Prelúdios Etéreos I: A Ascensão escrita por Raffs


Capítulo 30
Capítulo 29


Notas iniciais do capítulo

Boa noite e boa leitura :D



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As aulas de História dos Povos eram habitualmente movimentadas. Gal sabia como interagir com a turma, mesmo que isso significasse fugir um pouco do assunto. Mas ninguém ousaria reclamar. Tampouco Dan o faria; a aula daquele dia seria sobre os povos nativos da Floresta, e sabia que isso significaria ter todos os olhos da sala voltados para si.

Arthuel estava empolgado, como era usualmente em todas as outras disciplinas. Exceto por Códigos, matéria em que certa vez o colega de quarto revelara ter se arrependido de matricular-se. Mas as tardes em que Gal lecionava, essas ele não perdia por nada. Dizia ser fascinado pelos debates que ela iniciava muitas vezes sem querer.

Até mesmo Melinda Nyctall se deixava levar pela animação de Gal, que nem parecia proposital.

— Então, algum de vocês tem alguma ideia de como responder à pergunta de Melinda?

Icarus levantou a mão.

— Foi na queda do Principado Fantasma – respondeu com firmeza – Ela era o sabre do Príncipe Khan’dir. Desde então, não há registros da Ignis em lugar algum.

Gal aplaudiu discretamente.

— Certeiro.

— Sobrou alguma coisa do Principado hoje em dia? – a pergunta vinha de Fenelle, de quem Dan se lembrava do evento uma semana antes.

A professora de cabelos castanhos ondulados não perdia a confiança em nenhuma de suas palavras. Como poucos Mestres no instituto, não se importava com o título de professora.

— Um pouco. Há algumas ruínas em Aethia, e se você passar por Terriser, verá que alguns edifícios guardam vestígios da arquitetura deles. Mas como tudo que eu ensino, isso é passado. – alguns estudantes riram do comentário – As linhagens do Principado se perderam, e O Vulto a que eles adoravam já não é mais chamado assim.

— Deve haver algum meio de recuperá-los, não? – agora a palavra havia voltado a Melinda – Ouvi dizer que dá para fazer de tudo com a magia  memorial. Até rever o passado.

— Acho que alguém está iludindo você, por mais que eu também tenha fé nos poderes da magia.

— Mas, professora…

— Magia memorial é um assunto muito distante para vocês. Duvido que seja lecionado no primeiro ano.

Arthuel, a três pessoas de distância de Dan, tomou a palavra sem sequer levantar a mão.

— Mas, afinal, isso seria possível?

Gal abaixou a cabeça e assentiu.

— De fato. Não é nada simples, mas é possível reunir memórias e imagens e condensá-las num conjuramento que as projete no aether. É uma variante avançada da magia memorial.

A reação entre os alunos foi imediata, até que Gal tratou de estragar as expectativas e teorias de seus estudantes.

— Mas foram apenas quatro tentativas bem sucedidas de reproduzir o processo em toda a história. Ficarei honrada se qualquer um de vocês algum dia conseguir a quinta.

— O que torna isso tão complicado, professora? Já dominamos a magia há pelo menos duzentos anos – Cyriac continuou tomando a frente.

A maior parte da turma pareceu concordar com os comentários tecidos pelo melhor aluno entre os calouros.

— Quem dera, Arthuel. Já entendemos bem a maior parte das vertentes conhecidas da magia, mas não quer dizer que descobrimos todas as vertentes. Isso apenas transfere a problemática para formas mais complexas e diferentes de se manipular o aether. Até onde sei o maior problema é conseguir um objeto que seja capaz de interpretar as tais projeções.

Danyel estava honestamente interessado.

— Talvez vocês devessem perguntar para Atthos ou Shahim. Eles provavelmente vão corrigir alguma besteira que eu tenha dito.

— Interpretar… que tipo de objeto? – Dan se viu perguntando antes que pudesse hesitar.

— Um Códice, querido kelar. – ela desenhou no quadro um círculo – Há um aqui mesmo, na Academia. Guardado a sete chaves, é claro.

— Com que intuito? – perguntou Melinda, embora três ou quatro outros colegas tivessem dito frases semelhantes.

— Ora – sem motivo aparente, a professora desenhou o símbolo da Ordem de Elyrach ao lado do círculo no quadro – Para guardar nossa história! – ela sentou-se novamente sobre sua mesa – Há cerca de cem anos, o Conselho decidiu que documentos escritos eram perigosos e podiam se perder, então foi decidido que as memórias da Ordem desde a sua fundação seriam guardadas num objeto muito mais seguro. Agora, a pergunta que vocês fariam é…

Ela esperou por alguns segundos constrangedores e silenciosos. Dan tentou ajudar.

— Por que mais seguro?

— Exato – ela deu uma piscadela simpática em direção ao garoto – Códices não são de fácil manuseio. Mesmo que você consiga ativar um, é necessário dominar magia de cataclisma para ordenar as projeções. E o rosto de vocês me diz que a maioria aqui nem sabe o que é magia de cataclisma. Além do mais, ativar um códice pode ser mortal. O nosso carrega um sistema de autodestruição, para o caso de cair em mãos erradas.

— Interessante, Gal. – uma voz conhecida ecoou da entrada da sala. Ninguém parecia ter percebido a porta aberta – É por isso que o departamento de Arqueologia é responsável pela proteção do Praeveros.

Ela parecia feliz em vê-lo. Dan conseguiu ouvir a voz de Arthuel exclamar em tom baixo “Arulus?”.

— Arulus! Bom dia. Veio pedir votos?

Valet resmungou com escárnio. Naquele dia estava com o cabelo preso, e pela primeira vez Dan viu que em suas orelhas havia brincos cor de bronze.

— Não seria tão descarado. Interromper aulas não é do meu feitio.

— Sei bem. – se apoiando em sua mesa, ela continuou – Então, o que deseja tão urgentemente? Já que interromper aulas não é do seu feitio.

Todos estavam voltados para o syrel, mas ele não mostrava nem uma fagulha de intimidação. Seu olhar caminhou por todo o ambiente, vasculhando cada centímetro, como na vez em que se conheceram. Deus quatro ou cinco passos sala adentro, mudando de assunto.

— Fiquei curioso. Como uma aula de História dos Povos chega no assunto "códices"?

A turma emudeceu.

— A curiosidade precisa ser estimulada, não acha? Meus alunos gostam de fazer perguntas, como você e Rodant faziam.

Hm. Tem razão. – ele olhou fixamente para Danyel, que não hesitou em devolver o olhar. – Perdão pela intromissão.

— Qual delas? A intromissão na minha sala ou a intromissão no assunto? – o tom com que Gal falava era amistoso; em momento algum parecia estar repreendendo Arulus, apesar das palavras fortes.

— A que você preferir. Agora…

— Agora… ?

Arulus piscou, como se lembrasse de algo importante de súbito.

— Arthuel Cyriac – falou apressadamente – Fiquei sabendo que ele é da sua turma.

Dan olhou para Arthuel, que deu de ombros, sem parecer entender a situação.

— Claro que é. Um aluno e tanto. Você o viu.

— Preciso conversar com ele – virou-se para Arthuel – Podemos conversar? – a pergunta mais parecia um questionamento direto ao garoto do que um pedido de permissão para a professora.

— Não sabia que são amigos. Ótima companhia para ambos.

Amigos pode vir a ser a palavra certa para isso. Mas, como já estabeleci, eu não interromperia a sua aula, ou qualquer aula, por mera amizade.

— Então qual o grande motivo por trás disso, Arulus? – Gal cruzou os braços.

— Você sabe que eu não posso falar tudo em voz alta, Gal. Ordens e mais ordens e superiores e coisas assim – disse em tom de deboche.

Ela voltou a rir.

— Entendo perfeitamente. Que seja, Valet. Traga o garoto de volta, são e salvo.

Ele fez uma reverência, encurvando-se. A Danyel parecia mais um deboche. O veterano e a Oficial pareciam ter uma relação de piadas internas e cinismo.

— Obrigado. – ele se ergueu – Arthuel. Faria o favor?

Claramente desnorteado, Arthuel levantou-se e caminhou até Arulus.

— Me dê dez minutos. – disse o syrel para a professora, sem olhar para Cyriac.

Os dois deixaram a sala, e todos finalmente conseguiram respirar. Era notável o clima amigável entre Arulus e Gal, mas a mera presença do syrel tinha esse poder de impressionar qualquer um que não estivesse acostumado.

Ela começou a apagar os esboços que fizera no quadro.

— Então, já que o meu simpático ex-aluno quebrou o nosso raciocínio, acho melhor voltarmos para o que devia ser nossa pauta. Danyel, poderia me ajudar com as respostas? Vamos falar sobre a tribo Enqarya, e tenho certeza de que você conhece bem seus antepassados. Uma pena que Arthuel não esteja aqui.

— … é claro. – ele disse pacificamente. Não tinha problemas em falar de sua história, apenas preferia manter-se calado. Só não tinha certeza se seria de tanta ajuda, afinal os kalari eram apenas metade dos remanescentes da história anqari.

Arulus apareceu de novo, espreitando pela porta.

— Gal.

Ela balançou a cabeça em sinal negativo, ainda de costas para a turma e para o syrel.

— O que foi, Arulus?

— Sinto muito, mas vou precisar de outro aluno seu.

Gal virou-se.

— Estou ansiosa para saber qual.

— Danyel Kadrach.

A expressão dela foi impagável.

— Você está fazendo de propósito, não é?

Alguns alunos riram, mas dessa vez não parecia ser a intenção de Gal.

— Não posso fazer muito. Arthuel me disse que ele é necessário, e eu preciso de Arthuel, e os superiores precisam de mim, e… por aí vai – o jeito debochado estava de volta, especialmente quando ele deu de ombros ao fim da frase.

Gal suspirou.

— Desde que você me permita trabalhar. À vontade. – ela olhou para Dan e meneou a cabeça.

Kadrach levantou-se.

— Desculpe, professora – disse, caminhando até a saída.

Ela sorriu para ele, como que relevando o infortúnio. Os outros alunos sussurravam entre si, provavelmente intrigados.

Estavam os três no corredor, fora da sala.

— Para quê… ? – perguntou a Arthuel.

— Ótima pergunta – Arthuel revirou os olhos.

Arulus pôs uma mão nas costas de Dan. Usou a outra para cumprimentá-lo com um aperto de mãos.

— Já faz um tempo, Kadrach. Gosto das nossas conversas. – disse Valet, guiando-o até o fim do corredor. Arthuel o seguia. – Arthuel disse que você poderia ajudar.

— Ajudar com o quê?

— Mais alguns passos e eu explico.

— Você já estudou com Gal? Parecem gostar um do outro.

— Ela me detesta tanto quanto me aprecia.

Dobraram no corredor à direita e Danyel se deu conta de que estavam caminhando até a varanda. Pelo jeito, era o ponto de encontro preferido de muitos. Estava vazia. Quando lá chegaram, Dan sentiu a brisa tocar seu rosto. Ah, sentia falta de não estar enclausurado entre tantas paredes.

Arulus se apoiou no parapeito e fitou o céu, pondo uma mão sobre os olhos para se proteger da luz. O céu estava ensolarado e as árvores metros abaixo deles mais coloridas, como denúncia da chegada de facto da primavera. O syrel permaneceu naquela posição contemplativa por alguns segundos.

— Detesto o sol – ele disse, uma frase que parecia ser mais para si mesmo do que para os presentes. – Danyel… posso chamá-lo de Danyel, não é? Espero que sim. Não que alguém devesse saber disso, mas eu estou fazendo uma… uma… ? – estalou os dedos para Arthuel.

— Acho que podemos chamar de investigação.

— Investigação. – Valet levou a mão ao queixo – Não é a palavra correta. Muito suspeita. Mas por enquanto vai servir.

— Certo – foi tudo em que Danyel pensou.

— Que seja. Eu recebi ordens para me intrometer em alguns assuntos delicados – apontou para o garoto ao seu lado – Cyriac também. E mais uma dúzia de pessoas que nem vale a pena você conhecer.

— E o que estão investigando?

Meh. Lendas de conspiracionistas.

— Você não parece muito interessado.

— Ossos do ofício, kelar. – respondeu ele, cruzando os braços.

— De toda forma, o que exatamente vocês querem comigo?

— Aclus. – Arthuel resumiu.

— Arthuel me disse que você poderia saber sobre um suposto Aclus Thoryn.

Ele olhou para Arthuel, tanto surpreso como desapontado. Seu olhar dizia “era segredo!”.

— Não leve a mal, Danyel. Não sou um monitor; não me interessa o que estava fazendo. Odeio monitores. A maioria deles – Arulus parecia extremamente centrado em geral, mas por vezes começava a divagar de maneira esquisita.

— Eu não teria contado se não fosse relevante, Danyel. E Arulus é confiável… acho.

— Aclus Thoryn não é flor que se cheire. Os grandões daqui não gostam muito dele.

— Fiquei sabendo. Ele falou.

— Ele o quê?

— Falou. Falar parecia bastante divertido para ele.

O rosto de Arulus mostrava mais urgência.

— Entendo. Lembra-se da aparência dele?

Huh… olhos verdes, cabelo cacheado… eram as coisas mais notáveis.

Valet baixou os olhos.

— Parece com o Aclus de que ouvi falar. Nada bom. Não faz muito sentido que ele tenha se exposto propositalmente. Não depois de todo o esforço que fez para sumir do mapa. Preciso falar com Deimos. Quando o viu?

O kalari lembrou-se do veterano de olhos vermelhos bruxuleantes. Instantaneamente recuou ao ponderar as intenções por trás da tal investigação, caso Deimos estivesse envolvido. Nem um pouco confortável com o interrogatório, independentemente de seus motivos, Danyel deu um passo para trás.

— Acho que não posso ajudar muito além disso.

— Espere. O que ele falou exatamente? Datas? Lugares?

— Ele disse que era um fantasma e que não adiantaria procurá-lo ou se questionar muito sobre ele. E é o que venho fazendo. Caa. Boa sorte na pesquisa.

— Só iss… ei, Kadrach! – já era tarde.

Sem falar mais nada e sem ouvir mais nada, Dan deixou o local. De volta ao corredor, amargou a decepção com Arthuel. Arrependeu-se de ter comentado o ocorrido com o colega de quarto. Não que gostasse de guardar segredos, mas não queria afetar nenhum dos envolvidos, como Elae ou Victor.

Alguém veio atrás dele. Pelo cheiro e pelo ritmo dos passos, era o garoto louro.

— Danyel – pôs a mão no ombro dele – Desculpe. Sei que era para ser segredo. Mas isto é realmente importante. Eu não pretendia falar sobre você, mas Arulus insistiu que qualquer informação seria útil. Eu não… não pensei direito e disse para chamar você. Se quiser, posso contar mais sobre essa investigação mais tarde.

O kalari olhou para trás.

— Arthuel, nós somos calouros. Não somos a solução para os rumos da Academia. Entendo seu fascínio, mas prefiro manter distância de tudo isso – disse em tom suave.

Deixou o colega sozinho ali, sem saber reagir. Quando voltou à sala, a aula já tinha acabado, mas Gal ainda estava ali, sorrindo cinicamente ao ver seu aluno de volta. À noite, viu Arthuel no quarto, calado. O silêncio reinou até a manhã seguinte.


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