Ladrão de Códigos escrita por Leviano


Capítulo 1
Prólogo




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Grill, o vagabundo, é daqueles que não se importa com quantos levará para baixo, desde que seja o último a cair.

Aquela seria uma noite importante e, a curto prazo, com sorte, lucrativa. O prostíbulo “Lascívia” estava apinhado: fedendo a perfume barato, fumo, suor, gozo, e é claro, adultério. A música dos menestréis metidos a besta era o pior de tudo. Aquilo era música? O vagabundo estava acompanhado de um tipinho enlouquecedor, daquelas que levam a alcunha de perdição naquela parte fétida da cidade, porque era comum sujeitos simplórios ou até bem-nascidos gastarem até o último vintém para levar mais uma sentada de uma das perdições de luxo do Lascívia.  

Grill esbanjava o que não possuía, bancava o que não era, e estava tudo bem, porque, apesar de ser conhecido de alto a baixo na Baixada Cinzenta, para o cara de pau pouco importava o que latiam às suas costas. Aqueles que não tem nada a perder abandonaram o orgulho há muito tempo, costumava dizer. Decerto havia algum fundamento nisso, mas o que nem mesmo o vagabundo sabia – ou fingia que não —, era que tinha sim, algo a perder, e descobriria isso muito em breve.

Grill deu com a caneca no tampo da mesa, esparramando cerveja, enquanto recebia chupões no pescoço e esfregadas no membro rijo. A jovem rameira estava atracada a ele, e o odor que subia de toda aquela depravação não poderia levar outro nome senão o mesmo do estabelecimento onde tudo acontecia.

— Onde deve estar este filho de uma vadia? — grunhiu o vagabundo sem esperar resposta, olhando para a entrada do bordel com uma carranca estampada.

— Vamos subir, docinho... — perdição sussurrou em seu ouvido.

Pelo Pai Luminoso, tudo nela faz jus à alcunha.

— Esperaremos mais um pouco, só mais um pouquinho, minha pérola intrincada.

Grill estava há poucos momentos de vender uma informação valiosa. Uma informação que ditaria sua jornada para fora daquela merda de cidade, onde habita e sequer lembra há quanto tempo. O que sabia era que estava farto de migalhas, e como o líder de seu bando não o quis dar ouvidos sobre os riscos demasiados da mais nova missão, estava pronto para ele mesmo frustrar o que o destino já se encarregaria de fazer. Grill sabia que não tinham cacife para tal. 

Eles que caiam sozinhos sobre a mão de deus.  

A Doutrina é uma guilda de merdões, basicamente, que ultimamente têm sobrevivido de ataque em estradas e portos. Um plano de golpe vem sendo montado há pelo menos um mês, sob o intuito de lucrarem de forma abastada. E o alvo seria a cerimônia de casamento do Barão de Raelle. De acordo com fonte até onde se sabe segura, haviam cinco vagas para copeiros no plantel de serviçais da cerimônia. Vagas essas que foram preenchidas por cinco membros da’Doutrina, sob a incumbência de um cicrano de dentro. Empregados com livre acesso ao casarão dos Reyvs. Com toda a riqueza que lá havia à disposição de suas mãos ágeis e furtivas.

— Chega. Esse merda não exerce tamanho poder sobre mim.

Grill ergueu-se da cadeira de forma súbita, levando sua perdição nos braços. A puta soltou um gritinho afetado, e o pau fracassado de Grill reagiu àquilo. Ele seguiu adiante, em direção ao bar. Retirou duas moedas de prata do bolso do sobretudo surrado e lançou-as sobre o balcão. As moedas rolaram, dançaram e tiniram, antes do jovem ministrante pegá-las.

— O que será, chefe? — perguntou o rapaz do outro lado do balcão de pinho.

— Um sujeito virá aqui a minha procura. É um tipo alto, louro, de bigode e barbicha convencida. Veste roupas bonitas, mas você nota que são de brechó numa segunda olhadela. Fique atento a isso e avise-me quando vê-lo chegar. Estarei no sexto quarto à esquerda.

— Às ordens de Grill. — assentiu o rapaz.

O vagabundo então seguiu adiante com a rameira nos braços, enchendo-a de beijos umedecidos. Subiu um lance de escadas vagarosamente. Já no corredor, gemidos, gritos e pancadas eram bem audíveis, provindo dos quartos fechados. Logo Grill e sua perdição se juntariam àquela sinfonia lasciva.

Com um chute do vagabundo, a porta do quarto se escancarou, e ambos entraram meio aos trancos. O quarto estava escuro, à meia-luz de candeeiros. Grill aproximou-se da cama e jogou a prostituta sobre ela; essa que de prontidão começou a retirar suas vestimentas apertadas e provocantes de prostituta.

— Por que não me diz quem está esperando, meu Grill O Grande? – instigou ela, ronronando e se movendo sobre a cama como uma gata no cio, já nua em pelo.

— Temos algo melhor a fazer, não temos? — Grill tirou sua roupa de baixo e pulou sobre a perdição.

Em meio aos chupões dele em seu pescoço, ela insistiu.

— Temos, mas você vive dizendo que quer me tirar daqui. Me diz tanto isso que me permiti a ilusão de acreditar. Por acaso isso tem algo a ver?

Grill franziu a testa e ergueu a cabeça para encará-la.

— Por que teria? E sim, não há nada que eu não queira mais do que tirá-la daqui e tê-la só para mim.

— É que eu te conheço — insistiu ela. — Sei quando está envolvido em algo grande.

Ainda de cenho franzido, Grill ergueu-se de bruços sobre a perdição, estudando-a; porém logo abriu um sorriso, dizendo:

— Não é como se eu pudesse revelar, meu lírio devasso, mas para fazê-la usar sua boca de outra forma e parar com as perguntas, digamos que o futuro a mim pertence; o meu e o da Doutrina, o qual condenarei.

— Ora, ora...

Irrompeu uma voz jovial em meio ao negrume do quarto, que não pertencia a nem um dos dois os quais estavam atracados na cama. Grill deu um pulo, virando-se para cima no sobressalto. Começou a suar frio, instantaneamente. Mais à frente, sentado de forma esparramada numa poltrona de couro a poucos metros da cama, havia uma silhueta onde somente dois orbes vermelhos se destacavam, como se flutuassem, fitando sombriamente o vagabundo que tentava engolir em seco, vez após vez, como se tivesse perdido o dom da fala.

— Grill, O Grande — a voz tornou a se fazer ouvir, em puro deboche. – Isso é o que você chama de pau?

A silhueta ergueu-se, aproximando-se. Grill estava em choque. Sua expressão era total incredulidade.

— Q-quem é ele, Grill? O que... é ele? — inquiriu perdição, sem maiores sustos, contudo.

— O que você está fazen... — balbuciou o vagabundo. — C-como me...

— Sinto por ouvir isso, Grig... Que vergonha. Agindo às costas da’Doutrina? Que tipo de monte de bosta você é?

— O que está fazendo aqui, Drakciano filho da puta?! — o vagabundo berrou, como se aquele torpor anteriormente fosse um estado de meditação reunindo energia necessária para cuspir aquele xingamento.

— Drakciano... — perdição murmurou para si, como se fitasse a figura de um deus esquecido, ali, em pé, envolto em sombras defronte para ela.

Na meia-luz não dava para distinguir muita coisa do estranho, que, além de tudo, trajava roupas pretas. Porém, por seus olhos rubros com pupilas verticais, a certeza é que não era humano.

— Meio Drakciano, devo salientar. O que estou fazendo aqui é muito simples, como o encontrei já não interessa, se for essa a pergunta que você não completou. Quero informações — o estranho deu um passo firme e cruzou os braços, deixando que as luzes lhe revelassem mais alguns traços: era jovem, e pálido como a vela. Possuía orelhas pontudas desproporcionais e longos cabelos, tão negros quanto piche. No lado esquerdo à testa, rente a têmpora, uma marca negra semelhante a uma runa destacava-se. — Quero que cuspa o paradeiro de Haliax. Agora.

— Humpf! — desdenhou Grill, gargalhando de forma afetada em seguida, tentando inutilmente camuflar o nervosismo. — Não mete mais medo em ninguém, garoto — apontou com o queixo na direção do estranho. — Este seu estigma na testa garante isso. Haliax, hã? Por que você não vai tomar no meio deste seu rabo leitoso?

O estranho o deu as costas, displicente. Seguiu em frente, lentamente, ainda de braços cruzados. Parou frente a uma pesada cômoda de carvalho e a impulsionou com o pé, como se chutasse uma bolota de feno. A cômoda seguiu ecoando um barulho estridente e parou em frente a porta, obstruindo qualquer um que pudesse entrar ou sair.

— Seu erro, Grig, é pensar que construí a maior parte de minha reputação com aquilo que era capaz de fazer antes de ser marcado... — e se virou novamente, encarando o vagabundo com um olhar rubro ameaçador.

— Não... me chama de Gri...

— ... Drakcianos possuem muito mais força que um humano. Agilidade nem se fala. Também é comum em minha raça sabermos torturar de um modo que o indivíduo sentirá os efeitos até na próxima encarnação. E não é como se fizesse diferença, mas eu estou armado e você... nu em pelo. Me diz, Grig: está disposto a passar por tudo isso pelo dejeto do Haliax?

— Por que, em todos os malditos infernos possíveis, você acha que eu sei onde ele possa estar? Ninguém sabe merda nenhum sobre Haliax desde que ele fez aquilo com vocês, entendeu, seu bosta?!

A garota ouvia a discussão entre os dois mais tranquila do que se esperaria. Grill estava tão apavorado, com sua total atenção voltada ao estranho, que sequer notou isso.

— Eu estou cansado, Grig. Não tem ideia do quanto eu já vaguei nesse último ano desde aquilo. Ora, quem poderia saber mais sobre Haliax do que seu antigo pupilo? Foi ele quem te apresentou à Doutrina, não foi? — o estranho deu mais um passo à frente, desembainhando um punhal da cintura de forma ameaçadoramente divertida. Grill arregalou os olhos e encolheu-se todo, como um caramujo. — São tão parecidos, tão intrinsecamente ligados, que quando volto e te encontro você está fazendo exatamente o que? Isso mesmo, traindo o próprio bando, assim como seu mentor filho de uma cadela.

Grill meneou a cabeça em negativa várias vezes, como se quisesse acordar daquilo; mas quem disse que era um sonho? Mergulhado em balbucios, tentou se defender.

— Eu não... não sei nada, nada, porra! M-me deixa, cara... Eu... eu não falava com Haliax havia três meses antes dele trair vocês. Agimos em... em pontos diferentes da cidade, você sabe... sabe... 

O estranho balançou a cabeça. Sabia que Grill falava a verdade, sabia que Haliax não daria uma brecha dessas de modo algum. Era esperto demais. Safo demais. Por isso foi um líder. Contudo, nesse meio tempo, ainda queria se iludir. Era tudo o que tinha.

— Por que quer trair a Doutrina, inseto?

— Porque é isso que fazemos, não é, porra?! Somos criminosos! Somos escória! Cada um tira proveito da merda daquilo que tem oportunidade. A Doutrina está acabada! Tanto está que Draenor os mandará para uma missão que dará cabo deles.

O jovem abriu um sorriso condenável, como se houvesse arrancado tudo o que queria de Grill; em seguida disse:

— Acho que você, acabou de dar cabo de si mesmo...

O estranho voltou a embainhar o punhal. Dirigiu-se de rompante até a janela do quarto que dava para uma viela nos fundos do prostíbulo. Escancarou ambas as portinholas e debruçou-se sobre a amurada. Quando voltou para dentro do quarto em corpo inteiro, estava dando suporte a alguém: esse que se segurou na amurada e se impulsionou, revelando-se e sentando-se na janela. Era uma moça.

Ao vê-la, Grill levou as mãos à cabeça, desesperado, derrotado de forma irreversível. Irrefutável.

— Então é este o rato — constatou ela, puxando um pequeno alforje de couro da cintura. Balançou-o, revelando o tilintar de inúmeras moedas e jogou-o na direção do estranho, que o pegou num ágil movimento. — A Doutrina nada mais te deve, Keiv.

— Ah, deve... — Keiv rebateu, sarcástico.

Tentando juntar alguma desculpa inexistente, Grill gaguejou.

— S-syenna... Eu...

— Se poupe, Grig disse Syenna. — Estamos te esperando aqui embaixo. Pode terminar o que estava a fazer — Syenna lançou um olhar para o pênis murcho do antigo parceiro e sorriu de forma escarnecedora. — Não, acho que não. — e saltou da janela.

Foi logo depois que, para completar toda a humilhação que Grill acabara de passar, ele se deu conta que a garota com quem fodeu por tantos meses estava recebendo o dinheiro devido de outra pessoa. Mas por um tipo de serviço diferente, o que não era tão incomum.

— Você!... Sua vagabunda pustulenta!

Grill tentou saltar sobre a garota e recebeu um chute no peito desferido pelo tal Keiv, sendo lançado de volta à cama, todo aberto.

Keiv rapidamente desobstruiu a saída, deixando a garota passar, mas antes disso falou:

— Não se preocupe com retaliação. Ele não voltará aqui. Nunca mais.

Ela assentiu e saiu às pressas, enrolada em um cobertor.

— Acho que não preciso dizer para não esperar o tal sujeito pomposo, não é? E não, eu não esperava que um inútil como você pudesse me dizer onde encontrar Haliax. Só queria te desestabilizar.

Keiv se dirigiu a passos lentos em direção a janela. Passou uma perna para fora e esperou.

— Me condenou, Keiv. — Grill não esboçava reação nem para chorar.

— Se servir de consolo, você não foi o primeiro e tampouco será o último. Deu um gostinho a mais, devo admitir. Seu mestre condenou minha guilda inteira, seu desgraçado! De certa forma, também me condenou — Keiv desferiu um toque com o dedo indicador em sua marca na testa. — O submundo não precisa de ratos como vocês. São todos iguais; uns só se escondem melhor e são mais espertos do que outros, mas todos iguais e, que, no fim, vão para a mesma vala. Eu acharei Haliax, Grig. E quando ele remover isto de mim o jogarei no mesmo buraco em que te colocaram.

Keiv então saltou para fora, sob o céu noturno sem luar.


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Notas finais do capítulo

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