Blind Date escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 6
Capítulo 6


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoal!

Socorro! Fui revisar o capítulo e estava tranquila com o número de palavras. Então, quando coloquei o ponto final, percebi o tamanho que ficou…

Presentinho de Natal antecipado! Acho que vocês conseguem terminar de ler até lá!

Boa leitura!



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Depois que Peeta se despede, aguardo de pé próxima à janela e permaneço ali até vê-lo cruzando o gramado em frente à escola, em direção ao seu carro. Refaço meu caminho até o local onde Annie, Prim e Rue definem os detalhes finais para os projetos da feira de ciências. Esbarro com minha irmã e sua amiga inseparável, quando elas atravessam a porta da sala. Prim me encara com ar travesso e fico mais ruborizada do que já estava desde que vi Peeta ir embora.

— Guardou todo o material bem direitinho com o Peeta? – Annie se levanta e põe o dedo em riste, numa tentativa de parecer séria, mas logo suaviza sua expressão num meio sorriso e sinaliza para eu me sentar perto dela à mesa. — Aproveitando que estamos sozinhas na sala... Como vai esse coração apaixonado?

Enrijeço no local em que estou, nem sentada, nem de pé, no mesmo instante em que Annie pronuncia a pergunta, que contém um dado alarmante, ao menos para mim. Coração apaixonado?

Finalmente, eu desabo na cadeira, porém abro e fecho a boca sem emitir nenhum som, balançando a cabeça, muito atordoada para falar.

Annie tem um ótimo faro para desvendar o meu estado de espírito, mas duvido por alguns instantes de que eu já estivesse dando qualquer pista a respeito dos meus sentimentos, pois nem eu mesma conheço o alcance deles.

— Você acha que eu estou apaixonada?

— Quase posso ver as engenhocas do seu cérebro funcionando para desvendar esse mistério. – Ela gesticula, simulando engrenagens em movimento sobre a própria cabeça. — Relaxa, amiga.

— Eu estou... muito... relaxada. – Forço meu pescoço rígido a se mover ligeiramente, mas meus músculos tornam a se tensionar, quando ergo os olhos e me deparo com a expressão um tanto maliciosa da ruiva.

Apesar da provocação, ela é minha melhor amiga e me conhece muito bem. Eu sempre admirei sua sagacidade e sua visão otimista da vida – ainda que bem diferente da minha –, e os conselhos que recebo dela a partir de suas observações, sob um ponto de vista quase sempre diametralmente oposto ao meu. Assim, apesar de receosa, estou aberta a avaliar a opinião dela. A princípio.

— Você pode ficar aí sacudindo a cabeça o quanto quiser, mas tenho provas indiscutíveis.

Annie faz essa declaração com um olhar questionador que sugere que, além de expor suas próprias convicções, ela vai me testar até ouvir de mim o que ela quer saber. Mas esse jogo eu também sei jogar. São anos de prática com ela e Prim. Então, já estou armada para contestar qualquer dos argumentos que ela me apresentar.

— Ok, discorra sobre o tema – exijo, com um tom desafiador, apoiando meus antebraços sobre a mesa e aproximando meu rosto do dela, num sinal de que não estou intimidada. — Como diz o meu querido advogado Haymitch: o ônus da prova é de quem alega.

Annie reproduz o meu gesto e seus olhos verdes faíscam com sua astúcia, aguçada por meu contra-ataque.

— Katniss Everdeen, eu poderia passar o dia inteiro tentando convencê-la do óbvio, dizendo que está claro como você se sente sobre o Peeta, mas bastam poucas evidências. Sinceramente, nas últimas vinte e quatro horas, você fez coisas que eu nunca imaginei acontecerem...

— Por exemplo? – Tamborilo os dedos sobre o tampo da mesa.

— Ele fez você voltar a cantar – afirma ela, categórica.

— Isso foi por causa das circunstâncias... Pelo espírito de equipe – replico, ciente de que a disputa não será fácil, pois já sinto um frio na barriga só de me lembrar do principal motivo que me impulsionou a subir no palco do Bar Mockingjay. Ele mesmo. Peeta.

— Engraçado como esse espírito de equipe só surgiu depois que ele cantou pra você. – Annie me lança um olhar de descrença. Ponto para a ruiva! Mas não vou dar o braço a torcer. — Continuando! Você falou sobre o seu pai com o Peeta. Você dificilmente conta alguma coisa a respeito dele... Até pra mim!

— Só porque era preciso explicar a razão de não poder vê-lo amanhã – rebato, sem muita segurança na voz, preocupada pelo fato de reconhecer que, em outra situação, realmente eu jamais mencionaria a morte do meu pai, qualquer que fosse a justificativa.

— Hum. Essa sua pose de indiferente ainda não me convenceu. Vamos ao próximo ponto... O que aconteceu ontem não foi um encontro, mas um reencontro.

— Não foi um reencontro. – Simulo a colocação de aspas com os dedos ao final da frase, mas não ignoro o fato de Annie ter usado a mesma palavra que Peeta disse pra mim ontem na praia. — Nós nunca havíamos trocado uma palavra antes!

— Mas trocavam olhares, o que é tão ou mais interessante quanto! – Annie devolve, acrescentando rapidamente mais um indício à sua lista, a troca de olhares que eu nunca consegui esquecer, mesmo depois de anos. — Além disso, você nunca se comportou com outros rapazes do modo como age com ele.

— Bem, Peeta é realmente diferente dos outros, mas isso não é sinônimo de estar apaixonada, então...

— Ainda não terminei. – Ela faz uma pausa para o suspense. — Não vou me alongar, porque a prova definitiva de seus sentimentos é simples e inegável.

Não tenho ideia do que ela vai dizer em seguida e minha postura, com as costas coladas na cadeira e os braços cruzados, já não é tão confiante.

— Ontem, no caminho para o Pacific Park, você deixou Peeta comer o final da casquinha do sorvete. Aquele pequeno cone crocante, onde fica depositada uma boa camada de chocolate, misturada com um sorvete cremoso – Annie descreve de modo lascivo a minha parte favorita de um sorvete e imediatamente a imagem que vem à minha cabeça me dá água na boca. — E você fez isso sem pestanejar, com um sorriso de orelha a orelha. É uma prova de amor irrefutável!

— Você só pode estar brincando! – Espalmo as mãos sobre a mesa, dando uma risada nervosa.

— Katniss distribuindo a pontinha incrivelmente deliciosa de uma casquinha de sorvete. – Ela desliza as mãos no ar, como se estendesse um letreiro com essa frase. — Não acreditei quando vi... Um fato sem precedentes nunca presenciado na história do universo! – conclui Annie com um olhar capcioso.

— Isso não é verdade. Eu sempre divido com Prim quando ela pede.

A cara zangada que ela estava fazendo para cada uma das minhas respostas anteriores é imediatamente substituída por um sorriso vitorioso.

— Minha querida amiga – Annie cobre minha mão com a dela antes de retomar o raciocínio –, o fato de você dividir apenas com Prim simplesmente confirma a minha teoria.

Não tenho justificativas para refutar o que Annie acabou de enfatizar. Apenas balanço a cabeça, mordendo o lábio inferior e estreitando os olhos para ela.

— Pela sua cara, vejo que está arrependida por nunca haver cedido a nenhum de meus apelos para que eu tivesse o sagrado privilégio de comer o último pedaço de uma casquinha de sorvete – prossegue. — Ou será que essa testa franzida é porque está considerando a veracidade das minhas revelações? Katniss, o que há de tão grave nisso?

— No fundo, não há nada de errado, mas essas coisas não levam tempo, Annie?

— Não há um tempo certo para acontecerem, mas existem alguns sinais de que tudo está caminhando para esse desfecho. Quer ver só? Você não fica balançada quando ele olha intensamente pra você com aqueles belos olhos azuis?

— É óbvio que sim.

— E você fica com esse sorriso bobo só por pensar nele.

— Verdade – reconheço envergonhada.

— Peeta é gentil, divertido e atencioso. Você fica mais descontraída quando está com ele, sorri mais, brinca mais, suspira mais... – Annie enumera minhas reações e não discordo nenhuma vez. Apenas confirmo as sensações maravilhosas que brotam dentro de mim com a simples lembrança dele comigo. Meu olhar passeia distraidamente, desfocando-se de tudo ao redor, devido à minha concentração em meus pensamentos. — Sem contar que ele é lindo e que... Katniss, você está se apaixonando!

— Eu sei... – Solto o ar dos pulmões. — Não! Espere... Você me ludibriou! – acuso, depois de ser abruptamente sugada pra fora das minhas divagações. — Eu não... Eu sei? Não! É impensável que esteja acontecendo tão rápido.

— Será? Olhe nos meus olhos e me diga o que você sente com os beijos dele.

Ela dá sua última e definitiva cartada e eu tenho que entregar o jogo de vez.

— Meus joelhos bambeiam, meu estômago revira, perco a noção do tempo, esqueço até do meu nome... Essa é a única resposta honesta que eu posso dar a você.

— Convencida agora?

Ela deve notar a estranha gama de emoções passando pelo meu rosto e minha expressão final de desespero absoluto. Estou apaixonada? No mínimo, é o que está começando a acontecer. Eu simplesmente não sei como lidar com tudo isso. É tão novo e repentino!

— Katniss, você vai sobreviver! Peeta realmente gosta de você. Basta ver a felicidade estampada no rosto dele, o cuidado que ele tem... – ela continua a falar apressadamente sem me dar chances de discordar de qualquer coisa. — Ele se preocupa com você, com seu bem-estar...

— Falando sério agora, Annie – eu a interrompo. — Você acredita mesmo nisso?

— Sim! Ainda mais quando está acontecendo diante dos meus olhos.

— Oh, Ann... – balbucio emocionada.

Eu penso nos meus pais. O jeito como meu pai nunca falhou em trazer presentes para minha mãe, por mais simples que fossem. O modo como o rosto da minha mãe se iluminava ao som das botas dele na porta. O jeito como ela quase parou de viver quando ele morreu. E isso me apavora.

Annie fica de pé à minha frente, com as mãos postas sobre o peito, num ato exagerado.

— E eu me regozijo por testemunhar esse encontro de almas gêmeas que estavam separadas pela distância, mas se reuniram pela força do destino! – Annie dramatiza teatralmente, com uma inclinação de cabeça, em seu timbre divertido habitual.

— Você deveria ser professora de literatura, e não de biologia! – Por fim, eu cedo e ergo as mãos em sinal de rendição. — E, depois de tantas tentativas, você finalmente ganhará sua promoção à amiga-cupido.

— Jura? – comemora ela. — Agora me diz, amiga... Ele tem pegada?

A pergunta indiscreta ressoa pela sala vazia. No timing perfeito, sou milagrosamente salva pela chegada de Prim, Rue e dos outros alunos, acompanhados de Finnick.

— Quem tem pegada? – Finnick brada aos quatro ventos.

E minha salvação dura muito pouco. O tempo exato para o rubor em meu rosto entregar toda a verdade aos recém-chegados e suas risadas se multiplicarem ao meu redor.

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Ontem, Prim, Rue e Rory voltaram de carona para a Costura comigo, mas foram assistir filmes na casa de Rue. Então, não vi a minha irmã pelo resto do dia e não tive que lidar com seus questionamentos.

No entanto, hoje, desde o momento em que acordou, Prim está me interrogando sem parar sobre os acontecimentos do dia anterior.

Principalmente depois que me flagrou admirando o conteúdo do meu porta-joias, onde sempre esteve apenas o broche com o tordo, mas que agora divide espaço com a pérola que Peeta me deu na praia.

Meu pai era particularmente afeiçoado aos tordos. Ele assobiava ou entoava canções complicadas para eles e, após uma pausa educada, eles sempre cantavam de volta. Nem todos são tratados com tanto respeito. No entanto, sempre que meu pai cantava, todos os pássaros na área caíam no silêncio para escutá-lo. Por isso, há algo reconfortante no broche com o passarinho. É como ter um pedaço do meu pai comigo e me protegendo.

Já a pérola... A pérola me lembra da razão pela qual ando sonhando acordada desde sexta à noite.

Assim, quando Prim espia por sobre meu ombro e vê os objetos em minhas mãos, decide que Peeta e eu estamos destinados um ao outro – os amantes desafortunados das partes opostas da cidade. E ela não para de falar nem um minuto durante o café da manhã.

— Eu acho que ele é muito romântico e tenho certeza de que, quando vocês se casarem, todos os dias, ele vai preparar tudo o que você gosta, vai trazer pães de queijo para casa à noite e distribuir para os meus cinco sobrinhos rechonchudos, autênticos filhos de padeiro.

— Prim, você me conhece. Não será bem assim. – Começo a coletar a louça e levá-la para a pia.

A caneca da minha mãe já está no escorredor, ainda úmida. Mais uma vez, ela saiu cedo de casa, mesmo que hoje não seja seu dia de plantão.

— Pois deveria ser assim – decreta minha irmã, como se tivesse conhecimento de causa.

— O que isso significa?

— Isso significa que você precisa se permitir ser feliz. – Ela surge ao meu lado na pia e descansa a cabeça em meu ombro, abraçando-me pela cintura. — Eu sei que foi difícil pra você. Pra nós. Mas você merece ser feliz. Se você se deixar ser...

— Prim, eu sempre fui feliz tendo você comigo – murmuro, sem olhar em sua direção.

— Eu sei, mas você merece muito mais... Foi complicado para nós três, porém você foi quem mais renunciou desde que o papai morreu. Mas ele não quer que nos lamentemos pra sempre. E, se ele estivesse aqui agora, tenho certeza de que gostaria de conhecer o Peeta.

Olho pra baixo e começo a esfregar os copos silenciosamente. Eu sei que Prim é uma romântica incurável e não tem a intenção de me abalar ao falar do nosso pai. E, no fim das contas, reconheço que ela está certa.

— Apenas pense nisso, ok, Katniss?

Assinto e mantenho os olhos na louça quando ela se afasta. Giro minha cabeça em direção à entrada da cozinha e suspiro. É sempre um golpe duro ouvi-la mencionar o nosso pai.

Já se passaram dez anos desde que olhei nos olhos cinzentos e brilhantes dele. Uma dezena de anos desde que ele deixou um beijo em minha testa nesse mesmo cômodo pela última vez.

Há uma década minha vida mudou para sempre. É muito tempo sem escutar suas canções e sem ouvir suas risadas.

Sem contar as privações materiais que eu vi minha irmã passar. Foram muitas vezes em que fomos para a cama sem nos alimentarmos direito. Nada de roupas novas, presentes de aniversário ou passeios. Ao menos até as coisas entrarem minimamente nos trilhos.

Em dias como hoje, Gale me chamaria no portão e nos sentaríamos na Campina, fecharíamos os olhos ao sol para conversar sobre a falta de nossos pais, num lugar longe dos ouvidos de nossos irmãos.

Gale e eu passávamos muito tempo juntos. Era tão natural. Mais do que uma amizade, éramos como família.

Certa vez, ele tentou ajustar nossos planos para o futuro. Gale queria ver o mundo, ganhar muito dinheiro longe da Costura, casar e ter muitos filhos. Eu, por outro lado, sempre me mostrava resignada a renunciar a tudo para cuidar de Prim e da minha mãe, negando todas as sugestões dele, e não foi diferente naquele dia. Ele simplesmente se ergueu, limpando as hastes de grama que haviam se agarrado à sua calça, afastou-se de mim e disse:

— Sonhe alto, Catnip. Nós não fomos feitos para esse lugar.

Sonhar alto... Eu sonhava. Mas como tornar realidade?

Eu tive que fazer o papel de mãe para Prim por um bom tempo e, quando eu a levava para a escola, puxando-a pela mão ao longo do caminho onde ficam os estabelecimentos dos comerciantes, o simples olhar deles já me dizia qual era o meu lugar.

Prim, em sua ingenuidade infantil, não reparava e se demorava diante das vitrines.

A vitrine da padaria sempre foi sua favorita e, quando os Mellarks a fecharam, até mesmo essa alegria ela perdeu.

Alegria inocente da qual nem sempre compartilhei, porque era comum que eu encontrasse também, atrás do vidro que abrigava os bolos lindamente confeitados, o desprezo da dona da padaria.

A mãe do Peeta. Aquela mulher detestável, que sempre me fez ciente de que eu não deveria me atrever a estar ali, simplesmente pelas minhas origens.

A lembrança de seus trejeitos de reprovação direcionados a mim ainda me dá calafrios. Eu sei que o preconceito dela, cultivado por tanto tempo, não pode ter desaparecido.

E é com o filho dela que estou me envolvendo? Viver isso seria sonhar alto demais, afinal?

Meus pensamentos negativos continuariam me traindo, se eu não me recordasse de como Peeta me olha de modo completamente diferente da maneira como a mãe dele me encarava. Peeta me olha como meu pai olhava a minha mãe.

Como deve ser difícil pra minha mãe viver sem aquela expressão de carinho e adoração infinitos.

Isso explica muito do seu luto silencioso, sem seu marido. Ela não teve nem mesmo o apoio de seus parentes, que a rechaçaram quando ela escolheu o meu pai. Eu sequer sei o nome deles. E nem quero saber.

Houve apenas uma vez em que tentei contato com a família da minha mãe. Um dos meus maiores arrependimentos na vida.

Foi alguns anos depois da morte do meu pai. Eu precisava comprar um remédio muito caro para a minha mãe, valor que comprometeria tudo o que eu ganhava ajudando Greasy Sae em sua lanchonete.

Num impulso de coragem, resolvi que era hora de pedir ajuda aos familiares da minha mãe. Primrose estava no último ano da escola elementar e suas aulas começaram um dia antes das minhas. Para mim, era a oportunidade perfeita.

Então, deixei minha irmã na escola e vaguei pelo caminho até a área comercial. Mesmo me sentindo deslocada, tão invisível quanto um pássaro sem voz e impossibilitado de voar, entrei no estabelecimento dos meus avós.

Um homem de cabelos loiros e muito lisos veio me receber. Apesar de ter o rosto largo, distingui nele traços semelhantes aos da minha mãe. Ele me perguntou se eu estava precisando de ajuda e sua voz não carregava nenhuma entonação específica. Não me repudiava, mas também não me encorajava a falar.

A receita médica tremulava em minhas mãos, quando a estendi pra ele. Vi seus olhos verdes se prenderem nas letras do médico e, depois, na gola ligeiramente puída da minha blusa e em meus sapatos gastos.

Foi tudo muito rápido, mas eu tenho quase certeza de que o homem leu o nome da minha mãe no papel, pois me devolveu a folha de modo tão grosseiro, que ela caiu e escorregou pelo chão para longe de mim.

Ele não esperou que eu respondesse à sua pergunta, nem que eu pegasse a receita médica, e foi logo emendando que era claro que eu precisava de ajuda, mas que aquilo era uma farmácia, e não uma instituição de caridade.

Eu nunca contei a ninguém o que aconteceu naquela manhã. A única que soube, porque presenciou tudo, foi Annie.

Ela estava na farmácia com a mãe dela e foi a primeira vez em que a vi. Seus olhos verdes e doces contrastavam com os olhos verdes e gélidos daquele que eu supunha ser o meu avô. Saí correndo sem olhar pra trás. Ele não veria uma única lágrima cair dos meus olhos.

Na manhã seguinte, na escola, descobri que Annie era uma das novas colegas de turma. Alguns dias depois, ela se aproximou de mim com uma sacola de papel. Dentro dela, estavam o medicamento que eu fui comprar e o papel da receita médica dobrado. Annie disse que eu poderia recusar o quanto quisesse, mas já estava comprado e ela não o devolveria, e o remédio apenas se estragaria sem ninguém tomá-lo. A ruiva e seu dom de argumentar...

No final das contas, houve mesmo uma melhora no quadro da minha mãe.

Depois que ela se recuperou, passou a canalizar em seu trabalho os sentimentos reprimidos durante seu isolamento.

Mesmo tentando, minha mãe nunca mais foi a mesma. Penso que ainda é demais para ela viver na casa onde tudo traz recordações de seu marido.

Logo que foi contratada pelo Hospital, ela não se poupava nem um pouco e se refugiava em muitos e longos plantões.

Só a via quando ela desmaiava de cansaço no sofá, talvez evitando dormir na cama que ela compartilhava com meu pai.

Eu me imagino no lugar dela por um breve instante e subitamente passo a entendê-la melhor. Tanta dor, porque viveu um grande amor.

Talvez ela saiba o que está acontecendo comigo, simplesmente porque já vivenciou algo semelhante quando conheceu o meu pai.

Do ângulo onde estou, vejo o porta-retratos com a foto dele que fica na sala de estar. A tristeza por sua perda vem em ondas. Meu corpo não tem energia para sustentar de um só golpe o sofrimento que isso me causa. Então, não posso mais segurar o choro. Começo a verter as lágrimas represadas desde que amanheceu.

Onde você está? Eu grito na minha mente. Aonde você foi, pai?

Claro, nunca há uma resposta, somente a necessidade de dialogar com ele, nem que seja em meus pensamentos.

Pai, você faz muita falta para me guiar... Sabe aquele menino de quem você fingia ter ciúmes na época da escola? Ele reapareceu na minha vida. E estou descobrindo que gosto dele. Muito.

Ele é diferente. É doce e gentil e não esconde que gosta de mim também. E ele se preocupa com as pessoas, do jeito que você fazia. Não que ele seja perfeito ou coisa parecida, mas tenho certeza de que ele é realmente, como Prim falou... Alguém que você gostaria de conhecer. 

Pai, como vou saber se ele é a pessoa certa?

Respiro profundamente. Eu ainda posso ouvir meu pai, com sua simplicidade e sabedoria, traduzindo todos os meus sentimentos mais íntimos em nossas conversas à beira do lago. O nosso lugar especial. Mesmo que eu tente forçar as lágrimas a pararem, elas continuam a fluir e, na verdade, eu me sinto bem, jorrando tudo pra fora de uma vez.

O giro da maçaneta me retira dos meus pensamentos e percebo que estou lavando o mesmo copo desde que me aproximei da pia.

O rosto abatido da minha mãe surge no vão aberto. Ela traz nas mãos uma pequena bandeja coberta por um pano branco com flores bordadas. Enquanto ela está distraída fechando a porta e colocando o recipiente sobre a mesa, enxugo minha face úmida com meu antebraço, pois não há tempo de retirar a espuma das minhas mãos.

— Mãe? Pensei que tivesse ido para o hospital – disfarço.

— Não, filha. Fui falar com Hazelle. Hoje... Você sabe...

— Eu sei. Já se passaram dez anos desde a morte do papai e do Sr. Hawthorne.

— Dez anos, Katniss... – Ela faz uma pausa, para emendar em seguida: — Hazelle nos chamou para o almoço e mandou esses biscoitos.

Prim retorna à cozinha. Tenho certeza de que foi em razão de ter escutado a voz da nossa mãe.

O instinto de sobrevivência da minha irmã a impulsionou a assumir a missão de trazer minha mãe de volta e de mantê-la bem. Então, sei que minha irmã vai zelar o dia inteiro para que nossa mãe tenha mais motivos para sorrir do que para chorar.

Eu e Prim, afinal, somos o complemento uma da outra e essa é a beleza da nossa família, ainda que incompleta pela ausência absurdamente dolorosa do nosso principal eixo.

— Olá! Eu ouvi a palavra biscoitos? E da Hazelle? – Prim se acerca da minha mãe e a abraça ternamente antes de se servir de algumas das delícias preparadas por nossa vizinha.

Depois, Primrose toma a iniciativa de me ajudar a guardar a louça.

Minha mãe cobre novamente os biscoitos com a toalha e se encaminha para sair da cozinha. Antes que ela se retire, porém, eu tomo coragem e pergunto:

— Mãe, quando você soube que o papai era a pessoa certa?

Ela interrompe seus passos e se apoia no batente da porta, ainda de costas para mim. Primrose abandona sua tarefa para ampará-la.

— Katniss! – resmunga Prim, em tom de repreensão, mas não alto o suficiente para nossa mãe ouvir.

Eu imediatamente me arrependo por ter considerado apenas a curiosidade que está me corroendo, sem pensar nas consequências de uma pergunta delicada para a minha mãe.

No entanto, a preocupação da minha irmã é infundada. Minha mãe se vira para nós e seus olhos tranquilos passeiam por nossos rostos ansiosos.

— Estou devendo a vocês várias conversas de mãe para filhas. Essa é uma delas – diz ela timidamente, mas sem constrangimentos.

Minha mãe segura uma das mãos de Prim, depois gesticula para que eu as acompanhe para fora da cozinha.

Seco minhas mãos em uma toalha pendurada ao lado da pia. Num guardanapo, deposito alguns dos biscoitos feitos por Hazelle e sigo as duas até a sala.

Quando chego, nossa mãe já está no sofá. Primrose rouba um biscoito da minha mão e espera eu me acomodar para se sentar atrás de mim, com a cabeça apoiada em meu ombro, de modo que nós duas estamos de frente para a nossa mãe.

— Foi bom você me perguntar isso, filha, pois ultimamente essas lembranças são sempre um alento, e não apenas algo muito dolorido e desesperador, como eram nos primeiros anos. – Antes de prosseguir, minha mãe enxuga uma lágrima furtiva. Seu olhar se perde um pouco nas paredes ao nosso redor, mas seu rosto está iluminado, talvez pelas boas recordações que agora povoam sua mente. — Acho que eu simplesmente soube que seu pai era a pessoa certa. Não houve um momento exato. Foi uma soma de fatores e tudo foi acontecendo muito rápido. Mas eu realmente me dei conta, quando comecei a me interessar sobre cada detalhe a respeito dele. Coisas que nunca chamaram a minha atenção em ninguém mais... O modo como ele apertava os lábios para afinar o violão, o riso que começava anasalado e ia se soltando aos poucos até virar a gargalhada gostosa que vocês conheceram tão bem, o jeito que ele tinha de transformar as situações mais simples em algo especial.

Minha mãe enumera e eu me recordo de quando meu pai vibrava a cada pequena conquista minha e me encorajava a progredir ainda mais. E de como ele ficou feliz e gargalhou, do jeito que ela descreveu, girando-me no ar, quando descobriu que seria pai novamente.

— Você recebeu algum conselho na época em que vocês se conheceram, mãe? – pergunto.

— Sim. Muitos. Todos para eu me afastar dele. – Minha mãe balança levemente a cabeça. — A intenção da minha família era me convencer a dispensar o seu pai. Só que o efeito foi justamente o contrário.

— E o efeito principal somos nós duas, Katniss! – Prim graceja e minha mãe sorri.

— Mas houve um conselho em especial, o único bem-intencionado. Da avó de vocês... Não a minha mãe, mas a sua avó paterna – ela logo esclarece que não está se referindo à mulher que nunca quis conhecer a mim ou a Primrose. — A avó de vocês não estava muito bem de saúde e me chamou para uma conversa séria. Foi quando me transmitiu alguns dos ensinamentos mais importantes da minha vida.

— O que a nossa avó falou? – pergunta Primrose.

— Ela não apenas falou. Ela escreveu.

Minha mãe, então, ergue-se e caminha até a estante da sala. Abre uma das gavetas, aquela cujo conteúdo sempre restou intocado por mim ou por Primrose, e puxa um envelope lá de dentro.

Ela retira o papel amarelado pelo tempo em que esteve guardado e o estende para mim e minha irmã. A letra bem desenhada cobre toda a folha e mostra o capricho com que foi escrita a mensagem.

— Naquele dia, nós tivemos um diálogo franco e abrimos os corações uma para a outra. Alguns dias depois, ela confessou que, só então, sentiu-se segura para me entregar essa carta.

— Nossa avó tinha a caligrafia tão bonita quanto a sua, Katniss – elogia Prim ao segurar a folha com cautela.

— Sua irmã se parece muito com ela mesmo, Prim. Em muitos aspectos.

Não sei se é em razão do comentário da minha mãe sobre termos semelhanças, mas, ao ver a carta da minha avó, sinto que há mesmo um vínculo estreito, uma forte ligação entre mim e a mulher que meu pai me ensinou a admirar, apenas por seus relatos sobre sua garra e sua ternura.

— Posso ler, mãe?

— Sim. É uma lição que serve pra você também, Primrose.

Depois de autorizada, Prim inicia a leitura em voz alta:

"Querida Mariah,

Você bem sabe que não sou uma mulher de posses materiais e sabe melhor ainda que tenho apenas um tesouro. De carne e osso.

Meu filho. Ele é a única herança que deixo para o mundo. Por ser tão precioso, eu sempre supliquei internamente que existisse alguém no mundo que o valorizasse e sentisse por ele algo, pelo menos, remotamente similar ao amor que eu mesma sinto.

Ele sempre me motivou a me doar por inteiro para conseguir educar um ser humano bom, e eu me sinto muito orgulhosa por saber que ele é alguém que cativa as pessoas por sua essência, e não pelo que possui.

É isso o que você enxerga nele, o que ele é. E, por ele, você enfrenta batalhas das quais eu sempre tentei poupá-lo. No entanto, dessa vez, eu o incentivei a lutar também, pois sei que ele descobriu o amor. Eu sei disso, porque, como ele faz comigo, você faz dele uma pessoa melhor.

Por isso, eu me sinto no dever de alertá-la. Não é que eu duvide dos sentimentos de vocês, mas a vida me ensinou que o tempo adormece as paixões e cobra seus efeitos sobre os nossos sonhos não concretizados.

Sei que ama o meu filho e que está abrindo mão de tudo por ele, mas sei também que, quando se é jovem, é comum estarmos inclinados a enxergar apenas o que queremos ver. Assim, muitas vezes, quando surgem as adversidades, costumamos perder de vista os encantos da pessoa que nos conquistou a princípio. Então, agora, no frescor da juventude de vocês, eu aconselho que é muito importante enxergá-lo além da superfície.

Por essa razão, não se encante apenas pela sua aparência bonita ou pelo seu sorriso doce. Encante-se principalmente quando ele carrega feições cansadas ou uma expressão amargurada.

Saiba apreciar a sua voz melodiosa, mas também o seu silêncio.

Admire a sua calma tanto quanto a sua impaciência. Fascine-se pela sua companhia, assim como pelas vezes em que precisa estar sozinho.

Apaixone-se por tudo nele que é belo, porém ainda mais por suas cicatrizes, para que você possa continuar se apaixonando por suas rugas e pelas marcas deixadas pelo tempo.

Ame o que faz dele alguém imperfeito, ame tudo o que ele é, seu lado bom e seu lado ruim, porque é a única maneira de se certificar de que poderão compartilhar uma vida juntos. É o único modo de saber que ele é a pessoa certa e sempre será.

Ser a pessoa certa não significa que vocês têm que concordar em tudo. Não!
Significa mesmo ser firme ao defender suas opiniões, mas acolher com respeito e admiração o que vem do outro, mesmo que discordem entre si.

Meu filho ouviu de mim esses mesmos conselhos durante toda a vida. Com estas lições gravadas no coração, ele escolheu você. Então, eu também acolho você como filha e como minha família, como meu tesouro e minha herança, assim como meu filho é para mim, assim como serão os frutos dessa união.

Com amor,

Dalia Everdeen"

Prim termina de ler com a voz embargada e lágrimas nos olhos. Ela me transfere o papel e, antes que eu o segure de modo respeitoso, ponho na boca o biscoito que ainda estou segurando e limpo os dedos no guardanapo, num gesto automático.

As frases lidas por Prim ainda dão voltas na minha mente. Apenas desejo em meu íntimo que, se um dia eu amar alguém, que meu amor seja parecido ao que minha avó descreveu.

Fico quieta, admirando os manuscritos que agora estão diante de mim, tratando de assimilá-los.

— A vovó escrevia tão bem. E ainda incluiu nós três como seus tesouros – comenta Prim.

— Ela tinha uma vida humilde, mas era muito culta, apaixonada por leitura e música. Acho que vocês conheceram alguém assim, não foi? – Minha mãe acaricia o meu rosto e os cabelos de Prim e é tão bom ver os seus olhos focados em nós, e não mais encobertos por uma névoa de tristeza e depressão, especialmente quando menciona o nosso pai. — Foi depois de ler esta carta que tomei a decisão de sair da casa onde nasci e cresci, para me unir ao pai de vocês. E foi a melhor decisão que eu poderia ter tomado. Embora eu não tenha demonstrado isso todo o tempo, eu me sinto como ela em relação a vocês.

Nossa mãe nos abraça e devolvemos o abraço.

— A sua avó ajudou com a sua dúvida, Katniss? – questiona minha mãe, com o rosto ainda grudado ao meu.

— Bastante – respondo sem me prolongar, pois sinto em meu braço a cutucada sugestiva de Primrose.

— Você ainda tem que colocar muita coisa em prática, pois ainda está na fase que não vê defeito nenhum no Peeta – analisa Prim, retomando seu tom divertido.

— Ah, eu sei de um! – rebato e atraio os olhares de ambas sobre mim. — Ele tem medo de altura.

— Isso não é bem um defeito, filha.

— Verdade. Especialmente porque, mesmo assim, ele foi comigo à roda-gigante no Pacific Park.

— Ah, você pode me contar essa história?

Com as bochechas vermelhas, descrevo para minha mãe alguns dos acontecimentos dos últimos dias. Primrose também revela as novidades sobre o convite de Rory para o baile. Nossa mãe se mostra radiante com as descobertas.

— Voltando a falar do Peeta, mãe... Ele queria trazer cupcakes hoje, para conhecer você – conta Prim.

— E por que não trouxe?

— Pensei que hoje talvez não fosse um bom dia pra isso – respondo.

— Entendo sua preocupação, filha, mas todo dia é um bom dia pra receber alguém que faz tão bem a você.

Não vejo mais em minha mãe a mulher vazia e inatingível, que se trancou em sua dor, enquanto suas filhas passavam dificuldades.

Eu precisava mesmo restabelecer esse vínculo com ela, tanto tempo depois de o laço com o meu pai ter sido rompido tão abruptamente.

Com o distanciamento da minha mãe, eu não tinha ninguém para me conduzir e eu forçava minha mente a me lembrar dos ensinamentos do meu pai. Ele continuou sendo meu melhor amigo e conselheiro.

No entanto, não havia recomendações a respeito do que estou vivendo agora. Eu era muito nova e meu pai era muito ciumento para me dar aconselhamentos amorosos diferentes daqueles que envolvem brincadeiras do tipo: "Você só vai pensar em namorar depois dos trinta."

Essa lacuna foi preenchida por esse momento com Prim, minha mãe e a carta da minha avó.

Meu sorriso irrompe de verdade ao perceber que estamos nós três aqui, mais unidas que nunca, ainda que sem nosso principal elo.

— Estou pensando em ir ao parque em que fica o lago onde o papai me levava. Querem vir comigo? – convido.

— Não, filha. Aquele lugar era seu e de seu pai.

— Eu vou ficar por aqui com a mamãe, Katniss.

— Não pretendo demorar. Volto a tempo de almoçar com vocês na casa da Hazelle.

¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸

Depois de sair do perímetro urbano, pego a estrada no sentido do Lake Park. Conheço o caminho como a palma da minha mão. Tudo corre bem até que, quando vou estacionar, o carro chacoalha ao passar por cima de uma pedra pontiaguda e o impacto fura um dos pneus.

Saio do carro para avaliar o estrago. O barulho deve ter chamado a atenção de Chaff, o administrador do parque, e logo avisto o homem de pele negra, com cerca de um metro e oitenta de altura de pura simpatia e irreverência, que conheço desde o primeiro dia em que estive aqui.

— Tinha que ser a pequena Everdeen! Agora não tão pequena assim! – Chaff me cumprimenta, bagunçando meus cabelos. — Até na falta de habilidade ao volante você se parece com seu pai?

— Oi, Chaff! Que história é essa? Meu pai era um bom motorista... E, modéstia à parte, eu também!

— Há controvérsias, pequena Everdeen... Já trocou algum pneu antes?

— Nunca.

— Eu posso tentar dar uma mão. Já que só tenho uma mesmo! – Chaff faz graça, erguendo os braços e mostrando a amputação sofrida quando perdeu uma das mãos anos atrás. — Mas eu conheço um mecânico que pode vir aqui. Enquanto isso, você pode dar uma volta no parque. Eu sei onde estará...

Confirmo com um gesto de cabeça e Chaff abaixa os olhos, quando se esforça para esconder a sombra de tristeza que os cobre momentaneamente.

Abro a mala do carro e pego a toalha que costumo manter ali, para levá-la comigo.

Entrego as chaves do carro a Chaff e ele se afasta em direção ao seu escritório, prometendo chamar o mecânico rapidamente.

Tiro meu celular do bolso do short para entrar em contato com Prim. No entanto, a bateria do telefone está completamente descarregada. Isso não me perturba, já que, com a ajuda de Chaff, eu certamente não vou me atrasar para o almoço.

Percorro os poucos metros até o grande portão de metal do parque. É triste e, ao mesmo tempo, reconfortante entrar nesse lugar sem meu pai do meu lado.

Encontro o atalho para o lago e, em alguns minutos, estou diante da imensidão de água, cercada de árvores.

Alguns detalhes foram acrescentados no local ao longo dos últimos dez anos, como é o caso da ciclovia e dos bancos de madeira que circundam o lago.

No entanto, o entorno do salgueiro frondoso, debaixo do qual passei muitos dias felizes da minha infância, permanece inalterado.

Estendo a toalha sobre a grama e me sento ao lado do balanço instalado por Chaff em um dos galhos mais resistentes da grande árvore, a pedido do meu pai.

Pouso os olhos em alguns arbustos à beira do lago, formados por caules altos e flores de katniss, com as três pétalas brancas sobressaindo entre as folhas com as pontas afiladas em formato de flechas. Parece que ouço a voz do meu pai, brincando:

—- Contanto que ache a si mesma, você nunca morrerá de fome.

Eu me lembro da sua satisfação em explicar cada detalhe sobre as plantas e suas propriedades. Meu pai era movido pela alegria de tocar coisas vivas, pelo prazer de ajudá-las a florescer.

Reclino meu corpo para trás, apoiando-me sobre os cotovelos. O calor agradável do sol aquece minha pele, enquanto permaneço de olhos fechados, tentando distinguir dentre os ruídos suaves ao meu redor algo que se assemelhe aos sons que eu ouvia quando passava os dias nesse local com o meu pai. No entanto, o que eu mais gostava de escutar não está aqui. Nunca mais estará. Era a voz bonita dele, tão límpida, harmoniosa e cheia de vida, que dava vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo.

Havia música na minha casa e onde quer que ele estivesse. Músicas que eu ajudei a compor.

As horas passam sem eu me dar conta. Outras pessoas chegam para passear pelo parque e aproveitar o dia ensolarado.

Uma família com crianças, um jovem casal, um grupo de senhorinhas fazendo aula de ginástica ao ar livre. Todos sorrindo, alheios ao fato de que existem perdas que não se recuperam e distâncias que jamais se encurtam.

Mais adiante, com várias toalhas estampadas de xadrez estendidas, um grupo de adolescentes domina o espaço, preenchendo o local com suas risadas e expressões satisfeitas.

Há uma serenidade curiosa neste dia, a certeza de que as coisas seguem pacificamente seu curso, independentemente das nossas preocupações, dos transtornos e tumultos da existência humana.

Talvez seja a lembrança do meu pai que me faz ter essa sensação de paz.

Talvez seja a tranquilidade que sempre se encontra ao ar livre, longe de prédios e do zunido de carros.

Talvez seja apenas o alívio de finalmente ter encontrado o cara certo para me apaixonar... Ops! Foi isso mesmo o que pensei?

Olho para o relógio. Já está tarde demais para o almoço e todos devem estar preocupados comigo. Decido ir até o escritório de Chaff para saber notícias sobre o conserto do carro.

De repente, dentre os diversos burburinhos à minha volta, eu distingo a voz de Prim me chamando. Eu me sobressalto, surpreendida com a sua presença aqui. Ela corre até em mim, com os braços abertos e o rosto preocupado, e me abraça forte.

— Katniss, por que não avisou que ainda estava no parque?

— Meu telefone descarregou, mas... Como chegou aqui?

— Eu liguei para o Peeta e ele me trouxe.

Não vejo Peeta ao redor.

— Onde está ele?

— Está trocando o pneu furado com o Rory.

— E o mecânico?

— Quando chegamos, encontramos seu carro estacionado. Depois, Chaff me viu e explicou pra gente o que aconteceu. Ele pediu desculpas pela demora. Parece que o mecânico estava atendendo outro cliente ou algo assim... Por fim, ele deixou a chave do seu carro comigo, quando Peeta e Rory se ofereceram pra trocar o pneu. Não deve estar faltando muito para eles terminarem o serviço.

— Então, esperamos por eles aqui?

— Acho que o Peeta não viria até aqui.

— Por quê?

— Eu sugeri que ele viesse, pra fazer uma surpresa pra você, mas ele não achou que fosse uma boa ideia.

— Ah, claro. Ele deve pensar que eu sou uma descompensada depressiva. – Dou uma risada sem humor.

— Katniss, pare de pensar sempre o pior! Peeta disse que não viria até aqui, mas por um motivo muito nobre... Pra respeitar esse momento em que você quer ficar sozinha.

Imediatamente me lembro da carta que nossa avó paterna escreveu para a nossa mãe. Esse era um dos conselhos dela.

— Prim, posso pedir um favor? Se eles já trocaram o pneu, você pode ir com o Rory pra casa no meu carro? Eu vou com o Peeta.

— Finalmente vou poder dirigir o seu carro?

— Não, patinho. O Rory vai. Você tem que ter mais prática antes de pegar a estrada.

— Ah, poxa... – Prim faz cara de decepcionada, mas logo suas maquinações românticas a alegram novamente. — Então, se eu vou com o Rory e você vai com o Peeta... Ele pode vir encontrar você aqui, afinal?

Eu afasto uma ondulação do cabelo dela, que caiu em seu rosto, e enrolo a mecha de fios loiros em meu dedo.

— Primrose... No que está pensando?

— Apenas em coisas boas.

Ao me encarar, Prim comprime os olhos para protegê-los da incidência dos raios do sol. Suas bochechas rosadas continuam tão adoráveis quanto na época em que era uma garotinha. Em seguida, passo meus braços em volta dela, apoiando sua cabeça em meu ombro. Ela me abraça apertado, antes de inquirir:

— Você se sente mais próxima do papai quando está aqui? Eu me sinto assim quando você me abraça dessa forma. O papai sempre se ajoelhava para ficar da minha altura e me aconchegar nele, como você está fazendo. É o jeito Everdeen de abraçar.

Depois de ouvir isso, é difícil largá-la. Prim, afoita, desvencilha-se suavemente do meu aperto para sair correndo com o objetivo de convocar Peeta para vir até o lago.

Em alguns minutos, ele aparece no meu campo de visão, tão bonito e atraente, que tenho certeza de que os gritinhos alvoroçados vindos do grupo de adolescentes têm alguma relação com a sua aparição. Eu aceno para que se aproxime.

Fico parada onde estou, observando-o avançar. Tenho que reconhecer que Peeta mexe muito comigo, sobretudo quando ele interrompe seus passos e me espreita intensamente a certa distância.

Nesse instante, ele me presenteia com um daqueles sorrisos que bagunçam tudo dentro de mim, derrubando os muros que construí ao meu redor.

Um sorriso sincero se descortina no meu rosto também, pela vontade simples e despretensiosa de sorrir por sorrir.

Peeta entreabre os lábios, perplexo. Pelo visto, ele estava mesmo esperando encontrar uma descompensada depressiva. Felizmente, isso não o impede de vir até mim com passos largos.

— Gostaria de saber o motivo desse sorriso. – A voz de Peeta chega até meus ouvidos, suave e acolhedora.

Meu coração está batendo descompassado. Pela primeira vez desde que eu o reencontrei – sim, como Annie disse, foi um reencontro –, reconheço com clareza o que sinto e sei o que eu quero. E eu quero tanto dizer que ele é o motivo do meu sorriso, mas não sou capaz de formar as palavras certas em minha boca.

— Boa tarde! – desejo sem jeito, mas ainda sorrindo, ao vê-lo contornar o salgueiro para alcançar a beira do lago.

— Está mesmo uma bela tarde – concorda ele, olhando em meus olhos.

Peeta caminha para mais perto e a brisa desordena seus cabelos. Suas mãos, camisa e bermuda estão sujas de terra e de graxa. Entrego a ele a toalha em que estava sentada para que possa se limpar.

Sem tirar suas mãos do tecido felpudo, Peeta toca seus lábios em meus cabelos carinhosamente e eu enlaço meus braços em torno dele.

Em nenhum momento, ele tenta me beijar. Eu admiro o seu modo de respeitar o meu luto. Peeta não veio em busca de nada além de me confortar.

— Acho que você gostaria de saber que sua mãe adorou meus cupcakes - sussurra ele.

— Eu estava errada sobre hoje não ser um bom dia, não é?

Peeta solta a toalha e me estreita mais em seus braços.

— Fiquei preocupado – afirma de modo sério. — Estou feliz que esteja bem.

— Obrigada pelo cuidado e pela ajuda – agradeço. – Por trazer Prim e por trocar o pneu.

— Não fiz nada demais.

— Fez mais do que imagina – confesso.

Ele me solta, distanciando-se o suficiente para divisar minha face corada, e afaga meu rosto.

— Esse lugar é lindo – desconversa ele, percorrendo os olhos pela paisagem. — Você pretende ficar mais um pouco?

— Bom, acho que já perdi o almoço. Se você puder ficar, temos tempo até a hora da janta – brinco.

— Não se eu tiver que providenciar as sobremesas mais uma vez – Peeta adverte.

— Eu não acredito que perdi o almoço da Hazelle e as suas sobremesas! – exclamo, com ar de falsa indignação.

— Prim contou o que aconteceu. Quem manda não carregar a bateria do celular? – Peeta me repreende, estendendo-me a sua mão. — O Chaff me disse que você gostava muito de brincar aqui no balanço da árvore. – Ele me conduz até onde está pendurado o brinquedo rústico. — Vai lá.

— Não sou mais criança, Peeta.

— Mas pode se divertir como uma delas! – Peeta segura a corda do balanço e os olhos azuis parecem conter um brilho a mais, quando acato sua sugestão, mesmo totalmente encabulada.

Então, Peeta me impulsiona levemente para a frente. Exalo o ar com força e movo minhas pernas e meu tronco para ajudar o balanço a ganhar altura, mas não muita.

As cordas que o mantém preso à árvore continuam seu ir e vir, alterando ligeiramente o ângulo do cenário à minha volta a cada segundo. Antes que eu me contenha, viro a cabeça para trás em direção a Peeta.

Ele está descalçando os tênis para andar até a margem do lago, com a intenção de molhar os pés e lavar melhor as mãos, ainda manchadas de graxa. Depois de esfregar os rastros escuros entre seus dedos, ele ergue o corpo e meu olhar vagueia por seu belo torso até me deparar com a admiração recíproca nos olhos dele.

Abaixo a cabeça rapidamente e, após aproveitar por um tempo a sensação gostosa do vento despenteando meus cabelos, arrasto os pés no chão até parar totalmente o movimento do balanço. Peeta chega perto e agacha-se à minha frente, apoiando os braços sobre minhas pernas. Eu afago seus cachos dourados e me inclino para beijar-lhe a boca.

A princípio, há um breve roçar de lábios, mas ele sobe seus dedos por meu pescoço e minha nuca, buscando e alcançando algo mais profundo, mais forte e mais entregue. E logo somos um só fôlego, um só movimento, uma só saliva.

Peeta cola apenas os lábios nos meus uma última vez e se levanta do chão. Eu o acompanho e fico de pé à sua frente. Ele entrelaça nossos dedos e encosta a ponta do nariz no meu.

— Ficar assim com você é tudo o que eu quero, agora e sempre, mas preciso saber como você está... Eu não perdi um dos meus pais, como aconteceu com você, mas imagino como deve ser difícil, mesmo depois de tanto tempo.

— É uma dor contínua, sabe? Uma dor incessante que sinto há dez anos. – Abro meu coração ao entender que é isso o que ele espera que eu faça. — Por todas as vezes em que meu pai não vai cantar pra mim, ou me dar conselhos, ou simplesmente me olhar daquele jeito único, piscando depois de alguns segundos, só pra me fazer rir. São tantas lacunas, tantas perguntas que eu nunca poderei fazer...

— Eu sinto muito – Peeta diz, olhando-me atentamente.

— Todos pensam que eu sou mais forte que Primrose, mas acho que minha irmã consegue lidar com esses questionamentos e essa ausência melhor do que eu.

— Tive uma impressão diferente. No caminho pra cá, ela me disse exatamente o que você está sentindo, só que com outras palavras. Ela contou que daria tudo por mais uns instantes com o pai de vocês, para perguntar tudo o que gostaria de saber e amenizar essa sensação de vazio.

— Prim disse isso? Minha irmãzinha... Ela não deve tocar muito nesse assunto, pra preservar a mim e à minha mãe.

— Falando em sua mãe... Eu tentei evitar, mas Prim acabou me apresentando a ela, quando fui buscá-la. – Peeta respira fundo. — Isso foi ruim? Eu não gostaria de atropelar as coisas entre nós.

— Está tudo bem. Eu estranharia se Prim não tivesse apresentado você a toda a vizinhança...

— Hã... Bem, ela fez mesmo isso.

— Ai, não quero nem pensar no que você e Primrose conversaram até chegarem aqui! Ainda bem que o Rory estava junto para equilibrar os assuntos! Hoje de manhã, a imaginação fértil de Prim já nos garantiu cinco filhos rechonchudos.

— Pelo visto, eu e Prim concordamos em muitos pontos – provoca Peeta, sorrindo de lado. — Mas, voltando a falar sério, mesmo tendo pouco contato com sua mãe, eu achei que ela está bem.

— Agora sim, mas nem sempre – esclareço. — Ela teve depressão e acabou se isolando por muito tempo.

— E quanto à família dela?

— A família dela somos apenas eu e Prim.

Peeta faz uma expressão de incredulidade e, ao mesmo tempo, de tristeza. Então, pela primeira vez, narro para alguém o que aconteceu no passado, desde o abandono sofrido pela minha mãe até a minha tentativa frustrada de me aproximar dos parentes dela.

— Eu não consigo acreditar que ele poderia tratar você assim...

— Você conheceu o meu avô? Aquele homem?

— Sim! Quer dizer... Talvez. Eu só não consigo acreditar que seu avô e esse homem que destratou você na farmácia sejam a mesma pessoa.

— Mesmo que não sejam a mesma pessoa, isso não faz muita diferença.

— Talvez faça, Katniss – Peeta desabafa e há uma leve nota de desolação na sua voz. — Não estou dizendo isso da boca pra fora. Alguém muito importante pra mim está entre a vida e a morte na Inglaterra. Ele é como um avô pra mim. Na verdade, ele é o s... – Peeta engasga ao falar e fica evidente a sua dificuldade em concluir a frase, por algum motivo além da emoção.

— Não precisa dizer, se não quiser. Ou se não puder. – Ponho meu dedo indicador sobre os lábios dele. — Eu apenas queria poder garantir que tudo vai ficar bem.

Sinto o aperto em minha outra mão se intensificar e os olhos marejados dele ficam impregnados de esperança.

— Vai ficar tudo bem, Katniss – murmura Peeta, antes de me puxar para os seus braços mais uma vez.

Com o rosto apoiado em seu ombro, eu me permito fechar os olhos e inspirar seu perfume sem que as algemas da insegurança me condenem por fazê-lo.

Afasto-me do seu peito para fitá-lo e ele envolve meu rosto com suas mãos. Nossos olhares se cruzam, alcançando uma ligação de almas que se descobrem e que, depois de uma busca árdua, encontram-se em casa.

Estendo a mão para tocar sua bochecha e ele a pega e pressiona contra seus lábios. Lembro-me do meu pai fazendo isso com a minha mãe.

Peeta me dá mais um sinal de que tudo entre nós se encaixa, de que é aqui o meu lugar. Então, falta apenas uma única questão que deve ser esclarecida.

— Fica comigo? – pergunto e me asseguro de que o que estou pedindo não é apenas porque estou sentimental demais no dia de hoje. Não é apenas o momento de fragilidade que está me fazendo acreditar que sustento sentimentos intensos por ele.

— Sempre – Peeta declara e sorri, como se fosse ficar feliz em permanecer ali me olhando por toda a eternidade.

Nas árvores ao redor, posso ver um bando de tordos se movimentando, trocando melodias para lá e para cá entre eles. Tudo à nossa volta se torna vivo com o som que eles fazem.

Os lábios de Peeta tocam os meus, enquanto o canto dos pássaros enche o ar. As notas lançadas pelos tordos se sobrepõem, uma complementando a outra, formando uma harmonia linda e misteriosa. A música ao redor cresce e eu reconheço este momento como um daqueles que meu pai apreciaria muito dividir comigo.

Mais uma vez naquela tarde, eu sorrio por sorrir. Onde quer que esteja, meu pai está feliz por mim.

Eu amo você, pai, cada dia mais.

E estou feliz também.


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Notas finais do capítulo

Olá, pessoal!

Dessa vez, nem vou me autopenitenciar pela demora, porque as melhores ideias para o capítulo surgiram de última hora.

Deu pra perceber que Peeta guarda um segredinho (talvez mais de um)?

Vou trabalhar isso mais adiante (Obrigada, Sel, por me ajudar a definir o que fazer!).

Primeiro, vou fortalecer esse vínculo lindo que está se formando, a não ser que estejam enjoados de romance…

Se eu demorar a atualizar, é porque vou me dedicar um pouco mais à minha outra fic “A Redenção do Tordo”, que já está na fase final.

Desejo a todos um Feliz Natal e um Ano Novo repleto de conquistas!

Querem me dar um presente? Deixem um comentário, um coraçãozinho que seja… Esse carinho é meu maior incentivo!

Beijos!

Isabela.



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