Prelúdios Etéreos I: A Ascensão escrita por Raffs


Capítulo 34
Capítulo 33


Notas iniciais do capítulo

Oi?



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Capítulo 33

Sonhar já era quase divertido para ela.

Nos dias recentes, sua mente resolvera colaborar. Finalmente seus desenhos pareciam partilhar de alguma conexão: aquele símbolo. O círculo com uma cruz e um semicírculo estava presente em todos os pesadelos que tivera recentemente, e até mesmo em alguns sonhos bons.

Com os devidos instrumentos em mãos, pôs-se a procurar pelo símbolo em qualquer lugar que fosse possível. Em todas as salas de aula, em todos os livros, em todos os altares… qualquer lugar onde a simbologia pudesse ser minimamente importante. Notara a semelhança das formas com alguns elementos alquímicos, então nos últimos dias suas idas à Biblioteca em busca de livros de alquimia eram constantes, mas até então infrutíferas.

Amanhecia e estava novamente na praça. Parecia que tinha encontrado o lugar perfeito para si. Só precisava desaparecer quando a praça fosse inundada de pessoas, o que ainda tomaria mais uma ou duas horas. À distância, os turmalines sob a árvore acenavam novamente. A árvore, por sua vez, continuava verdejante.

Era estranho ter passado por todo o inverno e não ter visto o menor sinal de neve naquele ano. Elyrasia tinha um clima incomum. Mal se lembrava de ter usado agasalho nos últimos meses. Embora o seu cachecol verde-escuro sempre estivesse consigo, mais por esconder seu rosto do que para mantê-la aquecida.

Continuou folheando o Scripta Chemea Factoram, embora por vezes o máximo que conseguisse entender do livro fossem as figuras. Syralic era mesmo uma língua esquisita; já tivera aulas domésticas do idioma, e questionava-se desde então se a dificuldade em pronunciar palavras estrangeiras era parte da maldição dos feciter.

Maldição? Giselle sempre tentara convencer a filha de que um termo melhor seria condição, embora esse tipo de eufemismo acabasse soando ainda mais ofensivo para a garota. A História já se encarregara de ensinar a todos os feciter que eles descendem dos mais notáveis pecadores que Navaar já vira. Aceitar isso não era um problema para Sophie. Só não tinha a menor disposição para lidar com quem não partilhasse da maldição e trouxesse seus julgamentos pessoais para o assunto.

De volta ao livro, desconfiava que Lilienne Montavert, a syrel que escrevera a obra cento e cinquenta anos antes, tinha um método diferente para categorizar os elementos… não através dos astros, tampouco usando a transmutação: ela ordenou os elementos com um viés muito mais técnico, como a massa, disposição cristalina e interação óptica de cada material. Talvez por isso a mulher fosse considerada um gênio em seu tempo. Segundo sua tabela, ela conseguia prever elementos que nunca foram encontrados por mortal algum!

As páginas seguintes conjecturavam sobre as propriedades dos “elementos virtuais”, como Lilienne chamou em sua obra os materiais ainda não descobertos. Ainda mais interessante, ela atribuiu aos elementos virtuais alguns símbolos, baseados nas suas semelhanças com outros elementos. Um deles, logo após o ouro, despertou a atenção da garota. Tirou da bolsa seus desenhos e comparou ambos os símbolos. Eram semelhantes, embora a versão do Scripta fosse um mero rascunho. Tentou procurar novas menções ao símbolo, mas pouco encontrou além de uma comparação daquele elemento virtual com o chumbo, tratando-os como opostos

De toda forma aquilo era um avanço. Fechou o livro, deitou-se na grama e quase vibrou, se não soubesse que aquilo só significava que estaria mais ansiosa nos próximos dias de ávida e incessante pesquisa. Olhando para o céu que pouco a pouco se azulava à medida que Ynvaar se elevava rumo ao poente, soltou um longo bocejo e se espreguiçou. Há um bom tempo não olhava nos olhos um espelho, mas imaginava que suas olheiras já chamavam atenção. Felizmente não falava com ninguém há uns dois dias. Essa informação veio com um clique em sua mente, e por precaução falou algumas palavras sozinha:

— O céu está bonito – pronto. Sua voz continuava lá. Esperava não ter sido ouvida por ninguém, expectativa que caiu por terra quando notou o rouxinol-púrpura ao seu lado, observando-a com curiosidade. Sentiu-se intimidada, mas depois deitou-se de lado e sorriu para o pássaro. Após alguns segundos de desdém, ele bicou a terra e saiu voando em direção à árvore dos turmalines. O grupo estava concentrado numa cantoria suave que só então Sophie notou que permeava todo o ambiente. Tentou cantarolar junto com eles, mas se perdeu num trecho mais alegre da melodia e voltou aos seus pensamentos.

Percebeu alguém sentar atrás de si, um pouco acima no declive em que estava deitada.

— O céu está bonito, não está? – uma voz masculina tímida disse.

Virou-se e viu um garoto rechonchudo de feição bastante amigável. Tinha o cabelo marrom preso num coque, apesar de algumas mechas escaparem e cobrirem seus olhos devido ao vento. Estava lendo um livro de capa vermelha e suas mãos grandes cobriam o título da obra. Após uma fração de segundo, Norne o reconheceu.

— Você estava aí há quanto tempo, Cerin? – não gostava nem de pensar na ideia de ter sido ouvida pelo garoto. Preferia que as frases coincidentes fossem apenas uma zombaria do destino.

— Acabei de chegar. A-algum problema?

— Hã… sei lá. Tem tanto espaço aqui na praça. Por que se sentar logo atrás de mim?

Ah, eu tô incomodando? – ele largou o livro e agitou as mãos – Desculpa, eu não queria… 

— Tanto faz, agora. – ela resmungou. Não queria ser incomodada, mas começava a aceitar que como muitas outras coisas da vida, essa era sua sina. Quanto mais tentava manter-se discreta, mais gente aparecia querendo conhecê-la… 

— Tá bom, então. Se você diz. – Cerin pigarreou – Olha, eu só queria te dizer… – lá vem, pensou ela – que você foi incrível naquele dia.

— Que dia?

— Aquele… em que você me emprestou sua lente. Sabe? Você peitou o babaca do Glenn e tudo mais, mesmo com aquela enxaqueca… 

— Eu não estava com enxaqueca, nem tentei peitar ninguém, mas… 

— Parecia. Foi o que o pessoal comentou.

— Que pessoal? 

— A turma. De Alquimia. E a de Geografia também.

— Isso não diz muito. Que pessoal? – Sophie intimou, agora de forma mais enfática.

— Sei lá, todo mundo? Você faz perguntas complicadas.

— Só… só avise a todo mundo que eu não estava com enxaqueca.

Huh… tá bom.

— E… Cerin. – soltou após um minuto – Obrigada. Eu sempre me divirto fazendo gente babaca passar vergonha.

Ele segurou o riso, mas não falou mais nada.

Norne olhou novamente para a grande árvore. Os turmalines haviam acabado de levantar-se. Saíram da sombra da árvore e começaram a se esticar em direção à luz do sol. Próximos dali, alguns estudantes e Oficiais praticavam atividades semelhantes. Lembrou-se dos dias em que era forçada pela aia dos Norne a fazer sua caminhada matinal pelos jardins da mansão. Não que Sophie gostasse tanto assim de ficar trancafiada no quarto, mas se aquele era o máximo de liberdade que tinha, preferia esperar a maioridade para sair de casa. Não podia dar um passo que não fosse ordenado pela mulher. A aia a repreendia até quando tentava tirar algum proveito da caminhada e colhia algumas flores para experimentos. Não sentia falta de Salisbeth. Quando Sophie tinha dez anos, entrou em uma crise e falou coisas que assustaram a criada. Ou pelo menos foi o que ela alegou a Eddarus; a menina não se lembrava de muito. Betty nunca mais voltou depois daquele dia.

— Pega! – ouviu um grito desesperado. Antes que pudesse sequer processar a frase, um projétil redondo veio a toda velocidade da sua direita. Ouviu o zumbido do objeto se aproximando, mas teve tempo apenas para olhar e desviar poucos centímetros para trás, assustada, o que não a salvou de ser atingida no rosto. Pelo menos não fora em cheio. – Foi mal! – gritou novamente a mesma voz. Afagando constrangida a própria bochecha, Sophie olhou para a direção de onde vieram os gritos e viu Arthuel Cyriac se aproximar correndo. O garoto estava de faixa azul na cabeça, camisa folgada branca e calções azuis mais curtos do que o usual. Em ambas as peças de roupa, o símbolo da Grande Academia estava bordado em dourado e branco.

Sophie não sabia nem o que dizer. Até cogitou falar que não fora nada de mais, mas primeiro: estava doendo; segundo: viu parados atrás do garoto Harry, Ian e Adel, calouros como ela e Arthuel. Aqueles três tinham feito sua fama em pouco tempo como acadêmicos; como Glenn, tinham gosto por colocar os outros em situações constrangedoras. Foi graças a Adel e Glenn que Sesammus sofrera um entorse no pé durante o evento algumas semanas antes. Se Sophie se lembrava bem, também fora Ian quem soltara os cavalos durante uma aula de Montaria que deu muito errado no início do ano. Naquele momento, era nítida a vontade de rir estampada nas faces deles. 

Os dois imbecis se vestiam semelhantemente a Cyriac. Já Adel usava um casaco azul com o mesmo símbolo bordado, grande o suficiente para encobrir suas pernas, e uma calça mais justa de corrida. Tinha um apito pendurado através de um cordão no pescoço e… um quepe militar azul na cabeça. Um rabo-de-cavalo cor de terracota se projetava atrás do chapéu idiota.

— Ei, Sophie… – Cerin também largou o livro e se aproximou, nervoso.

— Você está bem? – Arthuel perguntou, ofegante. Estendeu a mão para ela, mas rapidamente entendeu a recusa silenciosa – Desculpa. A gente estava jogando, aí o Ian jogou forte demais e… 

— Foi mal, Norne! – Ian gritou. O moreno era alto, com queixo e mandíbula bem definidos e tinha ombros e braços largos, em contraste com as pernas mirradas. O sorriso estampado na sua cara não indicava o mínimo sinal de arrependimento – A gente não tava mirando em você! – os dois ao lado dele olhavam para Cerin como se estivessem prestes a explodir. 

— Esses são seus amigos, Cyriac? – ela ignorou o incômodo na bochecha para cutucar o colega. – Sério?

Huh… ele pediu desculpa, não pediu?

— Quantas vezes você já viu Ian pedir desculpa de verdade?

— Olha, eu sei que eles são um pé no saco às vezes. Tem todo tipo de gente na Academia. Mas eles são meu time no clube, o que mais eu posso fazer? O Ian não é assim o tempo inteiro. Ele só precisa – olhou para o companheiro, que conversava aos risos com Harry – aprender a… huh… 

— Esquece – Sophie suspirou em desaprovação.

— De toda forma, você está machucada? Se quiser, posso te levar na enferma… 

Esquece— ela frisou. O garoto se afastou.

— Se você diz. Não foi por mal. Até outro dia. – antes de ir, ele fez cara de quem estava prestes a dar uma má notícia – Ei, Sophie. A próxima aula de Saera terá uma prova. Quer dizer, ela não avisou de forma clara, foi mais uma ameaça, mas… sabe como é. Você faltou a última aula, então… – ele voltou a passos rápidos para os seus amigos, agora com a bola branca em mãos. Não sabia se deveria agradecer a informação.

Até então calado, Cerin se manifestou novamente:

— Você estuda com Saera? Eu sinto muito.

— É, eu sei. – a professora de Estudo das Estações era reconhecida entre os acadêmicos pelo rigor quase tirano. Sophie se dava bem com ela, apesar de tudo. Tinha certa simpatia por pessoas ranzinzas.

A sensação de paz do início da manhã se fora. Talvez precisasse mesmo ir na enfermaria mais tarde.


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