Parada obrigatória escrita por Aiori Von Satts


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ^^



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Trem-Bala

Quando você pisou aqui, entrou sabendo da saída fácil. Mas, claro, essa situação nunca pareceu um obstáculo. Era apenas outra passagem entre ocupado e ocioso.

Não é?

Começou com uma curva. Nada brusco, nada acentuado demais. Naquela leve dobradura do caminho, tão leve e tão significativa quanto o bater de asas da borboleta do caos, seu corpo foi movido para o lado. A dormência em sua bochecha encontrou o ar quente e relaxou, assim como a mulher sentada no banco à sua esquerda.

— Calma, bebê. Já passou.

Ela estava certa. O ponto final havia sido definido. A verdade, no entanto, nem sempre é boa. Talvez, por saber disso, o aperto dos braços dela ao redor do filho se intensificou. Pareceu intuição materna já que, no segundo seguinte, todos no grande e pesado veículo foram jogados uns contra os outros.

Não demora nem um segundo para os gritos começarem. Altos, cada vez mais altos, vindos de todos os pontos cardeais. Você abre seus olhos pela última vez e o mundo, antes horizontal, surpreende-o pela verticalidade. A bochecha relaxada voltou a encontrar o vidro da janela, arrastando consigo o resto de seu corpo que, embora você não pudesse ver, estava cheio de fraturas.

E assim o cansaço te atinge. Sem escudos entre o golpe e sua mente, ele cai todo de uma vez: as noites não dormidas e os dias mortificados; as horas extras em frente ao celular, porque só mais um vídeo não teria importância; os anos gastos no curso superior que te fazia infeliz e o “obrigado” quando seu pai demandou “esqueça os sonhos de sua mãe e viva os seus”. Triste como, mesmo vivendo arduamente, alguns deles ainda te acompanhariam para o outro espectro da hora derradeira, incapazes de ser realidade.

O tempo corria, escorria, esgotava-se. No fundo de sua inconsciência a ampulheta de sangue era nítida. Lágrimas ou sorrisos. Qual escolheria?

Você sabe que quer fazer os dois, então, inteligente como sempre, decide por sua fusão agridoce. Ternas alegrias e amargos infortúnios se juntam numa dança de memórias que te embala, a chuva, a fumaça e o cheiro de gasolina lá de fora se juntando nessa tarefa.

No vestido multicolorido da felicidade estão os corações onde você continuará respirando, ainda que intangível; estão os abraços dados de bom grado e os beijos desesperados, afinal, os intervalos eram curtos demais para aproveitar corretamente aquele amor; estão todas as suas conquistas expostas em uma estante de troféus e também os momentos onde, mesmo não sendo o vencedor, você conseguiu aprender lições valiosas.

Enquanto os tons pastéis daquele usado pela tristeza eram um contraponto necessário, ainda que indesejado. Ali são projetadas as brigas com seus pais, amigos e amantes; as noites em claro sobre sua cama, em posição fetal, mostrando que, sim, você estava magoado; o seu coração partindo quando sua mãe não aceitou seu relacionamento, nem seu casamento e muito menos o filho que vocês adotaram, pelo simples motivo de ambos serem homens e, vários anos depois, partindo-se outra vez ao ver seu caixão coberto por terra.

Os movimentos daquela coreografia nostálgica iam ficando mais rápidos, deixando o contraste para convergir e uma união, acompanhando a música que ia de respingo a tempestade. Junto a eles seu coração se fatigava, tentando, em vão, bater forte o suficiente para ver o próximo nascer do sol. Ele sabe que não vai chegar lá, mas ainda tenta, porque você também tenta deixar de ver esse espetáculo particular acontecendo no seu palácio da memória. Você quer ver a explosão acontecendo do lado de fora da carcaça do ônibus. Quer manchar as dançarinas com mais acontecimentos. Você quer e não pode. Então deixa de desejar.

Seus pulmões param. Sua pele já não sente mais a pressão da gravidade. Os batimentos…

Seu coração pode desistir?

Você pondera. Parado ali, deitado de forma desconfortável, pode ser que não tenha atingido o topo da pirâmide da vida, cheia de armadilhas e tesouros escondidos. Mas era mesmo o topo onde almejava chegar? No processo da subida as surpresas e os presentes foram o suficiente para atingir a satisfação. Afinal, o topo é superestimado e, no seu caso, relativo.

Com essa decisão, a plenitude substitui a fadiga. A expressão de seu corpo, a poucos segundos de se tornar outro cadáver naquela caravana de vítimas de um acidente, suaviza-se, a calmaria da alma refletindo no rosto de carne e osso.

Alívio, orgulho e aceitação acompanham o sussurro final de seu espírito. “Sim”, ele diz. “Sim”, ecoa o coração, obediente.

Tudo termina, com exceção da dança. Ela se recusa a parar, mais e mais e mais veloz, o volume de atos feitos e recebidos motivando-a, até que se torna um borrão. Com aquela velocidade de trem bala já não é mais possível ver o que você viveu, embora os sentimentos continuem presentes. “Esses se manterão junto a ti para sempre. São fiéis até na minha chegada”, garante a morte, cuidadosa, calorosa e preocupada.

Ela te envolve, te carrega no colo. Seu aperto traz o carinho da infância no interior, a paixão da adolescência, a independência da vida adulta e a sabedoria da curta e promissora velhice; inúmeras sensações condensadas em dois braços metafóricos. Representa todos os abraços que não estão ou não estiveram ao seu alcance; todos os abraços que você ainda desejaria.

É reconfortante e aconchegante. Sem notar suas ações, você a deixa te envolver. Mais apertado, mais amoroso, mais profundo… até que não existem mais divisões. Não é possível saber onde a morte começa e você termina. Não há fim e, honestamente, quem se importa? O fim da vida é o único fim necessário.

Vocês são infinitos e apenas seguem em frente, rumo ao tudo, ao nada e ao incerto, escrevendo um caminho sem rastros ou pegadas. Um vislumbre das dançarinas ainda pode ser visto, tão longe que seus olhos não se prendem nele. O que precisava absorver de todo aquele espetáculo já está em si, construindo algum pedaço de seu extenso e incorpóreo ser.

No entanto, a última mensagem delas, gritada para cobrir a crescente distância entre vocês, fisga sua atenção. São dizeres óbvios, uma certeza universal, mas encerram de vez o estágio da vida:

— Todos são apenas passageiros prestes a partir.


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Notas finais do capítulo

Meu mais sincero obrigada para a Giovana, minha beta nesse trabalho, que foi um amorzinho durante todo o processo ♥
E a você, por ter lido até aqui.



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