The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 52
Capítulo LII - 30 de Junho de 1873




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Avançando por um dos muitos caminhos ladrilhados que seu jardim lhe proporcionava, a jovem rainha tinha esperança de que o ar puro amenizasse seu mal-estar, permitindo que fizesse ao menos uma refeição decente por dia. Evangeline disse-lhe que suas reações eram demasiadamente exageradas, pois Katherine sentia-se indisposta em situações tão pontuais que duvidaram de sua gravidez até que o crescente volume debaixo das camadas de seus vestidos tornasse sua condição inconteste. “Acredito que minha mãe tivesse bem menos problemas para lidar em seu tempo”, ponderou enquanto se dirigia até a lateral oeste de sua morada.

Passando debaixo da janela de seu gabinete, a menina olhou para cima e de imediato sentiu saudades da quietude de algumas semanas atrás. Desde a divulgação de seu estado atual, Edgar conseguira a proeza de superar sua governanta no que dizia respeito ao zelo excessivo. Certificava-se de que estava se alimentando adequadamente, tentava evitar que ela subisse ou descesse escadas em demasia e nem mesmo permitia que se abaixasse para apanhar qualquer coisa que caísse no chão. Até suas caminhadas não eram vistas com bons olhos, mas depois de vê-la esbravejar com irritação que não seria prisioneira em seu próprio castelo, o Duque absteve-se de tecer comentários sobre seu mais novo hábito. Ele tinha a melhor das intenções, sabia disso, mas era preciso estabelecer um limite para que aquela criança não a levasse a loucura antes mesmo de nascer.

Phillip, por alguma razão que lhe era desconhecida, parecia partilhar da postura e dos pensamentos protecionistas de seu consorte. O rapaz estava sempre um passo à sua frente nas diligências diárias, deixando para ela apenas os deveres estritamente necessários e indelegáveis. À princípio, tentaram impedi-la de comparecer aos eventos que requisitavam sua presença, induzindo-a a enviar seu Secretário Real para representá-la nestas ocasiões.  “Estou perdendo minha cintura, não a minha habilidade de governar”, ela retrucou com aborrecimento, decidindo que o apelo estava fora de questão. No entanto, seu consorte somente sossegou depois de fazê-la prometer que não se deslocaria para lugar algum além dos limites de Odarin.

A lembrança lhe remeteu à inusitada companhia do jovem Chevalier. Os dias avançavam rapidamente e podia testemunhar seu empenho crescer de maneira exponencial, preenchendo-a com o sentimento de gratidão por ter alguém tão leal e verdadeiro ao seu lado. No entanto, havia algo de diferente em seu comportamento e, mesmo desconhecendo os detalhes daquilo que o atormentava, sabia que aquele olhar vago representava um amor perdido, pois há muito tinha presenciado a mesma expressão no rosto de Edgar durante anos devido ao desaparecimento de Anya. Com cautela, a menina tentou abordar o assunto algumas vezes, mas nunca conseguia chegar ao fim de sua fala, pois Phillip não revelava nada que pudesse lhe dar subsídios para tanto. “Ele não deseja ser consolado, tudo que quer é sofrer em silêncio e permitir que o tempo apague as mágoas que marcaram seu coração”, concluiu em sua última tentativa, temerosa de sua insistência pudesse aborrecê-lo. Em suas preces diárias, ela jamais se esquecia de rogar pelo seu bem estar.

— Sarah? Não deveria estar em quarto, repousando?

O tom brando de Jacques a despertou de seus devaneios e sua atenção rapidamente voltou-se para a figura de seu pai, que tinha a face parcialmente coberta por um modesto chapéu de palha para proteger o rosto já tão castigado pelo sol e pelo tempo.

— Não comece você também — ela pontuou com um ar de irritação contido em sua voz. Havia questões demais pendentes de resolução que necessitavam de sua atenção. Além disso, não permitiria que lhe dirigissem olhares indulgentes por conta de sua condição transitória, assim como pretendia mostrar ao Conselho das Famílias Fundadoras que seria tão eficiente durante sua gravidez como em qualquer outro momento de sua vida. — Não estou enferma para ficar reclusa em minha cama o dia inteiro.

Exatamente como sua mãe”, o jardineiro constatou com um meio sorriso cruzando seus lábios. Seus olhos se abaixaram distraidamente e o servente percebeu que a muda de hortênsias que trazia consigo era do mesmo azul suave que estampava o vestido da jovem rainha. Rodeando a figura da menina, ele tomou a liberdade de adornar o delicado penteado que usava com algumas das flores, na esperança de que o gesto pudesse amenizar os ânimos.

— Atencioso e gentil, como de costume — ela pontuou, aproximando-se de seu reflexo estampado numa das janelas para verificar o resultado, do qual ela havia gostado muitíssimo. — Eu gostaria poder dar-lhe alguma atenção. Ao menos Elliot tem condições de fazer isto por mim.

O comentário despretensioso levou uma sombra de seriedade ao semblante tranquilo do servente, lembrando-o de questões que precisava tratar com a menina. O diário de Katherine revelava detalhes não só de sua própria vida, mas também das pessoas que com ela conviviam. Discrição não estava entre as qualidades da antiga rainha e alguns de seus relatos deveriam permanecer ocultos.

— Na realidade, ele não estará conosco por muito tempo. — O comentário fez com que Sarah arregalasse os olhos, com uma expressão de pânico estampada em seu semblante. — Elliot está deixando o castelo para assumir uma vaga em Hallbridge, numa fazenda de criação. Ele irá partir ainda hoje, para ser mais preciso.

O coração da jovem rainha acelerou de imediato. Não precisou de muito para que as informações se cruzassem em sua mente e percebesse que o jardineiro se referia ao empreendimento da Família Lewinter. De repente, um gosto amargo tomou conta de sua boca e ela sentiu as náuseas de antes retornando com ainda mais intensidade.

— Ele não pode simplesmente abandonar seu posto dessa maneira — retrucou com indignação. — Eu não admito que tais coisas aconteçam em minha residência sem que eu tome conhecimento. Quem lhe deu autorização para tanto?

— Evangeline. — A entonação de Jacques demonstrava o quão óbvia era a resposta para aquele questionamento. — Como governanta, ela é a pessoa responsável por todas as questões domésticas do castelo.

— Mas nada me foi dito sobre isso! — Sua revolta era quase palpável, fazendo-a desejar uma almofada ao alcance de suas mãos para que pudesse esmurrar e atirar para longe. — Elliot deveria ter me comunicado, eu jamais poderia imaginar que ele estivesse insatisfeito com seu trabalho aqui.

— O que esperava, que ele ingressasse no castelo e requisitasse uma audiência com a Rainha? — O jardineiro temeu que sua intervenção tivesse sido demasiadamente impertinente, pois tendia a se esquecer de que estava falando com a própria Rainha. No entanto, ao vislumbrar a expressão reflexiva que surgiu em seu rosto, ele soube que havia dito a coisa certa, uma vez que a menina parecia estar completamente alheia ao fato de que sua presença era o que motivava a partida do tratador de cavalos. — Além disso, você tem questões muito mais importantes para tratar do que os criados que compõem sua morada.

— Nós precisamos conversar — Sarah mencionou, demonstrando bastante convicção em sua decisão. Havia um assunto pendente para tratar com ele já há várias semanas, mas os compromissos e obrigações oficiais vinham consumindo todo o seu tempo, de modo que ainda não tivera oportunidade de dizer-lhe aquilo que pretendia. — Onde ele está? Espero que não seja tarde demais.

— Nos estábulos, como sempre, despedindo-se de seus companheiros de toda uma vida — Jacques pontuou, ainda sustentando o mesmo semblante sério de antes. Seu coração estava cheio de aflição e ele via naquela partida uma oportunidade para o rapaz recomeçar, longe das mágoas do passado. O servente teve diversas chances de deixar o castelo ao longo de sua vida, mas o mero prospecto de abandonar as memórias de Katherine e largar a pequena Sarah vulnerável à manipulação de Allen e a rigidez inflexível de Evangeline era algo impossível de ser cogitado. O tratador, por outro lado, não tinha as mesmas amarras a que se apegar. — Mas se me permite fazer-lhe uma recomendação, peço que não revele nada do que descobriu através do diário de sua mãe.

A jovem tornou um olhar incrédulo em sua direção, sem compreender as razões por trás daquele pedido inusitado. Há muito ela tencionava revelar para o rapaz tudo aquilo que chegara ao seu conhecimento. Elliot poderia ter muitos defeitos, mas jamais deixaria de ser uma pessoa de sua mais alta confiança.

— Como pode me pedir algo assim? Estamos falando de sua própria origem, é claro que ele merece saber. Você não conhece a angústia de desconhecer a si mesmo, crescer sem qualquer referência em que se apoiar.

O tom empregado trazia resquícios de mágoa e indignação, fazendo o jardineiro sentir-se intimamente culpado, muito embora nada pudesse ser feito para mudar suas escolhas do passado. Por bem ou por mal, Sarah teria de aprender a conviver com aquilo.

— Eu sei disso, mas merecer não é o mesmo que precisar — ele retrucou com mesmo tom paciente, que dificilmente se deixava abalar. — Elliot jamais fez qualquer questionamento sobre este assunto e trazer a verdade à tona agora apenas irá magoá-lo ainda mais. Não há qualquer necessidade de perturbar seu espírito com aquilo que já não pode ser consertado. Você deve imaginar que uma revelação dessas gerará muito mais que um mero aborrecimento.

— Eu não concordo com nada do que disse — ela retrucou de imediato, com um ar insatisfeito. Havia uma nota de austeridade em suas palavras, fazendo-o constatar que não estava diante de sua menina gentil, mas sim de uma Soberana que não gostava de ser contrariada. — Mas eu irei respeitar o seu desejo. Ainda assim, eu continuo lhe devendo ao menos algumas palavras de despedida.

Com um discreto aceno, ela afastou-se com passos apressados, na direção de seus estábulos, enquanto sua mente revivia de maneira breve, ao mesmo tempo que intensa, algumas das memórias que haviam construídos juntos naquele mesmo jardim.



Depois de tantas horas sentado dentro da cabine de sua carruagem, o jovem Chevalier experimentou uma genuína onda de alívio ao desembarcar. No entanto, a visão diante de si não era nada animadora e seu único desejo no momento era retornar para o castelo o mais rápido possível.

Havia muito tempo desde a última vez que estivera em Hallbridge e pelo que podia observar, o local pouco se desenvolvera ao longo dos anos. No centro da cidade, as ruas ainda eram de terra batida e as construções robustas como uma fortaleza não transmitiam elegância alguma em sua estrutura. As pessoas, em sua maioria, usavam trajes simplórios e tudo ao redor parecia exalar o odor incontestável de peixe fresco. O território recentemente anexado aos domínios de Odarin representava o exato oposto de Greenwall, um reino que vivia no auge de seu desenvolvimento e que aparentava estar dez anos à frente do restante do continente. “Meu único consolo está no fato deste ser um território aliado”, concluiu com certa resignação.

O pensamento resultou num arrepio e ele buscou recobrar a compostura enquanto encarava os próprios sapatos, polidos com tanto esmero e que logo estariam cobertos de poeira. Em regra, ele costumava deixar as reações nervosas para a jovem rainha, mas desde sua audiência com o Rei Alastair, sentia que não estava em seu melhor estado de espírito. Buscava evidências para convencer a si mesmo de que o monarca ambicioso não cederia ao desejo de vingar-se por sua impertinência ou por ter tido seus planos frustrados. Ainda assim, flagrou a si mesmo dedicando-se à leitura de ensaios e estratégias de guerra em seus momentos ociosos.

Na tentativa de afastar suas conjecturas fatalistas, o rapaz ergueu os olhos para a estalagem à sua frente, ponderando se deveria entrar ou não. Pelo que fora informado, ali teria a estadia mais próxima daquilo que compreendia como conforto, ainda que sua avaliação prévia lhe desse indícios do contrário. Não havia muito a se fazer, pois diante da atual condição de Sarah, passava a ser sua a responsabilidade de representá-la em seus compromissos, para que ela não fosse obrigada a se locomover por longas distâncias.

Com um suspiro cansado, seus pés se moveram quase que por instinto, guiando-o até o interior do recinto. Suas preferências pessoais eram irrelevantes quando havia um bem maior em jogo; no dia seguinte, seria realizada uma reunião com o Governador de Hallbridge junto a Alta Patente da Marinha, no intuito de revelar o estratagema protagonizado pelo monarca de Greenwall e saber se Odarin poderia contar com o seu apoio militar. Talvez estivessem fazendo alarde em demasia, mas o Secretário Real tinha optado por pecar pelo excesso a deixar seu próprio reino desamparado.

— Um quarto para uma noite e que seja o mais tranquilo possível — ele pontuou enquanto lançava um olhar reprovador ao grupo de beberrões que jogava cartas na área destinada às refeições enquanto conversavam escandalosamente. Sabia que aquele seria um pedido difícil de atender, mas não lhe custava nada tentar. — Precisarei que alguém transporte minha mala, está com o cocheiro do lado de fora.

A senhora contou as moedas de prata que recebeu e logo em seguida esboçou um gesto com a cabeça para um rapaz encostado numa viga, que estava compenetrado em tirar alguma coisa debaixo das unhas. Em seguida, ela mesma se encarregou de mostrar o quarto ao novo hóspede, recitando as instruções e regras do estabelecimento num tom monótono.

Depois de ver-se sozinho, o jovem Chevalier constatou que a acomodação, apesar de humilde, era limpa e razoavelmente distante do barulho. “Não tão ruim quanto eu havia imaginado”, concluiu enquanto sentava-se na beirada da cama, sua atenção voltando-se para a única janela. Ao que lhe parecia, era dia de mercado e boa parte da população tinha deixado o conforto de suas casas para tentar uma barganha.

A imagem fez com ele se recordasse de sua camponesa, que era uma frequentadora assídua de feiras como aquela. Olhando para os transeuntes, ele imaginou se Delia estaria entre eles e, após alguns instantes, o questionamento assumiu uma nova forma, desta vez externando os anseios de seu coração: “Será que ela está tão infeliz quanto eu?”. Um meio sorriso amargo cruzou o seu rosto e ele esfregou os próprios olhos, na tentativa de afastar aqueles pensamentos. “Decerto que não”.



Parada diante da porteira dos estábulos, Sarah hesitava como nunca antes. Aquele sempre fora seu refúgio favorito, mas, depois de tanto tempo desde a última vez que estivera ali, sentia-se como uma intrusa inconveniente.

Elliot estava do outro lado. O rapaz costumava ser resoluto em seus posicionamentos e se tinha decidido deixar sua vida pretérita para trás, então nada do que dissesse seria capaz de fazê-lo mudar de ideia. Momentos antes, Jacques pediu-lhe que não revelasse aquilo que havia descoberto através do diário de sua mãe e, mesmo a contragosto, ela acatou seu desejo sem discutir. “O que tenho para lhe dizer, afinal de contas?”, pensou com um ar de completa infelicidade. “Que não desejo vê-lo partir? Ridículo, jamais poderei fazer uma exigência dessas”.

Suspirando profundamente, a menina percebeu que de nada adiantaria ensaiar suas palavras, pois se esqueceria de tudo logo que estivesse à frente dele. Disposta a deixar que seu coração falasse sem amarras, ela empurrou a porteira, permitindo que a luz do dia invadisse o local.

As baias estavam bem polidas e boa parte dos animais tornaram os olhos para ela. Alguns aparentavam estar especialmente animados em vê-la, pois balançavam o pescoço e soltavam relinchos empolgados. Cada um foi devidamente agraciado com um sorriso tenro e um afago, à exceção do cavalo negro de seu falecido irmão, que a encarava com um olhar de desconfiança tão semelhante ao de Allen que chegava a lhe dar arrepios.

Escorado na portinhola de Celeste, o tratador a encarava com um olhar distante, absorto em pensamentos. Aproximando-se, ela constatou que seus cuidados foram bem sucedidos e os ferimentos da égua haviam cicatrizado por completo.

— Recorda-se de quando éramos pequenos e prometemos que ficaríamos sempre juntos? — a jovem rainha disse ao seu lado, com a voz envolta numa amabilidade destinada a poucos.

— Naquela época, éramos apenas duas crianças ingênuas — respondeu com um ar de indiferença, só então atentando-se para a presença da menina. — Está na hora de esquecermos disso.

Aquelas palavras, proferidas com tamanha dureza, a feriram tal como um tapa faria. Mesmo que já tivessem perdoado um ao outro, podia sentir que persistiam resquícios de mágoa em seu coração. Ela faria qualquer coisa que estivesse ao seu alcance para vê-lo feliz e só então compreendeu a motivação de seu amigo. Ele precisava partir em busca da felicidade, longe de tudo aquilo que o fizera sofrer. “Longe de mim, para ser mais específica”.

Ciente de que provavelmente não teria outra oportunidade, Sarah deixou os questionamentos e a hesitação de lado, avançando dois passos enquanto estendia a mão, no intuito de afagar o rosto de Elliot com ternura. Sua reação foi um olhar de espanto e, logo em seguida, um baixo gemido frustrado.

— Por favor, não torne isso mais difícil do que já é — ele murmurou num tom de súplica. Mesmo que quisesse, não seria de repelir a mão da menina, tão suave e delicada que parecia drenar sua vontade própria.

— Eu não fui capaz de lhe proporcionar tudo aquilo que merecia — disse de maneira apologética, sem deixar de acariciá-lo nem por um minuto sequer. — Me perdoe por isso. Ainda assim, eu verdadeiramente desejo que seja feliz com o caminho que escolheu.

O tratador de cavalos sentiu a tensão dos músculos se desfazer diante daquelas palavras. Perceber que não tencionava impedi-lo, mas sim encorajá-lo, fazia com que seu coração saltar uma batida e os dedos formigarem. Nada poderia machucá-lo mais do que aquela sensação de impotência, presente todas as vezes que se viam. Estava a um passo de distância, tão próxima de suas mãos, mas não lhe era permitido tocá-la. Cresceram juntos, mas o passar dos anos apenas aumentou a distância entre suas realidades. Agora, ela estava longa demais para que pudesse alcançá-la.

— Esse será o nosso adeus? — Sarah murmurou, sentindo a voz vacilar pela primeira vez desde que entrara.

— Jacques me ensinou que não existem "adeus", apenas "vejo você em breve" — ele respondeu de imediato, descartando a indiferença de antes, utilizando um tom ameno em substituição.

A menina sorriu timidamente e seu gesto foi prontamente retribuído rapaz a sua frente. Imediatamente, se recordou de que nada era para sempre, nem mesmo despedidas como aquela.

— Neste caso, vejo você em breve.



O olhar atento do Secretário Real examinou as prateleiras uma a uma, buscando algo que pudesse lhe servir de distração. Bastou uma hora de reclusão na estalagem para que se sentisse tão angustiado como um pássaro numa gaiola. Precisava caminhar, sentir um pouco de ar fresco, ler qualquer coisa para dispersar os pensamentos ruins. Quando, porventura, afastava sua mente das anotações meticulosamente preparadas para a reunião do dia seguinte, a imagem de Delia surgia diante de si, enquanto seus ouvidos recordavam-se de seus diálogos pretéritos.

Mas Phillip não queria ver nem ouvir. Tudo que desejava era livrar-se daquelas memórias incômodas que apenas serviam para relembrá-lo como seus dias estavam incompletos desde que se afastaram um do outro. Temeroso de que estivesse atingindo um estágio avançado de loucura ou demência, ele rapidamente lançou-se nas ruas em busca de algo para tranquilizá-lo. Para sua infelicidade, logo constatou a brisa marítima não era capaz de amenizar o calor provocado pelo sol escaldante e a lembrança de que o verão estava apenas começando o levou a buscar um outro local que pudesse lhe servir de abrigo. Em instantes, um antiquário requintado surgiu em seu campo de visão como um oásis no meio do deserto.

Esgueirando-se entre as estantes abarrotadas de objetos antigos e empoeirados, o jovem Chevalier tentava animar a si mesmo em meio a busca por algum item que lhe despertasse o interesse. No entanto, tudo que via era lixo e velharias sem valor. “Como se um tesouro perdido fosse saltar diante de meus olhos num lugar como esse”, concluiu com descrença, pondo de volta na prateleira um artigo de decoração com resquícios de mofo. “Eu só espero que esse dia acabe logo”.



Pela primeira vez desde seu retorno para Hallbridge, Anya finalmente teria a oportunidade de ir ao mercado reabastecer as provisões de sua morada. O mero prospecto de uma ocupação para preencher suas intermináveis horas vagas a levou a cantarolar animadamente enquanto se arrumava, algo que não fazia há muito tempo. Optando por um de seus vestidos floridos e um chapéu de abas largas para protegê-la do sol intenso, tinha certeza de que aquele seria um dia excepcional se comparado aos demais.

Pela brisa fresca e o cheiro de maresia que se intensificava a cada passo, sabia que o comércio estava cada vez mais próximo. Estrategicamente situado ao lado do porto, era possível encontrar especiarias e matérias-primas vindas de outros reinos ou até continentes. Mesmo aqueles que não tinham muito para gastar se divertiam ao explorar tamanha variedade de objetos e cores.

Sua chegada revelou que seu pressentimento de um dia atípico encontrava-se parcialmente correto. Habituada ao anonimato de Odarin, foi impossível ignorar os olhares espantados e os cochichos que vinham de todos os lados. Como todo pequeno povoado, as pessoas adoravam fazer especulações descabidas que davam azo a um falatório incessante. Considerando-se ainda a popularidade e visibilidade de seu pai, não era de se espantar que seu retorno tivesse gerado tamanho rebuliço.

Na medida em que avançava, os comentários se somavam atrás de si, na forma de um burburinho incômodo. A maioria era incompreensível aos seus ouvidos, mas alguns falavam alto o suficiente para que ela pudesse ouvi-los. “Achei que estivesse morta”, comentou uma senhora para o marido que a acompanhava. “Soube que desapareceu por conta de uma dívida, fugiu para enganar os credores”, pontuou um pescador com o colega sentado ao lado. “As cortesãs sempre retornam para suas mães quando se frustram com o caminho que escolheram”, disse uma idosa antes de dirigir-lhe um olhar severo.

Cada história que ouvia conseguia ser mais estapafúrdia do que a anterior e nenhuma sequer chegou perto da realidade vivida por ela. Ninguém jamais imaginaria seu sacrifício, pois era muito mais fácil julgar e condenar do que ouvir e compreender. Além disso, tendo as ameaças que a mantiveram distante sido protagonizadas por um membro da Família Avelar, a mais rica e influente de Hallbridge, jamais acreditariam em suas palavras mesmo que tivesse provas concretas para corroborar o que dizia. “Quem se importa com eles”, pensou com irritação, sentindo as bochechas arderem de raiva. Tentava abstrair os sussurros que a acompanhavam enquanto enchia sua cesta com aquilo que lhe interessava, pagando os vendedores sem dizer-lhes nada além do necessário.

Num determinado ponto, as versões tornaram-se ainda mais fantasiosas e maldosas. Esforçava-se para não chorar diante de certas barbaridades que escutava e só então recordou-se de sua honorável rainha. Mesmo diante das críticas e olhares reprovadores, Sarah mantinha o queixo erguido, o semblante sereno e não permitia que ninguém a olhasse de cima para baixo. Admirava sua força e pensar no fardo suportado pela menina fazia com que criasse forças para carregar o seu próprio.

Tinha quase tudo que precisava em mãos e tendo seu passeio sido arruinado pelos abutres que regozijavam-se de seu retorno misterioso, tudo que desejava era um local para se abrigar até o sol estivesse mais brando e ela pudesse retornar para a segurança e o isolamento de sua fazenda. Caminhando com passos apressados, a camponesa adentrou inadvertidamente numa viela e o antiquário da cidade surgiu diante de si. O estabelecimento estava sempre aberto independente dos demais eventos da cidade e ficava invariavelmente deserto nos dias de mercado, onde as iguarias e os navios pomposos consistiam numa atração muito mais interessante do que as mesmas velharias de sempre. “É perfeito, ao menos aqui não serei incomodada”, concluiu com uma ligeira sensação de alívio tomando conta de seu semblante.

O dono da loja encontrava-se compenetrado demais na tarefa de restaurar um relógio de bolso para erguer o rosto quando Anya ingressou no local. Murmurando um “bom dia” desatento, seus olhos mantiveram-se abaixados e ela sentiu-se grata por isso. Costumava ir ali na companhia de seu pai quando era bem pequena. Havia itens novos sobre as prateleiras, mas algumas coisas permaneciam no mesmo lugar em que sempre estiveram, como um abajur com vitrais coloridos e a pintura de uma revoada de pássaros seguindo em direção ao pôr do sol.

Uma caixinha de música repousava sobre uma das muitas estantes e lhe chamou a atenção. Estava bastante empoeirada e tinha dúvidas se ainda era capaz de produzir algum som. Tomando-a em mãos com um ar de curiosidade, ela tentou girar a manivela que acionaria a música, mas estava emperrada. Analisando-o por outros ângulos, concluiu que seria difícil fazê-la funcionar outra vez enquanto estivesse num local tão escuro. Caminhando em busca de uma janela, em momento algum a jovem tirou os olhos do objeto que tinha em mãos, tateando-o até encontrar uma minúscula trava.

— Achei você — ela murmurou para si mesma e quando esteve prestes a empregar uma nova tentativa, seu rosto chocou-se contra as costas de alguém. Recuou dois passos, buscando recobrar o equilíbrio e apressou-se em se justificar. — Perdoe-me por minha distração, eu estava tentando consertar isto.

Aguardava ansiosamente pela aceitação de suas desculpas, mas tudo que recebeu em resposta foi um olhar gélido do filho mais novo do Barão Chevalier. De imediato, ela sentiu o chão desaparecer debaixo de seus pés e um misto de sensações tomou conta de si. Seu coração pulsava aceleradamente e suas mãos começaram a suar, de modo que precisou segurar a caixinha de música com mais força para que não escorregasse entre seus dedos. Que ele estaria fazendo ali?

O rapaz segurava um livro de páginas amareladas e numa fração de segundo, fechou o volume e devolveu-o ao seu local de origem na estante à sua frente. Estava prestes a se retirar sem dirigir-lhe uma única palavra até ser interrompido pelo apelo da camponesa.

— Espere um pouco! — Sua voz esganiçada despontou entre a quietude do estabelecimento e tudo que conseguiu com aquilo foi um outro olhar indiferente. Ele não podia imaginar como aquelas expressões a machucavam internamente. — Não vá embora assim, nós precisamos conversar.

— Não tenho nada para tratar com você — Phillip retrucou de imediato, sentindo uma vontade urgente de sair dali. Era difícil manter sua mente nos eixos quando partilhava o mesmo ambiente que ela e a última coisa que desejava era se exceder novamente, tal como em seu último encontro.

— Eu não pretendia magoá-lo! — Havia uma angústia crescente tomando conta de si e todas as vezes que via os pés do rapaz movendo-se na intenção de levá-lo para longe, seu coração saltava uma batida. Não podia simplesmente desperdiçar aquela oportunidade.

— Você o fez mesmo assim — devolveu com ferocidade, o olhar sério atuando quase como uma súplica para que ela o deixasse partir. — Um simplório pedido de desculpas não reverterá essa situação. A escolha foi inteiramente sua, ao menos tenha nervos para suportar as consequências disso.

O jovem Chevalier deu-lhe as costas mais uma vez e afastava-se com passos largos. Uma onda de pânico tomou conta de Anya, deixando-a desesperada, sem conseguir imaginar o que poderia fazer para amortizar seus próprios erros. Uma ideia absurda lhe veio em mente e estava longe de ser a saída ideal para solucionar aquele problema. No entanto, o rapaz se aproximava cada vez mais da porta, deixando-a sem tempo suficiente para pensar em algo melhor.

— Mas o que…

— Eu não espero que compreenda ou que acredite em mim, mas precisa ao menos ouvir o que tenho para dizer. — Com os braços firmemente presos em torno de sua cintura, a camponesa o abraçava por trás, na esperança de que isso pudesse mantê-lo quieto por um instante, enquanto dizia-lhe tudo aquilo que pretendia. Na posição em que estava, poderia ser facilmente repelida com uma cotovelada, mas sabia que Phillip jamais ergueria um único dedo contra ela. Corroborando com seu pensamento, o Secretário limitou-se em manter os braços ligeiramente erguidos, como um gato incomodado que tenta se livrar dos toques inconvenientes.  — Eu o magoei, estou ciente disso e saiba que sinto muito por todo o mal que lhe causei. Minhas más escolhas, assim como meu cego instinto de autopreservação fizeram com que eu machucasse muitas pessoas. Não me orgulho disso, muito pelo contrário, mas depois do que me aconteceu, tive muito medo de expressar o que sentia e ser enganada novamente.

O rapaz manteve-se imóvel, temeroso de que qualquer movimento brusco pudesse machucá-la. Pôr as mãos sobre os ouvidos seria demasiadamente infantil, não lhe restando outra opção senão escutar seu apelo até o fim. À princípio, não pretendia dar qualquer crédito às palavras da camponesa, mas aquela breve mensagem foi responsável por despertar uma espécie de empatia, há muito adormecida dentro de si. O peso das decisões equivocadas e o medo de se expor eram questões com as quais já estava habituado. Meses antes, um equívoco seu quase custou a vida do Duque de Odarin e sanidade da jovem Rainha. Ele se culparia eternamente por aquilo, mesmo que Sarah o tivesse perdoado, tendo até mesmo o recebido em seu castelo novamente. Pensar naquilo fez com se mostrasse menos resistente para o que viria a seguir.

— Você não pode apagar os erros do passado — ele murmurou em resposta, ciente de que aquelas palavras serviriam para os dois. De maneira similar, Phillip também tinha episódios que gostaria de não ter protagonizado, uma mancha que ficaria marcada em sua história para sempre.

— Mas já não há nada que me impeça de acertar no futuro — Anya retrucou, recobrado a calma de antes. Enquanto reunia coragem para sua próxima fala, a jovem repousou uma das bochechas sobre o dorso Secretário Real, temerosa de que aquela pudesse ser sua última oportunidade de estar ao lado do rapaz solitário por quem ela nutria tanto afeto. — Eu estou pronta para arriscar meu coração mais uma vez. Só me resta saber se está disposto a fazer o mesmo.

O silêncio imperou no interior do antiquário, enquanto Philip ponderava aquilo que acabara de escutar. Seus batimentos pareciam estar alucinados diante daquela proposição, mas como de costume, a racionalidade tinha o condão de frear seus desejos imediatos. Eles eram os mesmos de antes, não havia como aquela interação ter um resultado diferente do anterior. Mesmo ciente disso, por que aquelas palavras lhe soaram tão convidativas? Por que ele se sentia tão inclinado a aceitar, ainda que as consequências pudessem ser igualmente desastrosas?

Num determinado momento, sua mente começou a latejar diante de tantos conflitos e controvérsias. Ao que lhe parecia, permanecer em reflexão não o levaria a lugar algum. Além disso, ele precisava dar uma resposta àquele questionamento velado.

— Faça a gentileza de me soltar, sim?

Aquela singela frase, dita com um ar impassível, sem que houvesse qualquer emoção contida em sua voz era a resposta que Anya temia, mas também a que já esperava. “Certas marcas não podem ser apagadas com tanta facilidade, afinal de contas”, concluiu com tristeza estampada em seu semblante. Independentemente do decurso do tempo e da distância, enquanto olhasse para ele, continuaria a enxergar conforto, segurança e confiança. Havia também a arrogância, a carência e a introspecção, era bem verdade, mas aquelas falhas não foram capazes de desencorajar seus íntimos anseios. Queria continuar ao seu lado, mas aquilo já não lhe era permitido. Sua última centelha de esperança havia chegado ao fim.

Sem muito ânimo, a camponesa afrouxou os braços, permitindo que o rapaz pudesse se locomover novamente. Mantinha a cabeça baixa, pois não deseja observar seus passos em direção à saída. Podia sentir as lágrimas se acumulando nas laterais dos olhos e esforçava-se para impedir que elas caíssem. Não desejava que Phillip permanecesse ao seu lado apenas por pena de seu estado atual. Era livre para decidir e suas escolhas priorizavam sua segurança e bem estar, onde ela já não poderia lhe causar nenhum mal.

Estava tão alheia ao seu redor que sequer percebeu o som de suas passadas ou mesmo o barulho da porta sendo aberta. Deixou que a tristeza transbordasse por seus olhos enquanto desejava que pudesse morrer afogada ali mesmo. Impossibilitada de trabalhar, trafegar pelas ruas com tranquilidade e até de amar, sentia que sua vida já não sustentava qualquer sentido.

O jovem Chevalier, que permanecia inerte no mesmo local de antes, se limitava a observar a figura inconsolável da camponesa. Estivera por tanto tempo compenetrado em sua própria dor que se esquecera completamente de olhar para quem estava bem ao seu lado. Vê-la daquela maneira o fez pensar que, de maneira semelhante, ele também a havia magoado.

Recordava-se com riqueza de detalhes do dia em que ela havia deixado seus próprios problemas de lado para consolá-lo, afastando todos os pensamentos ruins e depreciativos que dominavam sua consciência. Movido por aquelas memórias, suas mãos seu moveram até as bochechas coradas e úmidas da jovem, erguendo seu rosto com delicadeza, apenas o suficiente para que pudesse encaixar seus lábios nos dela.

Anya espantou-se com o toque à princípio, alheia ao fato de que não estava sozinha naquele corredor escuro. Foi preciso alguns segundos para que pudesse se situar novamente e por mais que não compreendesse completamente o que se passava ali, foi impossível resistir ao inesperado gesto do rapaz, de modo que ela logo se viu entregue àquela carícia tímida e inexperiente, mas cheia de significado.

O beijo foi breve, mas nenhum dos dois ousou afastar-se mais do que um palmo. Depois de tanto tempo separados, havia uma necessidade urgente da reconfortante presença do outro. De onde estava, ela podia sentir seu hálito quente enquanto os dedos de Phillip estavam empenhados em enxugar seu rosto banhado pelas lágrimas. Aos poucos, pôde compreender o significado do gesto, o que não serviu para espantar todas as dúvidas que permaneciam impregnadas em sua mente.

— Irá se arrepender disso — ela murmurou com um ar de incerteza, enquanto sua mão livre subia pelo pescoço de sua companhia. Vê-lo aceitar seus toques, sem que se afastasse com uma expressão quase ofendida em seu semblante era o tipo de constatação que alentava seu coração. Tinha ali um fruto difícil de ser encontrado e pouco valorizado por sua casca dura, coberta de espinhos, mas que escondia a mais doce das essências.

— É uma possibilidade — ele respondeu, com o mesmo tom sussurrado, como se estivesse revelando-lhe um importante segredo. Continuava a acariciá-la com as mãos, pela primeira vez sentindo-se confiante o suficiente para fazê-lo sem desviar os olhos ou agir como uma criança ingênua, sentindo a pele aquecida debaixo de seus toques. — Mas continuar me privando desse sentimento para alimentar uma mágoa descabida, isso sim é algo que eu certamente me arrependeria.

Se Anya pretendia dar-lhe alguma resposta, suas palavras tiveram de ficar para um outro momento. Agora, ambos tinham algo de maior relevância e interesse para ocupá-los até o fim do dia.



Abraçada a um de seus muitos travesseiros, Sarah mantinha os olhos fixos no teto de seu quarto. Seu corpo parecia pesado em função do cansaço físico, mas ao menos sentia a alma mais leve depois de despedir-se do tratador de cavalos. Desejava, do fundo de seu coração, que o rapaz fosse feliz com sua nova vida e lamentava o fato de que isto implicasse o distanciamento dos dois. Além disso, tinha ainda o pedido de Jacques para abster-se de mencionar suas descobertas recentes e aquilo permanecia preso em sua garganta de maneira incômoda. Mais que qualquer outra pessoa, ela abominava mentiras.

A porta do cômodo se abriu e os passos apressados denunciaram a chegada da governanta. Ainda não tinha certeza se estava pronta pra falar com ela, mas depois de constatar que estavam sozinhas ali, a oportunidade lhe pareceu boa demais para ser desperdiçada. Apoiando-se sobre os cotovelos, ela observou a mais velha entrar e sair diversas vezes do anexo que servia como quarto de vestir.

— Onde esteve a manhã inteira? — Evangeline questionou com um ar de interesse, trazendo em mãos algumas vestes cuidadosamente separadas por paleta de cores. A menina percebeu que se tratavam de vestidos largos, próprios para quando a gravidez estivesse avançada demais para usar suas roupas habituais. Mesmo que fossem feitos com belos tecidos e todos contassem com bordados bem trabalhados, tinha certeza de que teria um aspecto pavoroso em qualquer um deles.

— Nos estábulos, me despedindo — ela pontuou com calma, buscando afastar de sua mente a estranha imagem que provavelmente teria em alguns meses. Tornando o olhar para a antiga servente, acrescentou de maneira sugestiva: — Elliot está deixando Odarin. Vai passar a trabalhar na fazenda da Família Lewinter, em Hallbridge.

— Pensei que estivesse resolvendo algum assunto de Estado relevante e não perdendo tempo com o tratador de cavalos — retrucou com severidade,  sem sequer dirigir-lhe o rosto, valendo-se do mesmo tom que utilizava para repreendê-la quando criança.

— Você deveria ter ido despedir-se dele, pois é bem provável que não tenha a oportunidade de vê-lo outra vez. — As palavras ecoaram pelo cômodo e se perderam em instantes. O silêncio tomou conta do ambiente logo em seguida, uma vez que a governanta não esboçava a menor intenção de responder àquela provocação. — Não acha que deve algumas palavras a ele?

— De maneira nenhuma, não lhe devo absolutamente nada.

— Evangeline, como pode ser tão fria? O que Elliot fez para merecer este tipo de tratamento? — Indagou a jovem rainha com um ar de indignação presente não só em sua voz, mas também seu semblante. A antiga servente dirigiu-lhe um olhar incrédulo, simulando ignorância, o que apenas serviu para atiçar a ira de Sarah. — Não tente me enganar, estava tudo no diário da mamãe. Terá coragem o suficiente para negar aquilo que já sei?

— Você não compreende... — Da água para o vinho, sua repentina mudança de postura não passou despercebida. Falava com apenas um fio de voz, recuando alguns passos até que estivesse próxima o suficiente de uma cadeira para se apoiar. Sentia o ar faltar nos pulmões e o coração apertado demais para que pudesse concluir seu pensamento.

— Claro que não compreendo! — A menina explodiu de repente, erguendo-se da cama com um salto, em busca de respostas concretas para seus questionamentos. — Elliot é seu filho e mesmo assim o entregou para que Jacques, privando-o de sua presença e de seu afeto. Diga-me, qual a razão para tamanha atrocidade?

— Você não é capaz de imaginar como eu estava assustada! — Valendo-se de seu último fôlego, seu grito ecoou pelo cômodo, sendo devidamente acompanhado por um choro angustiado, não havendo mais forças para tentar contê-lo. Trêmula e nervosa, ela caiu sentada na poltrona que utilizava como apoio, sentindo a dor em seu peito tornar-se tão intensa ao ponto de deixá-la sem fala.

A cena fez com que Sarah se arrependesse de imediato por ter sido tão incisiva e dura em suas palavras. Apesar dos eventuais ataques nervosos, sua governanta sempre exprimia um ar de elegância ao desempenhar suas funções, mais prestativa e zelosa que qualquer outra pessoa que já tenha conhecido. Vê-la tão vulnerável era algo doloroso demais para suportar em silêncio, o que a fez se aproximar com passos incertos, passando a afagar seu dorso esguio como se isso pudesse amenizar a dimensão de sua estupidez enquanto a ajudava a se recuperar. Ela conhecia aquele choro desconsolado, de quem carrega um fardo por mais tempo do que se deve. Por sorte, seu gesto a transmitiu algum conforto e somente depois de alguns instantes pôde reunir força o suficiente para tornar a falar.

— Tinha a esperança de jamais ter que lidar com este assunto outra vez — pontuou entre soluços, usando um lenço para a enxugar o rosto enquanto sua outra mão continuava repousada sobre o coração dolorido. — Tenho tanta vergonha desta parte de minha vida que fiz tudo que estava ao meu alcance para ocultá-la do restante do mundo.

— Do que está falando? — Insistir naquele assunto era quase um capricho seu, mas a menina sentia que não podia mais voltar atrás e fingir que de nada sabia. Na tentativa de mostrar compreensão e apoio a senhora que sempre a acompanhava, ela sentou-se sobre o tapete felpudo, bem em frente a sua companhia. — Nada do que tenha acontecido no passado fará com que eu a respeite ou a ame menos. Chega de mentiras e segredos, veja como isso está lhe degradando por dentro.

O silêncio se prolongou por mais algum tempo, pois a governanta ainda não havia parado de chorar e continuava a respirar com dificuldade. Podia sentir o olhar piedoso repousado sobre si e ver a Rainha ajoelhada aos seus pés apenas serviu para perturbá-la ainda mais. “Levante-se, minha pequena, eu não mereço nada do que está me oferecendo”.

— Jamais desejei construir uma família, pois isso significaria ter que me ausentar do castelo num período em que nada me dava mais prazer do que servir à Katherine. — Aquelas palavras surgiram de maneira inesperada, sendo ditas de modo sussurrado e entrecortado, mas Sarah mantinha-se atenta para não perder um único detalhe daquela narrativa. Obrigá-la a repetir seria um ato muito cruel de sua parte e tudo que pretendia era compreender as questões que continuavam pendentes de esclarecimento. — Eu deveria ter ouvido sua mãe quando ela me disse para não deixar as dependências do castelo sem proteção. Mas era jovem e tola, me imaginava acima de tudo, como se nenhum mal pudesse me atingir. Nunca estive tão enganada em minha vida e paguei um preço alto por isso.

— Eu não entendo, o que aconteceu? — Diante do questionamento, a antiga servente se limitou a balançar a cabeça negativamente em resposta, incapaz de reviver os detalhes daquela noite, muito menos de recitar os acontecimentos em voz alta.

— Ela havia sido boa demais para mim, não poderia deixá-la sozinha com Allen por nada neste mundo.

— Evangeline, estamos falando de uma época em que Allen era uma criança — pontuou a menina, com um ar de incredulidade. Seu irmão estava longe de ser uma pessoa boa, mas lhe custava acreditar que tivesse sido sempre assim. — Qualquer um neste castelo poderia tomar conta dele, não precisava ter se sacrificado tanto por algo assim.

— Ah, minha pequena, você sabe tão pouco — mencionou a governanta em meio a um sorriso amargo. Se lhe fosse facultado, ela faria o possível para preservar aquela inocência para sempre. — Sua mãe tinha um medo terrível dele, mantinha-se tão afastada quanto era possível. Mesmo quando não passava de uma criança de colo, havia uma espécie de ira e ressentimento refletido em seus olhos capaz de perturbar o espírito de qualquer um. Não havia nada que pudesse explicar o seu comportamento e tudo se tornou ainda pior na medida em que ele cresceu.

A narrativa fez com que ela se recordasse da desconfiança contida no olhar do cavalo negro de seu irmão e então pôde compreender um pouco daquilo que lhe era dito. Mesmo sentindo calafrios, ela tomou as mãos da senhora entre as suas, instigando-a a continuar, pois somente assim poderia compreender um pouco mais do passado de sua genitora, bem como a relação daqueles detalhes todos com o abandono de Elliot.

— Katherine, com todas as suas imperfeições, não deixava de ser bondosa e gentil quando lhe apetecia. Mas isso não a impediu de trazer ao mundo uma… aberração como ele. E eu não só tinha medo de que algo semelhante acontecesse comigo, como não poderia abandoná-la nesta situação. Precisei fazer uma escolha e optei por permanecer fielmente ao seu lado. — Àquela altura, já tinha recobrado um pouco de sua calma e as lágrimas haviam cessado momentaneamente. Cada palavra era dita com extrema cautela, pois sabia da devoção que a menina tinha em relação a imagem do falecido irmão e não desejava enfurece-la outra vez. — Acompanhar seu crescimento tornou-se um pesadelo ininterrupto e sou obrigada a admitir que Jacques, com seu comportamento letárgico e as usuais palavras de conforto, foi o responsável por impedir que ela enlouquecesse. Ele era um sopro de paz em sua vida tão atribulada, talvez este seja o motivo pelo qual se apegou tanto à sua presença.

— Mas ela o amou de verdade, não foi? — Questionou com um ar incerto, recordando-se de algumas passagens do diário, onde teve a impressão de que sua mãe se divertia em manipular os sentimentos daqueles que estavam ao seu redor. Não queria acreditar naquilo, mas os indícios de sua existência quase sempre a levavam até aquela conclusão.

— Nesse aspecto, sabemos tanto quanto você — Evangeline retrucou enquanto dava com os ombros. Lenta e paulatinamente, os batimentos voltaram ao normal e ela pôde raciocinar com clareza mais uma vez. — Ele a amou muito, disso não tenha dúvidas. Mas como já tinha lhe dito antes, ninguém era capaz de precisar o que Katherine realmente sentia. Se não encontrou a resposta para essa pergunta em seus escritos, então é algo que jamais saberemos.

A resposta não esclareceu suas dúvidas e nem mesmo apaziguou seus temores. De maneira quase inconsciente, uma de suas mãos repousou sobre o próprio ventre e ela se questionou acerca da probabilidade de passar pelo mesmo calvário que sua mãe tivera de enfrentar. O que faria se, assim como seu irmão, aquela criança nascesse incapaz de amar, trazendo dentro de si apenas um ódio impossível de ser contido?

— Eu não me preocuparia com isso — proferiu a governanta, antevendo a linha de raciocínio só de observar a expressão de pânico que seu semblante deixava transparecer. — Não pense que por ter tido um casamento de conveniência sua história se assemelha com a de Katherine. Enquanto Allen foi o resultado de uma imposição violenta, você foi intensamente amada por seus pais, que aguardaram ansiosos por sua chegada.

— Como posso ter certeza disso?

— Não pode — pontuou de maneira impositiva, recobrando a rigidez que lhe era costumeira. Colocando-se de pé, Evangeline estendeu as mãos para que a jovem rainha se erguesse de igual modo. — Mas não permita que o medo a impeça de amar. Não cometa o mesmo erro que eu.

Embora seus olhos ainda estivessem ligeiramente avermelhados e marejados, a antiga servente sorria de maneira encorajadora em sua direção. Tinha errado muito em sua vida, mas se todos aqueles deslizes pudessem ajudar sua protegida a seguir por um caminho mais seguro, então tudo teria valido a pena.

— E quanto ao pai de Elliot? — a menina questionou de súbito, desta vez tomada por uma curiosidade infantil.

— Diferente de mim, que jamais conseguir sentir qualquer afeto por aquela criança, Earnshaw cumpriu bem com o seu papel, ainda que indiretamente.

Os olhos de Sarah se arregalaram de imediato, sem que pudesse acreditar naquilo que havia acabado de escutar. Como um estalo, meia dúzia de acontecimentos que lhe pareciam ser frutos do acaso de repente se mostraram alinhados diante de uma lógica que ela até então desconhecia. Não era de se espantar que fossem tão parecidos; eles cresceram juntos e foram criados pelas mesmas pessoas.

Um dia repleto de acontecimentos como aquele deixava muitas questões pendentes para se refletir, o que a fez afastar-se com passos lentos até o parapeito de sua janela, onde gostava de se sentar para admirar a paisagem. Evangeline aproveitou a oportunidade para se retirar do cômodo. Sua cabeça latejava e ela sentia a necessidade urgente de um descanso.

Logo vai escurecer”, pensou enquanto olhava para a entrada do castelo. A figura do tratador de cavalos, tão pequena dada a distância entre os dois, afastava-se acompanhado por Pipo e Petruchio. Os dois cavalos eram suas únicas companhias durante as cavalgadas secretas, um passatempo em comum que poderia durar o dia inteiro, se isso lhes fosse permitido. Em meio a tantos sorrisos e risadas compartilhadas, nenhum deles realmente se preocupava com o futuro. Tudo que tinham em mente era o desejo de aproveitar ao máximo a companhia do outro. “Eu sentirei sua falta”.

— Finalmente a encontrei.

O barulho da porta sendo aberta, devidamente acompanhada pela voz do jovem Avelar, chamou-lhe a atenção e a menina apressou-se em limpar uma lágrima teimosa que escorrido em seu rosto. Estava tão absorta em seus próprios pensamentos e em questões do passado que a ocuparam de tal forma que sequer percebeu o decurso do tempo.

— Eu não a vi o dia inteiro — comentou o rapaz, aproximando-se de onde ela se encontrava. Trazia em seu semblante o mesmo ar de zelo e ansiedade que vinha portando nas últimas semanas. Era impossível olhar para ele e não vislumbrar uma criança que conta os dias para o seu aniversário ou para a manhã de Natal. — Você me parece um tanto abatida, aconteceu alguma coisa? Está se sentindo bem?

— Não é nada demais, eu só… — Seus olhos voltaram-se para os portões de entrada do castelo mais uma vez. No entanto, a figura errante de Elliot já tinha desaparecido por completo. — Nosso tratador de cavalos acaba de partir.

— Estou certo de que conseguiremos outro tão bom quanto num piscar de olhos — Edgar respondeu de imediato, de maneira simplista e otimista, totalmente alheio às reais preocupações que tomavam de conta da mente da jovem rainha.

É aí que você se engana. Ninguém jamais poderá se igualar a ele”, ela retrucou mentalmente, ciente de que não fazia sentido externar aquele pensamento. Aqueles dias de felicidade infantil e despreocupada haviam chegado ao fim. Ela preservaria para sempre as memórias preciosas de um tempo sem conflitos ou preocupações.

— Me pergunto se algum dia olharei para esta janela e verei um batalhão descendo a colina na direção de Odarin — ela pontuou enquanto recebia um carinhoso beijo no topo de sua testa. Aquele gesto, simplório e corriqueiro, era responsável por aliviar suas dores e amenizar o seu humor, não importava quantos vezes o artifício fosse utilizado. — Já chegaram os novos relatórios da fronteira?

— Nenhuma movimentação suspeita, apenas a intensa movimentação de mercadores entrando e saindo com o intuito de fazer negócios — pontuou o Duque, aproveitando a oportunidade para sentar-se logo atrás dela, acariciando seus ombros enquanto mirava a área externa de sua morada. — Não acha que esse talvez seja um indício de que essa história encontra-se superada?

— Não creio nisso. Alastair vai esperar até que estejamos completamente desprevenidos para nos atacar — rebateu de imediato, sem tirar os olhos da estrada para além dos muros de sua morada. — Essa incerteza está me consumindo por completo.

— Ao primeiro sinal de uma ameaça externa, esteja certa de que não só eu ou Phillip, mas todo o reino estará preparado para atender seus comandos. Portanto, se permita um pouco de egoísmo e preocupe-se somente com seu próprio bem estar no momento. — O comentário foi seguindo por mais um beijo, desta vez em sua nuca. A carícia levou um meio sorriso aos lábios da menina, que se via cada vez mais mimada por seu consorte. — Minha única preocupação no momento é pensar num nome adequado para nossa primeira princesa.

O comentário fez com que a jovem rainha soltasse uma risada jocosa que preencheu o cômodo com uma alegria contagiante. Perceber que sua tentativa em melhorar o ânimo de sua companheira fora bem sucedida levou um ar de triunfo ao semblante de Edgar.

— “Primeira”? “Princesa”? — Ela questionou com um ar incrédulo, encostando confortavelmente contra seu torso, para que pudesse aproveitar ainda mais de toda a atenção que ele lhe dedicava. — Quem lhe disse que teremos mais de uma criança e que esta será uma menina?

— É apenas uma impressão que tenho. E você não respondeu minha pergunta.

— Confesso que ainda não tive oportunidade de pensar no assunto. — Sua fala foi seguida por um silêncio prolongado por parte dos dois. Haviam tantas coisas acontecendo simultaneamente que sequer tivera a chance de pensar nas pequenas alegrias que a gravidez lhe proporcionava. Evangeline tinha razão em suas palavras, ela não podia permitir que o medo a impedisse de amar. O olhar da jovem voltou-se para o jardim que se alastrava por toda a propriedade e então, uma ideia surgiu em sua mente como um lampejo. — Mas eu gostaria que ela fosse batizada com o nome de uma flor.


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