Ladrão de Códigos escrita por Leviano


Capítulo 3
Espectral




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Começou com meros pesadelos. Pode-se interpretar até mesmo como visões, já que tais sonhos eram lúcidos e ele tinha plena noção disso conforme vagava através da inconsciência. Apesar de saber que estava dormindo, ainda que pudesse distinguir realidade de ilusão, ele não conseguia acordar. Com o tempo, pareceu aceitar que precisava “viver” aquilo. Precisava encarar seu passado. Havia fugido tempo suficiente.

Nos sonhos ele vivenciava ilusões cruéis. Era testemunha onipresente de todo o mal que lhe aconteceu; do que fez a outras pessoas e do que terceiros sofreram meramente por tê-lo como companhia.

A tortura etérea aparentava ter sido feita quase sob medida para ele, porque, conforme ele presenciava aquelas ilusões terríveis, algo em seu subconsciente era capaz de assimilar quais eventos lhe causavam mais sofrimento, repulsa e arrependimento. E isso era intensificado. Aqueles acontecimentos que ele mais tinha aversão se repetiam, vez após vez, e após isso, vinham até ele novamente, só que de uma maneira diferentemente cruel a cada passagem. Ele não podia fechar os olhos. Não podia tapar a face. Não podia correr ou se esconder; ora, aquilo era sua essência. Era tudo o que ele seria.

Os pesadelos nunca cessaram.

Keiv não demorou para associar aquilo tudo à marca com a qual Haliax o amaldiçoou. O que ele não fazia ideia, porém, era que tal tortura era coisa de criança comparada ao que viria a seguir.

— Desta vez não arrebentarão. — disse Denic, arrastando longas e maciças correntes sobre o ombro. K’iera também portava algumas; aquelas, contudo, serviriam para os braços, pernas e pescoço.

— Pode garantir isso? — perguntou Keiv, cético, já se sentando e encostando-se na coluna de uma das escuras câmaras do priorado. 

— São correntes navais, precisei gastar muito da minha lábia com aqueles marujos... mas não, não garantirei. Se isso não for o suficiente nada será.

— A necromante — salientou K’iera. — É nosso último intento. Não podemos esperar mais. Partiremos amanhã.

Keiv abriu os braços.

— Quando quiserem...

Denic foi o primeiro. Começou laçando-o pelo tronco com a maior e mais grossa das correntes. Deu somente duas voltas ao redor do corpo dele, para que as extremidades ainda fossem longas o bastante para serem presas às duas outras colunas flanqueadas por aquela a qual Keiv era preso.

Denic prendeu o último lado da corrente a um cadeado enquanto K’iera também o prendia pelo pescoço.

Apenas aquilo já seria o suficiente para manter um urso imortal preso pela eternidade, mas a coisa que tomava o corpo de Keiv quando ele acordava era mais forte, mais rápida, e muito mais mortal do que qualquer urso já teve a pretensão de ser. Por esse motivo K’iera também o acorrentou pelos braços atrás das costas e pelas pernas.

Ambos os ladinos livres se postaram exatamente defronte para o cativo, com um misto de pena e pavor.

— Vocês são uns bastardos loucos. — disse Keiv, e teria meneado a cabeça se seu pescoço não estivesse acorrentado apenas o suficiente para não matá-lo estrangulado.

— Isso é sabido. — Denic concordou sério.

— Nos deve sua devoção pelo resto da vida, espero que tenha isso em mente. — ressaltou K’iera, sem qualquer tom de brincadeira.

— Não é muita coisa — Keiv admitiu. — E provavelmente morrerei sem saber por que o fazem. Estão correndo perigo. Poderiam estar vivendo os muitos anos que ainda lhe restam. Vão embora para outra cidade, outro pais ou continente. Reergam a Crisálida e tomem o mundo de assalto.

— Isso seria uma utopia — Denic coçou a cabeça. — Não acredita, mas há um propósito para nós três termos sobrevivido. Abandoná-lo seria negar isso. O destino provavelmente me descartaria se eu ao menos considerasse rejeitá-lo.

K’iera cuspiu, dizendo:

— Minha sanidade provavelmente está no limite, por ainda estar ao lado de um desequilibrado com tendências etéreas espiritas e um meio-humano amaldiçoado — K’iera nunca foi de medir palavras. — Mas eu quero estar lá quando Haliax for encontrado... E algo me diz que você nos levará até ele, Keiv. 

Contudo, a realidade era que ainda permaneciam ao lado de Keiv porque a personalidade que tomava seu corpo curiosamente não os fazia mal. Isso ficou evidente na primeira vez que ela apareceu, selvagem, mas racional — e, obviamente, nada garantia que essa personalidade não pudesse mudar de ideia num eventual excesso de fúria. 

A coisa nunca disse nada enquanto exerceu sua influência nestes meses. Tal personalidade aparentemente não falava, e seu silêncio era o que mais terrificava.

Keiv já estava quase pegando no sono. Há uma semana vem adiando isso com base em chás e cafeína, mas precisava dormir. A qualquer hora poderia cair por alguma viela e quando acordasse e aquilo que não era ele tomasse seu corpo, aquelas correntes — que provavelmente não fariam diferença — não existiriam para proteger o mundo exterior do Espectro.

Espectro. Era assim que ele vinha sendo chamado pelas pessoas que sobreviveram a seus ataques. Cartazes existiam pelas ruas com ilustrações de um ser muito branco trajado de preto, com enormes orelhas pontudas e olhos vermelhos e nocivos como uma forja em brasa.

Aquilo que tomava o corpo de Keiv não fazia distinção de mulheres, homens, idosos ou crianças, e a cada dia a movimentação em Erins'tväll diminuía à noite, tornando-a praticamente uma cidade fantasma. Ele sempre atacava à noite; limitando assim aqueles que pudessem fazê-lo mal e aumentando sua eficácia assassina.

O escuro era seu aliado e não o contrário. 

Keiv havia enfim entrado em seu sono, e o que acordaria dali nada diferenciava-se de um demônio; e provavelmente ficaria possesso quando se visse cativo daquela forma.

Não havia certeza alguma se funcionaria dessa vez, ele já havia partido outras correntes, cordas e cadeados em pura força bruta. A cidade amanheceria pintada de vermelho. Era o mais certo.

 

Ele sabia que havia acabado quando os gritos dela cessaram. E logo após veio o choro anunciando mais uma vida.

Uma criança veio em sua direção; ela estava feliz. Não possuía mais que 8 anos de idade, e se parecia muito com Keiv, exceto pelos cabelos: os dela eram dourados como os ramos do trigo sob a luz do sol matinal; muito diferente dos dele, que eram como se os fios tivessem sido moldados um a um por lascas do mais negro ônix.

Na varanda do casebre Keiv avistava o pôr-do-sol, não havia expressão em seu rosto: apenas uma máscara pálida e cansada. Culpa encarnada.

A garotinha tocou a mão dele, puxando-o. Keiv a ignorou com uma frieza mortal.

— É uma menina — disse ela. — Tão pequena e frágil. Venha vê-la. — sorriu.

Keiv não respondeu.

— Não quer vê-la? — a garota o puxou com mais força, uma raiva crescente. — Venha vê-la. Venha! Ela exige sua presença.

Ignorada.

— Sabe que ela virá até você de qualquer forma, não sabe? — o tom de voz da garota agora nada se assemelhava a uma criança. Era sarcástico e lascivo: a voz de uma mulher feita, presa num corpo juvenil. — Não pode fugir do que nasceu para ser. Nossa mãe queria uma aberração, e ela teve sucesso. Como teve. Mas isso veio com um preço...

Keiv desvencilhou-se do toque dela com um safanão. Seu pálido rosto, agora, exibia por inteiro sua culpa antes latente.

A garota moveu-se até estar exatamente defronte para Keiv, de modo que ele não pudesse negar a visão.

Keiv finalmente percebeu que ela estava completamente nua. De uma forma obscena, ela começou a tocar suas partes íntimas, mas não havia nada de sensual naquilo; era uma criança, o corpo de uma criança. Só existia nojo e desprezo... por ele mesmo.

Em volta do pescoço dela havia uma marca roxa, que se destacava em sua pele leitosa como uma mancha de sangue em meio a neve matutina.

 A garota enfim parou com aquela encenação, percebendo que não surtia mais o efeito de antes. Ele já havia presenciado aquilo tantas vezes...

— Ela salvou nosso povo, nos elevando a patamares jamais vistos, só para nossa queda ser vertiginosa e sem qualquer perspectiva de sobrevivência — acusou. — Sua vida é uma ofensa profunda à nossa memória, Kraëv.

Keiv saltou a varanda, abandonando-a e se afastando da casa; só para perceber que, em segundos, ela já estava a seu lado.

— Não pode nos ignorar. Estaremos com você até o fim e bem depois dele. Acabe com isso. Se entregue. Não irá encontrá-lo. Chegará o dia em que se banhará nas vísceras daqueles dois idiotas que permanecem a seu lado, sabe disso. É tão simples Kraëv, tão simples acabar com todo esse tormento...

Ignorada.

Keiv chegou a uma macieira bela e com inúmeros frutos vermelhos brotando, ali ficou, encarando o horizonte escuro embaixo das maçãs.

— Lembra-se de como era bela? Aqueles cabelos brancos, aquela pele macia, aqueles olhos chamejantes como se portassem o calor do sol em si... E você foi o primeiro, sim. O pilar central. O que ela mais amou. Isso é inaceitável, sua praga!

A garota apertou o braço dele de tal forma que leves filetes de sangue começaram a brotar de seu pulso, onde as unhas afiadas haviam cravado. Ela o encarava com um ódio e desprezo tão palpável que seus olhos haviam ganhado um tom de vermelho mais escuro, como se fossem irrigados em puro sangue.

No rosto de Keiv não havia dor. Sequer havia percebido que sangrava. Tentava ignorá-la, mas era impossível. Por dentro, desmoronava por completo, e ela o enxergava exatamente assim.

— Nos veremos muito em breve, irmão — sorriu. — Olha! Ela é linda.

Outra garota veio de encontro a ele, mais velha, com mais curvas. Possuía um aspecto cansado e debilitado, mas sua beleza ainda era irradiante. Seus traços em nada se assemelhavam aos da garotinha ou de Keiv, ela era completamente humana, e carregava algo nos braços coberto por uma manta.

Quando ela se postou à frente de Keiv, ele a deu as costas imediatamente, só para perceber que ela também estava lá. Não havia direção para onde ele olhasse que ela não estivesse, como uma figura onipresente, feita para atormentar.

Aquela moça parecia machucá-lo muito mais que a garotinha anterior. Keiv começou a correr de olhos fechados socando o ar em volta como um alucinado, mas não havia lugar para ir, ela estava em sua cabeça. Sempre estaria. Dormindo ou acordado.

Ela vestia um tosco vestido de seda branco, completamente manchado de sangue na parte da virilha. O cordão umbilical ainda preso a ela arrastava no chão por entre as pernas.

Quando Keiv parou de correr e abriu os olhos, percebeu que estava novamente embaixo da macieira.

A garota veio em direção a ele, segurando aquele pequeno ser encoberto por uma manta puída. A moça chorava, ele também. Os olhos dela eram de um azul tão cristalino...

— Você não é real... — disse ele, lágrimas tímidas rolando por eu rosto, quentes como cera de vela. Uma rima cruel em comparação à cor da sua pele.

— Sou tão real quanto necessária — rebateu a moça, singela. Seus cabelos eram ondulados e dourados. — Pegue-a. Ela é linda.

O entregou a criança. Keiv a recebeu.

A recebeu apenas para perceber que segurava ossadas cobertas por vermes de todos os tamanhos, seguido de um fedor opressor que invadiu suas narinas de imediato. As maçãs sobre sua cabeça também haviam se transformado em vermes, que agora despencavam sobre ele com a única intenção de devorá-lo.

Keiv largou aquela abominação sobre seus pés e apenas aceitou.

 

Horas haviam se passado quando K’iera e Denic correram em direção aos berros da criatura, percebendo que era tarde demais.

A coluna a qual ele estava preso havia rachado quase por inteira. As correntes dos pulsos estavam inutilizáveis, a do pescoço e tronco igualmente; e ele agora partia a dos pés, libertando-se por inteiro.

Os ladinos perceberam que ele sangrava nos pulsos e que por pouco não havia se suicidado estrangulado, pois possuía uma marca arroxeada horrenda no pescoço.

Não havia mais o que fazer. 

Temerosos, Denic e K’iera ficaram observando-o de longe. Aquela coisa andava em círculos sobre o próprio eixo, como se estivesse maquinando de que forma procederia desta vez. Como destruiria famílias, como poderia ser mais cruel do que a vez anterior.

Ele já os havia percebido, contudo. Mas continuava da mesma forma: andando em círculos de cabeça baixa, tal qual um animal. Seus olhos rubros projetando linhas vermelhas e intangíveis no ar, como faróis

Até que, num piscar, K’iera sentiu uma leve fungada em seu pescoço. Todos os pelos do corpo da ladina se eriçaram em seguida. Keiv, ou sua mais nova/velha personalidade, estava detrás de ambos, mais precisamente atrás de K’iera, inalando seu aroma de forma obscena.

Ambos não se moveram, só perceberam ele ali depois de segundos, ou seja, aquele ser poderia tê-los matado sem qualquer chance de reação.

Foi quando algo aparentemente impossível até pouco tempo aconteceu.

K’iera arregalou os olhos, estarrecida, sentindo algo de muito familiar naquele tom, naquela voz, mas que em nada lembrava Keiv.

Somente ela ouviu o que lhe foi sussurrado.

Quando se virou, só havia Denic e ela naquela câmara.


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