O abismo em todos nós. escrita por Ninguém


Capítulo 19
Capítulo final.




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“Tudo o que fizer nesta vida será insignificante. Mas é muito importante que você o faça, porque ninguém mais irá fazê-lo.” – Gandhi.

 

Selenia recuperou parcialmente a força embora a dor do ferimento ainda persistisse. A anja se pôs de pé segurando o ombro machucado enquanto olhava confusa para Alexandre. A incredulidade do ato ainda a desconcertava de tal modo que não havia palavras certas para formar uma sentença e sair de sua boca.

— Parece que está bem. – disse ele – aconselho a voltar ao seu mundo para tratar da perfuração, tentei evitar acertar algum órgão vital, mas talvez possa ter atingido um nervo.

— Alexandre!!!

Lucérius já tinha se recomposto e vinha a passos largos em direção aos dois.

— Vá agora – disse o rapaz para a anja – eu me viro com ele.

Sem dizer nenhuma palavra, ostentando a mesma expressão de surpresa e choque a anja foi se desmaterializando lentamente em luz até desaparecer. Aliviado, Alexandre virou para um Lucérius evidentemente nervoso.

— Sua criança tola! Tem ideia do que fez?

Alexandre não disse nada.

— Garoto – repetiu o anjo caído contendo o tom de voz – ao fazer um contrato de sangue com um anjo, você se liga a ela, isso significa que os alados saberão onde está a todo instante! Eles voltarão para matá-lo.

— É provável.

A calma com que Alexandre disse aquilo surpreendeu Lucérius.

— Está dizendo que vai ficar do lado deles? Se esqueceu que temos um acordo? Eu te ajudei, te ofereci o fim de sua agonia interna em troca de sua colaboração para salvar a humanidade.

Alexandre respirou fundo antes de falar:

— Você disse que centenas de candidatos deram certo... mas e quanto as falhas? Quantas pessoas morreram por simplesmente não passarem do primeiro estágio da semente?

Com a hesitação do anjo, Alexandre continuou.

— Centenas? Milhares? Milhares. Milhares morreram, não foi? Para salvar a humanidade você está sacrificando parte da humanidade – o jovem riu em escárnio – inacreditável, vocês agem pelos mesmos caminhos enquanto gritam que são opostos.

— Um garoto que nem mesmo completou duas décadas de vida não pode entender. Sacrifícios são necessários para atingir um bem maior. Não pense em usar esse tom condescendente comigo, pirralho. Você é quinhentos anos muito novo para me dar lição de moral.

— Não é essa minha intenção. Você luta por uma causa que julga ser certa, para salvar está matando em nome de um ideal. Eu entendo, mas não aprovo. Quanto ao nosso acordo... esqueça. Você me deu a semente, mas em momento algum disse que se eu não passasse para o próximo estágio eu morreria. Você ocultou tal informação porque sabia que eu era um covarde e não arriscaria tomar a pílula se minha vida estivesse em jogo. Um trato baseado em mentiras e omissões não vale de nada.

Lucérius balançou a cabeça na negativa.

— Não seja tolo. Sem minha ajuda você será morto.

— Provavelmente. Eu aconselho que você fique longe de mim, já que os anjos sabem de minha localização isso significa que se ficar próximo... você também será um alvo. E arrisco dizer que é um alvo mais valioso do que eu.

Os dois se encaram em silêncio por alguns segundos até que Lucérius cedeu, deu as costas para Alexandre e antes de desaparecer pela floresta destruída, parou e disse:

— Sabe que irá se arrepender de escolher o lado deles.

— Não escolhi lado de ninguém.  

***

Um mês depois.

 

Alexandre está sentado na mureta de proteção da cobertura de um prédio de apartamentos de trinta andares. Abaixo dele uma longa descida sinuosa que dava direto a um asfalto cheio de carros em movimento. O rapaz não ligava. Gostava da sensação de estar ali, gostava da brisa pura que vinha acima da poluição. Os ventos gélidos pelo dia nublado também eram um deleite se somados ao bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro que comia despreocupadamente enquanto bebia um copo de leite.

Um mês havia se passado desde o fim de uma batalha inacreditável. Alexandre foi interrogado e investigado como possível incendiário que culminou na morte de duzentas e trinta pessoas deixando outras mil com queimaduras variando de primeiro a terceiro grau. No fim, o delegado Mendes veio em seu auxílio pois entendia mais ou menos que gente poderosa estava agindo por detrás dos panos e que não havia como culpar o garoto.

Os enterros também foram uma parte desagradável do mês. Alexandre não pôde ir ao de Catarina porque a suspeita de ser o culpado pela onda de fogo – ainda que não provado – era o bastante para atrair os olhos de rancor de muita gente. Quanto a sua avó,  tratou de cuidar dos mínimos detalhes e dar uma despedida descente a única mulher viva que o amara. Era estranho para ele estar num velório, havia pessoas tristes e algumas outras choravam enquanto ele permanecia inerte com suas emoções. Seja lá o que for que aconteceu, a verdade é que havia perdido parte de sua humanidade.

Se isso era bom ou ruim, Alexandre não sabia dizer.

Os bens de sua avó foram passados para ele, e havia uma pensão gorda que receberia até completar dezoito anos ou terminar uma faculdade. Conforme os dias foram passando Alexandre arrumou um apartamento, se instalou e decidiu terminar de cursar o ensino médio à distância usando professores particulares. Não voltaria a escola. Aegon estaria em crise pela morte de Catarina de modo que descontaria toda sua fúria em Alexandre seja diretamente ou seja usando meios mais sutis.

Em momentos como agora – sozinho diante de um cenário calmo – Alexandre pensava na estranha de capuz. Ele entendia que se fosse só pela semente, estaria morto. Ela de alguma forma o salvou, e não foi de graça.

— O que será que você quer de mim? – perguntou ele para o horizonte vazio.

De repente sentiu uma presença e ao olhar para trás viu Selenia de pé. A anja agora não vestia a armadura de metal e neon, trajava simples roupas femininas. Uma blusa de alça branca, short jeans e chinelos havaianas. Alexandre prestou bem atenção ao ombro esquerdo, lá estava a cicatriz do ferimento que o mesmo causara.

O rapaz fitou a figura que mês passado tentou matá-lo e após alguns momentos disse:

— Seus seios são menores do que achei que seriam.

A mulher de longos cabelos loiros cacheados o ignorou postando-se ao seu lado de pé olhando para as nuvens carregadas.

— Por que me salvou?

— Por que me deu na telha.

Ela o encara com raiva.

— Estou falando sério.

— Eu também. Escute, eu não menti. Não tenho motivos para matá-la, não importa como olhe para o cenário.  

Selenia volta a olhar para as nuvens.

— Eu relatei o ocorrido aos meus superiores. Os arcanjos se reuniram para discutir sua situação.

O garoto devorava um pedaço do bolo sem dar muita importância para o que a alada dizia.

— Ah é? E aí, qual a decisão final dos chefões?

— Decidiram que irão observar suas ações por um tempo, alguns deles acreditam que você pode ser um aliado na guerra que virá. Outros acham que é apenas uma besta sem alma com poder para ameaçar os humanos.

Alexandre não respondeu por que estava com a boca cheia, com a ajuda do leite engoliu a massa açucarada.

— Bom... os dois lados estão errados.

Selenia volta a olhá-lo.

— Como assim?

— Não vou me aliar a vocês na guerra, nem sou uma ameaça aos humanos.

— Quer dizer que é nosso inimigo?

— Não. – ele bebeu outro gole de leite – estou dizendo que escolho meu próprio lado. A meu ver, tanto Lucérius quanto os arcanjos estão equivocados em alguma coisa que ainda não entendi bem. Quando conseguir minha resposta, vou agir.

— Não entendo.

— Nem eu.

Alexandre sabia que tinha uma missão, um objetivo. Aquela figura encapuzada que lhe salvou fez questão de enaltecer isso. O problema é que a desgraçada não disse o que ele tem de fazer! Por isso sua cabeça coça tentando descobrir seu propósito.

— Entenda isso Selenia, não sou inimigo nem tentarei matar nenhum de vocês, ainda que tentem por um fim a minha vida. Por enquanto preciso entender algo... tem um detalhe nessa trama toda que está me escapando, e eu vou descobrir, mas até lá não tomarei nenhuma medida impulsiva.

Ele franze o cenho percebendo a situação, morde com força a mão até perfurar a carne saindo um tanto de sangue e encosta a mão no cimento da mureta.

— Por que fez isso? – perguntou Selenia.

— Você não estava em forma física né, é meio confuso isso. Parece que recebo as informações direto no meu cérebro. Acho que faz parte do contrato.

— Não, digo, não precisava me materializar. Só vim até aqui para conversar com você. Ainda não acredito que salvou um inimigo em pleno campo de batalha.

— Claro que eu precisava materializá-la, senão como você comeria o bolo? Aqui, pegue. Está ótimo. É chocolate belga com cobertura de brigadeiro.

A anja loira pisca várias vezes ainda absorta com o garoto.

— O quê? – perguntou ele – relaxa, meus ferimentos se curam depois de alguns minutos.

— Não é isso. Sabe que um dia podem me ordenar a levá-lo a uma emboscada para matá-lo, não sabe?

— Sim. Assim como sei que não importa o perigo em que você se coloque ou me coloque, eu sempre irei salvá-la.

— Por quê?

Por que só há um modo decente de se viver Selenia: você vive pelo que acha ser o certo. E para mim, salvá-la é o certo, nada mais nada menos. – Alexandre estende a travessa com o bolo cortado – aqui, pegue. Está muito bom.

Com um olhar desconfiado a anja se senta na mureta ao lado de Alexandre, pega o bolo na mão, mas continua olhando para o garoto.

— Você é estranho.

— Legal. Ser normal deve ser chato. – o humano apanha outro pedaço e morde com vontade.

Selenia ainda encara a figura masculina tentando entender alguma coisa, por fim desisti e experimenta a massa achocolatada numa dentada tímida. Ao sentir o sabor sua testa franzi e seus olhos se arregalam.

— Então? – pergunta o garoto com um olhar confiante – gostoso né?

Corando, a anja balança a cabeça na afirmativa enquanto come o restante da fatia sentindo uma pequena felicidade aconchegante em meio à boca cheia.   


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Notas finais do capítulo

Devo agradecer somente a "Entediada". É graças a você que essa fic foi escrita, afinal decidi que postaria um novo capítulo somente se houvesse pelo menos um comentário no anterior. Então, muito obrigado o/. Foi realmente divertido escrever essa história e novamente, ela só foi finalizada graças a você "Entediada" meus sinceros agradecimentos. :)



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