem… Estarei à espera.

Ashkore regressou ao seu trono e eu saí do salão com Lee nos meus ombros. Carreguei-a até à câmara onde se reuniam os curandeiros e alquimistas dos túneis e esperei do lado de fora pelo fim do tratamento. Vinte minutos depois, um curandeiro veio avisar-me que Lee ficaria ali em observação até à manhã seguinte devido ao estrago interno que Ashkore fizera ao pontapear a ninfa na barriga. Se Lee fosse humana ou de uma raça faery mais fraca, teria morrido com aquele golpe…

Os curandeiros deixaram-me visitá-la e eu sentei-me ao lado da cama em que ela descansava, mirando atentamente o seu rosto. Era difícil acreditar que Lee era uma rapariga… Ela não tinha um rosto declaradamente masculino nem nada do género, mas estava demasiado habituada a vê-la como homem e não sabia como parar.

— Estás com cara de quem não acredita no que está a ver — comentou Lee com um risinho.

— É difícil processar a montanha de informação que recebi da vossa conversa.

— Imagino… Se eu puder ajudar, estás à vontade para perguntar.

— O que são as ninfas, exatamente? — perguntei de imediato — Qual o vosso propósito? Vocês foram mesmo criadas para matar os faeries e os titãs?

Lee soltou um pequeno suspiro e ergueu o olhar para o teto, pensativa.

— O que somos…? Bem… Digamos que somos a versão terrestre dos seres elementais de Eldarya. Temos um aspeto bastante diferente e talvez os nossos poderes também o sejam, mas, de resto, somos basicamente a mesma coisa. Quanto ao nosso propósito… é difícil explicar. Úrano e Gaia criaram-nos para expandir o seu poder, nós éramos como antenas de satélite que eles posicionavam de forma a melhor conduzir e concentrar a sua força magia, ‘tás a ver? Nós não tínhamos um propósito nessa altura porque nós não tínhamos uma consciência individual. Nós não queríamos destruir os faeries ou os titãs, porque… nós não queríamos nada. Éramos meros fantoches. Foram os humanos com as suas rezas e oferendas que nos ajudaram a desenvolver um pensamento autónomo dos nossos Pais. Desde então, o nosso propósito é simplesmente cuidar do elemento que nos é mais próximo. Cuidamos da terra, das árvores, da água, dos rios, da chuva… essas coisas. Portamo-nos bastante bem enquanto tivemos o respeito e a adoração humana, mas estes últimos anos… Tu vieste da Terra, então sabes como as coisas estão lá, com a poluição e tudo o mais. Nós, ninfas, somos as principais afetadas pela situação e algumas das minhas irmãs decidiram ensinar uma lição aos humanos criando desastres naturais. Úrano e Gaia não gostaram, como deves imaginar… Eles tentaram parar-nos, mas já não têm mais controlo sobre nós e foi por isso que vos criaram. Uma segunda geração de titãs para colocar as ninfas na linha.

— Há mais nove pessoas como eu na Terra?

— Não exatamente como tu… Eles ainda não sabem o que são, ainda não saíram da sua casca humana, e ainda estão sob o domínio de Úrano e Gaia. Tu talvez não estejas…

— Falando em casca humana, disseste que nós fomos gerados em ventre humano?

— Isso mesmo.

— O que é que isso quer dizer, na prática?

— Quer dizer que nasceste de humanos, apesar de não o seres. Não conheço os detalhes do processo, mas imagino que os nossos Pais tenham feito algo como enfiar uma “alma” titã dentro de um corpo humano.

— Então… os meus pais… os meus pais humanos… eles são mesmo meus pais?

— São, sim. Basicamente, tu tens quatro pais. Dois humanos e duas divindades. Sinistro, não é?

— Sim — murmurei, sentindo os olhos encher-se de lágrimas de alívio — É muito sinistro…


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Notas finais do capítulo

[Próximo: 30/8/18]



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