O abismo em todos nós. escrita por Ninguém


Capítulo 9
Capitulo 09




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“ O homem está condenado a ser livre.” – Sartre.

 

— Eu não sei... não sei se sou eu mesmo, não entendo o que está acontecendo comigo... não me lembro o que causou tudo isso. E quer saber o mais estranho? O mais estranho é que não me importo, as dúvidas, o medo se foram... minha mente parece ficar anestesiada todo o tempo, não há mais ansiedade.

Alexandre falava tentando expor em palavras o que sentia, por isso mesmo havia tal dificuldade. Seus sentimentos encolheram, recuaram. A serenidade de suas ações, a simplicidade de suas emoções são constantes agora... não existia mais a agonia de não ser querido ou o pesar de não saber o que fazer.

Agora sua mente vivia em paz e o que ele decidia fazer... simplesmente fazia.

— Estou explicando isto para você para que entenda que de alguma forma, o que vai acontecer é o certo. Não sei explicar como, nem por quê... mas é o que tenho e devo fazer. É de uma certeza insana, eu sei. Mas é o que é.

Alexandre caminhou pelo piso úmido do depósito de arroz abandonado, dobrou os joelhos e retirou a fita adesiva da boca do garoto que suava frio em meio às palavras fácies e dóceis de seu sequestrador. Everton tinha apenas quinze anos e quando voltava para casa após uma festa recebeu uma mensagem de um dos amigos dizendo para encontra-lo em tal rua porque tinham arrumado algumas garotas. Era de noite e estava escuro, a rua deserta sempre suspeita provou-se perigosa quando uma mão com um paninho úmido e cheiro forte apanhou-o pelas costas.

O resto foi escuridão.

Agora o garoto se encontra diante do estranho que não era exatamente estranho. Everton – depois de passado o choque do susto – lembrava de onde tinha visto Alexandre: três dias atrás ele e dois amigos tinham conseguido pegar um gatinho na rua, enterrado seu corpo na caixa de areia do parque do bairro e estavam brincando de tiro a alvo com pedras pra ver quem acertava a cabeça do felino ainda vivo.

O rapaz surgiu do nada, passou pelos três e foi direto ao gatinho, desenterrou-o e o levou sob protestos dos moleques que perderam sua diversão.

— Disseram que seu nome é Everton – continuou Alexandre – quer saber mais uma coisa estranha que anda acontecendo comigo? Eu corro. Simplesmente ponho uma camiseta um short e calço um tênis e saio correndo pela cidade. Eu odiava fazer exercício, agora corro trinta, quarenta km por cada canto do município. Foi quando encontrei você e seus amigos se divertindo com crueldade.

Alexandre se levanta.

— Não me entenda errado, não foi o ato em si que me deixou puto. Mas as emoções que originaram. Seus amiguinhos... de alguma forma eu sabia, eles tem uma mente vazia e facilmente influenciável de modo que o ato para eles não é nada demais. Por isso só precisei dar uma boa surra nos dois, e ameaçar suas vidas colocando a ponta de uma faca afiada bem pertinho do olho para saber, por que eu sei, que eles nunca mais agirão com crueldade perante outro animal.

Alexandre lhe deu as costas e foi pegar uma mochila que estava no chão, mesmo assim continuou falando.

— Preste atenção Everton. De algum modo eu entendi que só precisava imprimir um trauma forte em suas mentes vazias para que os dois moleques aprendessem. Um pouco de dor e a possibilidade do fim de suas vidas foram o bastante para que seus olhares ficassem marcados, agora, se eles veem um cachorro ou um gato tenho certeza de que o trauma e o medo do episódio onde eu os espanco numa ruela qualquer virá imediatamente em suas cabeças; eles correrão dos bichinhos, mesmo que sejam filhotes.

Alexandre volta para perto do garoto algemado a uma barra de ferro.

— Mas com você... não vai ser tão simples.

Alexandre joga a mochila no chão com força e o som de objetos metálicos soam pelo ambiente desolado e abandonado. O neto de Gertrudes dobra os joelhos novamente olhando no fundo dos olhos de Everton.

— Sua mente não é tão vazia quanto a dos seus amiguinhos, ela está preenchida com uma escuridão conhecida... tipo uma sombra que a permeia e influencia em seus atos. Você realmente se divertia jogando as pedras para tentar acertar a cabeça do gatinho... por quê?

Amedrontado e respirando rápido, Everton não respondeu.

— Ah – Alexandre franziu o cenho – certo. Você possui um trauma severo com crueldade... sim... sim... está ficando mais nítido pra mim de alguma forma. O que houve? Mamãe se drogava e te espancava? Papai te tocava em lugares íntimos? Ou talvez fosse o titio?

As lágrimas não paravam de sair de Everton a medida que seu nariz enchia de catarro o fazendo fungar. Alexandre pegou uma faca pequena com a ponta bem fina e ao apontar para o rosto do garoto, disse:

— Você tem só quinze anos, eu tenho dezessete... ambos somos muito jovens para sermos do jeito que somos. Coisas ruins aconteceram comigo, embora eu não lembre.  E coisas ruins aconteceram com você... e tenho certeza de que se lembra.

Não havia como Everton esquecer. Sua mãe arrumou um novo namorado o botando para dentro de casa, este não era um bêbado como os outros nem drogado, mas batia nela e nele estando sóbrio e por motivos toscos.

Esquecer de trancar a porta, não comer tudo o que estava no prato, não limpar a casa direito. As vezes apenas o olhar de Everton para o homem já o deixava puta o bastante para que sua cara fosse estapeada dezenas de vezes até quebrar um dente.

Seu novo padrasto era um homem grande, Everton morria de medo dele. Assim um ódio e frustração enraizaram-se em seu âmago de modo que se ele não descontasse em algo ou alguém sentiria que explodiria. E daí que eram gatos, cachorros ou mesmo as rolinhas do parque? Eram só bichos inúteis, ao bater neles, ao matá-los Everton podia aliviar mesmo que um pouco o desespero que sentia ao saber que teria de voltar para casa e encontrar o mesmo homem desprezível.

— Sim. – disse Alexandre ficando de pé novamente – você é diferente. Vejo pelo seu olhar que se eu simplesmente te batesse, como fiz com seus amigos, não adiantaria de nada, pelo contrário... de raiva você mataria todos os bichos que visse pela frente na inútil tentativa de me fazer mal. – o garoto girou a faca na mão – aí é que está Everton, eu não dou a mínima para animais, é claro que nem por isso eu os machuco. O que me deixa puto mesmo é esse seu olhar, essa podridão que há por trás deles. Sua alma está manchada, ela exala um sentimento negativo tão forte que realmente me deixa bem irritado.

Alexandre olha para o teto.

— Então o que eu faço pra você entender que ao ser cruel com algo ou alguém só por que estão sendo cruéis com você não leva a nada. Pelo contrário, só traz mais dor e sofrimento. Como faço pra quebrar seu olhar e surra sua alma a tal ponto que te force a mudar?

Ele o encara.

— Um personagem que eu admiro, disse uma vez: “dor é o melhor caminho pra disciplina.” – ele aponta a faca para Everton – mas você está acostumado com dor, com terror... logo, como fazer? A resposta é simples.

Alexandre voltou a dobrar os joelhos para que sua visão ficasse no mesmo nível da de Everton.

— Vou te provocar tanta dor, vou afundá-lo em agonia a tal ponto que extirparei seus traumas para te mostrar que: apesar de coisas ruins acontecerem conosco, não vai ser fazendo coisas ruins que elas mudarão. Pelo contrário... só ficarão piores.

Aumentando o choro Everton deixou escapar um pouco de urina olhando para a pequena faca.

— Por favor... por favor... por favor... eu juro, não vou mais fazer isso. Por favor, por favor!!!

Alexandre suspira.

— Suas palavras dizem algo, mas a verdade vem pelo espelho da alma. Seus olhos. E eles não concordam com sua língua.  

O garoto volta a tampar a boca de Everton com a fita adesiva.

— Não se preocupe. Não vou matá-lo, nem pretendo causar danos prejudicais ao seu corpo, eu quero que viva, quero que mude. Assim, eis o que vai acontecer: Vou esfolar seus dedos do meio do pé, só um de cada pé. Não vai prejudicar você andar nem nada parecido... vou apenas esfolar. Dizem que a dor é... – Alexandre assoviou – quando seu sistema ficar entorpecido pelo desespero vou esperar que você me peça para cortá-los fora. Finalmente, quando eu terminar farei um curativo rápido e o levarei para o hospital.

Alexandre pegou no tornozelo direito de Everton.

— Pode me denunciar se quiser, eu não ligo. A única coisa que me interessa é mudar seu olhar, extirpar a escuridão que o faz ser egoísta e cruel. – Alexandre sorriu sem graça – espero que eu faça certo, aprendi a esfolar com uns vídeos doidos da internet. Vamos começar.

***

Alexandre retorna para sua casa ainda ao anoitecer, como prometido, levara o jovem Everton para o hospital a fim de que tratassem melhor seus ferimentos. Levou bem menos tempo para que o garoto pedisse – em meio a gritos, choros, soluços, urina e fezes – para cortar os dedos em carne viva que o neto da juíza havia deixado.

A consciência de Alexandre naquele momento estava em paz, a costumeira paz que o tomou desde o evento da floresta. Torturar um adolescente um pouco mais novo do que ele não foi nada demais e talvez aí morasse o perigo. Será que ele havia se tornado um sociopata? Talvez. Se fosse, sua carreira no mundo do crime seria breve: Alexandre não estava mentindo quando disse que Everton poderia denunciá-lo se quisesse.

Talvez em algumas horas a polícia apareça na porta da casa de Gertrudes, o neto negaria tudo é obvio. A cadeia seria um estranho desperdício de tempo e é o único motivo pelo qual o rapaz não queria ir em cana.

Por que seria tedioso.

Seus conceitos haviam mudado drasticamente, seus sentimentos não eram mais os mesmos. O medo não mais ditava seus pensamentos ou suas ações.

— Onde esteve? – perguntou sua avó ao vê-lo na cozinha.

Alexandre abre a geladeira, pega uma lata de coca-cola.

— Nada demais só torturando crianças. Como a foi sua tarde?

— Sem piadas Alexandre. O psicólogo ligou, perguntou quando você teria um tempo pra ele.

O garoto abre a lata e bebe generosas goladas enquanto a velha tamborila os dedos sobre a bancada da pia.

— Por que um doutor caro que eu estou pagando – Gertrudes foi falando bem devagar observando o neto – e que tem uma longa lista de clientes, ligaria para ver se você tem um tempo pra ele e não o contrário. E por que diabos quando pergunto  o que está havendo com você, a única resposta que recebo é do médico: tudo normal. Tem ido as sessões?

Depois da visita do policial e dos novos hematomas da briga de Alexandre, a juíza enfiou o neto no psicólogo.

— Sim, vó. – ele suspira – fui nas quatro sessões que marcou pra mim nessa semana. E em algum momento das consultas eu estava revelando os traumas contidos no doutor Ezequiel, além de ajudar a trabalhar com eles, já que o cara vem tentando conduzir a si mesmo desde a faculdade... francamente! É tudo uma questão de lógica. Basta olhar para seus sentimentos e entendê-los.

Alexandre faz uma careta.

— Se bem que o cara ter uma tara pela mãe de sessenta e nove anos... é mais problemático do que eu pensava. Se ligar novamente diga que quinta às sete da noite eu tiro uma hora.

Gertrudes escutava e não entendia. Tinha que ser piada, uma brincadeira do neto. Ainda sim os absurdos estavam tão grandes que ela achou melhor não fuçar, poderia ser pior. Como uma experiente mulher da lei, é melhor observar o caso com cuidado.  

— Tem alguém na sala te esperando.

Alexandre franziu o cenho.

— Quem?

— Um delegado de polícia.

Agora o garoto mostrou uma face de surpresa.

— Foi mais rápido do que eu pensava.

— O que quer dizer?

— Nada não.

Ele tomou toda a lata de coca e se dirigiu para a sala. O homem até poderia ser da lei, mas a primeira impressão que Alexandre teve foi de um homem que foi largado pela mulher a pouco tempo e não sabe como viver sozinho: passar roupa, fazer a barba, talvez nem escove os dentes direito.

— Pois não?

O homem era da mesma estatura que Alexandre, e com aquele visual relaxado não demonstrava nenhuma confiança.

— Boa noite. Sou o delegado Mendes da 7° DP de-

— Não preciso de nomes nem de apresentações – declarou o garoto – Qual o propósito de sua visita?

Mendes suspirou, olhou para Gertrudes na entrada da sala e falou de uma vez:

— Precisamos conversar sobre o que houve naquele incêndio. Preciso saber de toda a verdade imediatamente.

Alexandre cruza os braços.

— Parece assustado delegado. Sua determinação está sendo impulsionada pelo medo e pela dúvida... – o garoto balança a cabeça – quer saber sobre o cadáver que estava ao meu lado quando fui encontrado.

Mendes pareceu confuso pela percepção aguçada de Alexandre, de modo que só pôde responder com um aceno de cabeça.

— Lamento. Não me lembro de nada.

— Isso não é brincadeira menino – advertiu o policial – sua avó só permitiu que eu falasse com você por que corre perigo de vida.

Alexandre deu de ombros.

— Jura? Todos morrem um dia delegado. Hoje, daqui a cinquenta anos... é inevitável.

— Já disse que isso não é brincadeira – Mendes ficou sério – aquela cadáver ao seu lado na floresta deve ser alguém muito importante porque há pessoas bem perigosas que querem o responsável morto, e ao que tudo indica... esse responsável é você.


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