Altahmam escrita por MPrior


Capítulo 1
Listot


Notas iniciais do capítulo

Listot -Do Tcheco "Sentimento de quando alguém imagina o estado de sua própria miséria no futuro e fica agoniado com a possibilidade"



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"Nada é perda de tempo se você usar a experiência sabiamente"

                  - Auguste Rodin

 

 

Esse era para ser mais um fim de semana comum, onde eu dormiria muito tarde na sexta-feira e levantaria sábado de manha para ir ao curso me arrependendo amargamente. Onde decidiria nos últimos minutos antes de dar á hora de saída do curso se esperaria meia hora e voltaria de ônibus ou se voltaria a pé e guardaria o dinheiro da passagem e compraria alguma coisa para comer. Aonde eu chegaria em casa perto do meia dia dormindo em pé e encontraria as crianças brincando no quintal, meu afilhado correria ate mim gritando “ madrinha” e me abraçaria, meu avó estaria sentado em uma cadeira  perto da porta fumando seu costumeiro cigarro ou sentado no sofá da sala vendo um programa qualquer.

Eu tiraria meus fones dos ouvidos e falaria “Cheguei!”. Ele falaria que tava pensando em mim naquele momento mesmo. Minha avó estaria em frente ao fogão, eu falaria “Bênção vó”, entraria no meu quarto  guardaria minhas coisas e ela falaria, “ Fiz maçarão, vai comer antes que esfrie” e eu diria “Daqui a pouco eu como. Minha mãe veio aqui?”e ela me diria que não chegou ainda. Eu sentaria no sofá, quase dormindo lá mesmo, meu avô falaria para ir dormi na cama, eu enrolaria um pouco e iria, cairia na casa e dormiria o resto da tarde. Levantaria quase a noite, perguntaria a minha avó se minha mãe apareceu, ela diria que passou um pouco e não quis me acordar e que domingo viria. Eu comeria algo, tomaria um banho e voltaria pro quarto, talvez minha mãe me ligasse para irmos a algum lugar ou eu entraria na internet e ficaria lá por longas horas até perceber que já estava muito tarde, dormiria e acordaria domingo com minha mãe me chamando para almoçar. Passaria a tarde com ela e inicio da noite, ela iria embora e eu faria alguma coisa ate dar a hora de ver o episodia da minha serie favorita, mexerei na internet ou leria algo e quando percebesse já estaria tarde o suficiente para dormi e começar tudo de novo.

Mas nada disso aconteceu, e nunca mais voltaria a acontecer.

Naquela sexta a família toda foi passear, iriam à casa de um parente em outra cidade e voltariam no sábado de tarde, eu tinha prova no curso que não poderia perder e também não queria ir, então fiquei. Não me importava de ficar sozinha, não ia ser a primeira vez de qualquer forma.

“Ficar” e “sozinha”, numa mesma frase nunca me foram tão aterrorizante em toda minha vida. 

Não dormi tarde daquela sexta, comecei a ver um filme e em algum momento adormeci, acordei no dia seguinte com o computador ligado ao meu lado. A chuva caia forte lá fora. Arrumei-me e fui ao curso, fiz minha prova e esperei a meia hora costumeira ate meu ônibus chegar. Enquanto me aproximava de casa notei uma movimentação estranha na rua, havia um carro de policia, continuei andando, minha musica favorita tocando alto nos meus ouvidos, mal sabia eu que ela se tornaria a trilha sonora do momento mais desesperador da minha vida. Cheguei mais perto e percebi que o carro estava em frente da minha casa, algum visinhos estavam lá e me olhavam de maneira estranha.

Abaixei o volume da musica.

Um policial se apresentou e perguntou meu nome, respondi sem entender nada. Ele me disse que precisamos conversar, fiquei encarando ele e seu parceiro por alguns segundos tentando lembrar se eu havia feito algo que infringiu alguma lei, conclui que não. Então destranquei o portão e os convidei a entrar, guardei minhas coisas e perguntei se queriam algo, me disseram que não e me pediram para sentar. Naquele momento já sentia vontade de vomitar, pensava em mil e umas coisas que poderiam querer comigo e as apaga da mente logo em seguida.

Perguntei se havia acontecido algo, o policial que havia falado comigo trocou um olhar com seu parceiro e então... Me deram a noticia.

Havia acontecido um acidente. A van derrapou na pista, nenhum sobrevivente.

Creio que levei cerca de uma hora para entender as palavras e assimilar seu significado.  Não sei ao certo quando a primeira lagrima caiu, mas depois daquela não me lembro de ter parado de derramá-las por um longo tempo.

Um dos policiais. Não sei qual, minha visão não se focava em nada, me disse algo sobre hospital, não me lembro de ter saído de casa, de ter entrado no carro ou do caminho ate lá.  Logo me via parada em frente a varias macas cobertas com lençóis brancos e fantasmagóricos, tinha noção de uma mão sobre meu ombro, mas não a sentia, meu corpo parecia pertencer a qualquer um menos a mim. Alguém falava comigo, eu não conseguia ouvir, parecia tão longe, eu não entendia nada, sabia que eu estava balançando a cabeça em concordância de algo que não ouvira realmente, e então um lençol foi levantado, e eu esqueci como se respirava.

Creio que por alguns segundos a vida deixou meu corpo e minha alma viajou para algum lugar inóspito e desconhecido. Fiquei encarando aquele corpo que outrora eu chamei de mãe, os lábios que sempre se curvavam em um sorriso diante das minhas idiotices, inertes, brancos pela ausência de vida, os olhos que às vezes me encaravam afetuosamente como se eu fosse louca e me faziam rir, fechados, para nunca mais voltar a abrir. Outro lençol foi levantado, meu estômago se contraiu, suas bochechas que sempre estavam coradas, vermelhas de pura vida estavam pálidas, acima da sobrancelha um corte que já não mais sangrava, seus olhos azuis que tanto invejava e sua voz infantil que sempre corrigia, silenciada para sempre.  Desviei o olhar horrorizado para as outras macas por uma fração de segundos e o mundo caiu sobre mim.

Virei às costas e me arrastei para longe dali, atrás de mim alguém me chamava. Só me dei conta de que estava fora do hospital quando senti minhas roupas molharem. Sentia a água cair forte sobre minha cabeça, era tanta que às vezes invadias meus pulmões já ausentes de ar, respirar nunca mais foi a mesma coisa. O cabelo grudava em meu rosto atrapalhando ainda mais minha visão nublada, mas não tinha forças para tirá-lo de lá, as lagrimas incessantes se misturando com a chuva. Caminhei nem saber aonde ia, minha cabeça dava voltas e voltas alucinantes, eu sentia vontade de gritar, mas não encontrava minha voz em lugar nenhum, eu não me encontrava em lugar nenhum, me sentia perdida dentro de mim mesma. Alguns carros que se ariscavam na tempestade buzinavam para mim, imaginei se estaria no meio da rua ou na contra mão, mas não movi um passo para lado nenhum a não ser para frente.

Só percebi onde meus pés havia me levado quando parei em frente a casa. Paralisei com mão na fechadura do portão e, assombrada percebi que não havia ninguém, absolutamente ninguém lá dentro para me abraçar e dizer que ficaria tudo bem.  Nunca me senti tão desesperada em toda minha vida, eu não encontrava o ar para levá-lo aos meus pulmões, meu corpo dava espasmos sucumbindo a própria dor. Pensei, feliz, que morreria ali.

Mas não aconteceu. Fiquei ali por horas talvez, sentada no chão gelado, a cabeça encostada no portão, o corpo inerte, ate que senti o desespero subindo pelas veias novamente e ameaçando me asfixiar e fazendo meus ouvidos zumbirem loucamente. Levantei cambaleante, encarando tudo a minha volta desnorteada e voltei a caminhar.

Parei em frente de sua casa e fiquei encarando sem saber o que fazer. Eu tinha que chamá-la, mas não lembrava como usava a voz, eu não conseguia encontrá-la. Aquilo só me desesperou mais ainda, meu corpo começou a tremer e dar espasmos, tamanha era a força com que as lagrimas vinham. Respirei fundo, me engasgando com as lagrimas e com a chuva e gritei seu nome. Uma, duas, três vezes. Meus gritos soavam estranhos aos meus ouvidos, parecia o grito de alguém sento torturado, e no fundo era assim que me sentia.

Segundos depois ela saiu pra fora, o cabelo negro, amarado num rabo de cavalo, protegido em baixo de um guarda chuva. Me encarava como se eu fosse louca. Caminhou ate mim com cuidado, e quando abriu o portão me joguei em seus braços, enterrei a cabeça na curva de seu pescoço e chorei. Chorei, chorei e chorei.

Acho que ela me levou para dentro, não sentia mais a chuva sobre minha cabeça. Eu ainda estava agarrada a ela, buscando me apoiar. Alguém perguntava pra ela o que estava acontecendo, não me lembro de sua resposta. Uma toalha foi colocada sobre meus ombros e fui levada até o sofá. Ela me encarava assustada, nunca havia me visto daquela forma. Sua mãe, percebi, perguntava o que tinha acontecido, eu encarava minha amiga, não conseguia falar, cada vez que abria a boca um soluço mais alto que o outro me escapava. Ela se sentou ao meu lado e me abraçou, agradeci mentalmente com toda minha força. Ficamos assim algum tempo, ate que me perguntou o havia acontecido.  “Não tenho mais ninguém. Não tenho nada. Não tenho ninguém, ninguém.” Balbuciei balançando para frente e para trás. Acho que fiquei murmurando isso por horas.

Em algum momento senti água quente sobre minha cabeça, alguém ao meu lado falava repetidamente que ficaria tudo bem. Não me lembro de começar o banho ou terminá-lo, mas me encontrava com roupas secas deitada numa cama. 

Fiquei lá sem noção do tempo, encarando um ponto qualquer, vez ou outra meu corpo balançando com um soluço quando não encontrava o ar. Sentia a exaustão caindo sobre cada partícula do meu ser, antes de meus olhos se fecharem senti minha amiga se deitando ao me lado e segurando minha mão. “Vai ficar tudo bem” ela disse.

Não ia.

Dormi cedo naquele sábado, esperando nunca mais acordar.

Não aconteceu.

 Acordei de manha naquele domingo com minha amiga me chamando, os policiais estavam lá, nunca soube como me acharam, falam algo sobre sentirem muito. Acho que minha amiga soube daquele momento o que havia acontecido porque me encarou com um olhar horrorizado, os olhos arregalados e a boca aberta em espanto. Imaginei se minha expressão espelhava a dela. Ela me abraçou forte, como nunca havia me abraçado antes, meus braços caídos ao lado de meu corpo paralisados ou cansados demais para retribuir.

Os policiais me falara alguma coisa sobre enterro. Encarei-os, aturdida e creio que meu cérebro se desligou.

Alguém deve ter cuidado das coisas. Me recordo de ficar sentada daquele sofá por horas, pessoas se moviam a minha volta, hora ou outra um rosto de materializava na minha frente, me falavam algo que não entendia, em algum momento minhas roupas foram trocadas novamente e alguém segurou minha mão.  

Depois disso não me lembro de nada com clareza. Havia um carro, um lugar com muitas pessoas, sempre havia um par de braços me rodeando, em um canto uma fileira de tudo que eu tinha na vida, não tive coragem de contar quantas caixas daquelas havia, não queria um numero para lembrar, e nem precisava, eu perdi tudo.

Fiquei ali por horas, a mão que segurara a minha ainda estava ali, estava mais quente que a minha, acho que era a única coisa que eu sentia, vez ou outra eu a apertava para me certificar que eu estava viva.

Fui levada a outro lugar, havia muitas pessoas ali também, comeram a falar todas juntas, em sintonia, conjurando meu inferno pessoal em forma de oração. Minha garganta se fechara e meus olhos ardiam, e quando vi que começaram a abaixar as caixinhas com partes de mim o choro rompeu alto, forte e assustador. Acho que gritei, minha garganta ardia, A mão que segurava a minha me soltou e seus braços me rodearam, tentei puxar o ar, mas ele não vinha, meu coração batia alucinadamente.

Mais alguém me abraçou, e outro e mais par de braços, eu sabia quem eram, convivi com elas os últimos sete anos de minha vida. Me falavam que eu não estava sozinha, que eu as tinha.

 Elas não entendiam, ninguém entendia...

Me tiraram de lá, voltei para a casa dela. Alguém me fez comer, não havia gosto, sentia  descendo pela minha garganta e se alojando no meu estomago. Voltei pra cama, a mão ainda segurava a minha. Agradeci a ela, acho que sua mão foi o que me prendia a vida e me separava da loucura.

Fiquei deitava lá, encarando, o quê, eu não sabia ao certo.

 Percebi que já estava tarde e já vivera o suficiente naquele dia. Dormi, para começar o tormento todo novamente.

Acordei atordoada, alguém espancava minha porta. Abri os olhos desorientada, olhei ao redor e espantava percebi que estava em meu quarto. Continuavam a bater na porta. “Não vai ao curso?” Escutei a voz de minha avó, pensei que finalmente havia enlouquecido. “Vou!” Respondi automaticamente.

Permaneci deitada por algum tempo, encarando o teto. E com um sopro de vida percebi que tudo não passara de um sonho, um tormento de sonho.

Esse era para ser um fim de semana comum, mas cada segundo me foi especial e único.

“Ter” e “Alguém” numa mesma frase nunca teve significado tão grande em toda minha vida.


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Notas finais do capítulo

Apenas um sonho angustiante que tive que colocar em palavras.



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