Sapatinho de Cristal escrita por Folhas de Outono


Capítulo 2
Capítulo 2




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Mesmo sob as reclamações de meus músculos, cobri-me com um casaco grosso por cima da blusinha branca e de meus colares compridos, um cachecol, botas curtas, uma touca, escondi entre um amontoado de roupas o meu violino que havia contrabandeado dentro de minha mala sem que ninguém percebesse, pois Lady T. não era fã do som do instrumento, e me pus a desbravar o lugar que agora seria o meu lar, mesmo que a passos lentos para evitar a dor.

A cidade era bem calma, bonita e visualmente antiga. Haviam muitas casinhas grudadas umas às outras, construídas com pedras largas ou tijolos alaranjados. Uma grande, cinza e tão rústica catedral se erguia majestosamente no centro da cidade ocupando o espaço de dois quarteirões, aproximadamente. Sua estrutura quase não possuía janelas, e as que ali estavam eram tão pequenas quanto a de um banheiro. Além disso, era tão alto que o seu maior pico parecia quase tocar as nuvens do céu enevoado. Durante o caminho, parei em uma cafeteria, em frente a um grande parque, para comprar um expresso enquanto visitava as lojas e passeava pelas ruas, em uma vã tentativa de superar o sentimento de que congelaria a qualquer minuto. O ar era tão gélido que fez com que meu nariz quase não reconhecesse cheiros, mas ainda podia sentir a sensação de ser abraçada pelos monumentos quase arcaicos. As ruas e vielas eram tão limpas que pareciam ter sido recentemente varridas e apesar de antigas, as casas ainda ostentavam uma beleza singular com suas estacas de madeira formando linhas paralelas e diagonais por toda a sua extensão.

Tudo estava tranquilo, até um prédio saltar diante de meus olhos.

A Escola Vitoriana de Dança e Cordas.

Era robusto, parecia um prédio antigo de bombeiros, com janelas largas, quadriculadas e vermelhas. Sem me conter, adentrei o lugar com o coração tão acelerado que de repente não sentia mais frio algum.

Assim que atravessei o saguão com piso de mármore e uma pequena mesa com computador abandonada no canto esquerdo, avistei uma escadaria, de degraus largos, o piso do saguão continuava por seus degraus e possuía corrimãos de mogno envernizado. Era uma escadaria longa, ao estilo palaciano, se bifurcando em duas quando na metade de sua altura. Retirei minha touca e cachecol e pus-me a subir, seguindo pela direita. Um arco delimitava o fim da escadaria e o início de um longo corredor de paredes brancas. O ar era abafado, parecia haver uma multidão ali, mesmo quando eu estava só. O baque surdo de minhas botas colidindo contra o chão me acompanhavam a cada passo, mas não liguei. Estava muito entretida observando tudo a minha volta.

O lugar em si parecia tão antigo, mas tão novo ao mesmo tempo e tudo parecia fazer tanto sentido junto, que não conseguia imaginar em qualquer outro lugar uma combinação de prédio de bombeiros por fora, com escadarias luxuosas como as que via, dando tão certo juntos. Ainda existiam alguns alarmes dourados no topo de algumas paredes, restos do antigo prédio provavelmente. Mas fora isso, nunca diria que ali, um lugar tão silencioso que posso jurar que se gritasse meu nome ele ressoaria por entre as paredes, já houve tanta emoção e correria para salvar vidas.

Seguindo mais a diante começo a ouvir vozes ralhando e ao fundo, música soando. Sons de objetos ritmicamente colidindo contra o chão. Logo me depararei com várias portas de madeira, de aproximadamente dois metros de altura, todas enumeradas. “Salas de aula”, pensei. As vozes, e sobre elas, o som dos instrumentos, agora me atingiam um pouco abafados, mas definitivamente mais forte. O lugar finalmente parecia uma escola de música. Pude reconhecer o som do piano, um pouco de um violino ao fundo e por fim, um saxofone. Eram sons belíssimos saídos daquelas salas, mas pareciam um pouco eletrônicos ao meu ouvido. Mesmo assim, o lugar era incrível e repente se tornara tão acolhedor e aconchegante para mim, que sei que poderia facilmente passar horas ali sem me cansar.

Voltei ao saguão, me deparando agora com uma recepcionista. A moça deveria ter mais ou menos um metro e sessenta, de cabelos compridos castanho avermelhado, parecia um pouco desesperada com vários papeis nas mãos e seus óculos quadrados escorregavam constantemente por sobre o nariz. Seu corpo era esguio, a menina possuía uma cintura tão fininha e delicada que parecia pertencer a uma boneca. Uma bonequinha com traços orientais nos olhos e nariz. Ela era linda, mas sua beleza era relativamente comum. Mas sua forma de vestir não poderia ser classificada como comum. Ela exibia em seu corpo uma mistura de estampas, através de um shorts preto com bolinhas brancas e uma blusa de listras verticais também pretas e brancas.

“Provavelmente gosta de moda” pensei.

—Com licença.- Me fiz presente.

—Ah, sim?  - Sua voz melódica era forte e contrastante com sua aparência delicada, quase como de uma fada. Não que parecesse com a de um travesti, pois ainda era extremamente feminina, mas parecia que a presença e preenchimento do lugar que sua altura lhe tirava, fora compensado com sua belíssima voz marcante.

—Sou nova na cidade, acabei de me mudar e estava procurando uma escola de música. –Tudo bem, era mentira, mas soou bem convincente.- Como me inscrevo para estudar violino aqui?

—Bom, preencha esses papeis e os devolva com um CD seu tocando alguma música, como uma amostra. –Me entregou algumas folhas grampeadas, um formulário. - Daqui a alguns dias começarão as audições, fique atenta ao correio, é por lá que avisaremos se você foi selecionada ou não para participar dessa etapa. Se for, a carta irá constar a data e horário em que deve se apresentar no auditório da instituição, ok? Você tem apenas alguns dias para o fechamento da inscrição, depois disso, não recebemos mais.

—Claro. Obrigada. –Sorri para ela, era uma garota muito simpática. –A propósito, qual o seu nome¿

—Farry.

—Farry? É um nome um pouco... diferente.

—Pais, vai entender... –Disse simplesmente, sem perder o sorriso carismático que sempre manteve em seu delicado rosto. –Mas se preferir, me chame por Alice. –Sorriu.

—Claro Alice, obrigada pela ajuda. –E então parti.

Cheguei em casa animada, escondi os papeis e o panfleto da escola que vieram junto com o formulário inscrição dentro da blusa. Precisaria praticar minha melhor música para que pudesse ter alguma chance.

Andei pela casa a procura de alguém. Ainda vazia, notei. Ótimo.

Corri para o quarto, guardando os papeis debaixo da cama. Agarrei a alça da case do instrumento e saí quase correndo dali. Não poderia arriscar ser ouvida, então teria de praticar fora da casa. Quando por fim senti o gélido vento bater no meu rosto do lado de fora da casa, me dei conta. Não havia aonde ir.

Já não estava mais em minha cidade e aqui eu ainda não havia feito amizade alguma.

Desanimei.

Joguei nos ombros a caixa acolchoada onde o meu violino estava e me virei de volta para casa, pronta para voltar e procurar algum lugar da cidade para praticar antes de sair com o instrumento e correr o risco de ser pega. No entanto, assim que me virei vi além da casa, a floresta.

Quase institivamente comecei a andar. Não demorou muito e já não era mais possível ver o casebre que deixei para trás. Continuei caminhando a procura do lugar perfeito. Acidentalmente, acabei em uma estrada larga, delimitada por árvores de ambos os lados, algumas ainda sem folhas, cobertas de flocos espinhosos de gelo, outras já vestindo seus elegantes trajes esverdeados. Algumas pareciam uma mistura, cheias de um verde vibrante, mas ainda em parte cobertas de geada. A transição do inverno para a primavera sendo anunciada simplesmente me encantou. A bela floresta enchia os meus olhos, me seduzindo sem deixar que se quer pensasse em abandonar o caminho, forçando-me delicadamente a me afundar dentre a vegetação, agora seguindo estrada adentro.

Quando estava cansada e prestes a voltar, encontrei um pequeno lago iniciando seu degelo. Na beirada, uma imponente pedra soerguia meio metro acima da agua, como se desejasse por um pouco do calor dos raios tímidos de sol que atravessavam as nuvens e tocavam o gelo da parte central do lago. A rocha era plana, e logo me pus a ir em sua direção. Quando já no topo, não contive a sensação de prazer que me invadiu, fazendo meus braços se abrirem em busca da bela sensação de ter alguns raios de sol dançando sobre minha pele, fazendo-a formigar com o delicioso calor que recebia.

Retirei o surrado instrumento da sua capa de proteção. Segurei o arco da forma mais confiante que podia e inspirei fundo o gélido ar ali presente. Observei o horizonte mais uma vez, vendo, vez ou outra, um pequeno floco de neve cair.

Posicionei corda sobre corda e deixei que deslizassem suavemente, como um beijo tímido, deslizando-as para que as notas soassem belas e delicadas. Não foi preciso mais do que isso para que o violino criasse vida e meus dedos pularem, corda sobre corda, criando uma bela melodia que parecia preencher e aquecer a bela clareira a minha frente tanto quanto preenchiam-me por completo.

Deixei-me levar pelo momento, querendo apenas saciar a ânsia de minha alma pelas notas, desejando-as antes que se pronunciassem. Apressa em tocar a melodia me gerou cinco erros, mas nem mesmo eles puderam fazer do momento algo menos perfeito. Sem perceber quando começou, notei que já chorava pela saudade de meu pai, o homem que me ensinou por longos anos a tocar o belo Eagle, que me deixou tragicamente nas mãos de Lady Tremaine. A saudade se tornara tão forte com o passar dos anos, que parecia massacrar meu peito. A dor que sentia em cada vértebra de meu corpo devido ao trabalho forçado dificultava o manuseio do instrumento, mas me esforcei para não deixar com que comprometesse meu desempenho.

Naquele momento, eu senti algo em meu íntimo que já não me acometia a muito tempo: felicidade. Deixei a música me levar por mais alguns instantes, aproveitando ao máximo aquela sensação gostosa e quente em meu peito. No entanto, meus dedos começaram a reclamar, depois a dor se tornou mais aguda e latejante. Tentei terminar a canção, mesmo com as lágrimas que agora se tornaram de dor. Não consegui. Próximo ao fim, interrompi a melodia e guardei o violino junto ao arco.

Me mantive ali parada, apenas observando aquele belo lugar, até me sentir novamente no controle de minhas próprias emoções e então voltei para casa pela estrada que havia encontrado.

“A próxima coisa a se fazer era arranjar um emprego novo o quanto antes” pensava durante o caminho. Isso me livraria das exigências que as mulheres daquela casa faziam, ao menos durante metade do dia. Já era mais que o suficiente por enquanto. Procuraria no jornal virtual da cidade assim que pudesse.

O caminho de volta para casa foi fácil, mas muito mais tedioso do que a ida até a clareira. No entanto, a paz e a energia que sentia emanar da floresta a cada segundo, já fazia valer a pena o esforço.

Entrar no casebre foi como sentir toda a leveza da floresta me abandonar e ser substituída pelo pesado fardo que era a minha realidade. E a realidade é que, assim como o calor aconchegante do lugar me acolheu assim que fechei a porta atrás de mim como se me abraçasse, a voz de Lady T. a me chamar também me atingiu com igual intensidade, sendo seguida do som de passos. Corri tão rápido quanto pude para o meu quarto e joguei o violino para debaixo da cama. Em seguida, tentei voltar o mais rápido possível, mas assim que cheguei a cozinha, estaquei surpresa com sua presença ali. Prendi minhas mãos uma na outra, espremendo meus dedos para que não mostrassem meu nervosismo enquanto forçava-me a sorrir.

Não demorou mais do que alguns segundos para que minhas irmãs chegassem, já jogando sacolas de compras no chão e jogando os seus sapatos ali mesmo antes de irem para o quarto. Senti meu sorriso se desfazer lentamente e junto com ele, meus ombros esmorecerem. Certamente teria que guardar tudo aquilo.

Segui atrás delas, catando os calçados e mais algumas peças que continuavam a jogar pelo caminho, como cachecóis, algumas luvas e uma toca de frio. Coloque tudo separado e dobrado na cama de cada uma antes que recebesse alguma repreensão de minha madrasta. Depois busquei as sacolas, ao tentar pegar todas de uma só vez, fiquei tão coberta que em meus braços não cabiam mais nenhuma alça, nem mesmo um fio dental se tentasse segurá-lo também. A pilha que tive que levar em minhas mãos era tão alta que tampava completamente meu rosto. Afinal, com que dinheiro elas haviam comprado tudo aquilo? Não era justamente por não tê-lo que estávamos naquela casa?

 -Como foi a visita à cidade? Já é tarde, demoraram a chegar. –As palavras soaram tão mecânicas conforme saiam de mina boca que me assustei.

—Ótimo, a cidade é linda, uma pena você não ter ido. Quem sabe na próxima? -Disse Anastácia. Ela estava errada, eu havia conseguido visitar parte da cidade, mas elas não precisavam saber disso, ou ficariam furiosas. –Agora, guarde tudo o que compramos o mais rápido possível.

Derrotada, desanimada e triste, fiz o que pediram.

Consegui me recolher ao quarto quando já passava da meia noite. A cama era dura e rangia a cada movimento meu. O frio castigava os moradores e mesmo com grossas cobertas, ainda sentia meus pés gelados como se nada os cobrisse. Antes de ceder ao sono, capturei o velho computador e abri as páginas com ofertas de emprego. Não haviam muitas opções e como não estava se quer dentro de uma universidade ainda, as minhas alternativas se reduziram ainda mais.

Acabei por enviar o meu pobre currículo para três lojas, esperando desesperadamente que ao menos uma me chamasse para uma entrevista. Logo depois, adormeci.

–˜

O dia seguinte foi cheio de trabalho. Passei tantos vestidos que podia jurar que com todo aquele pano, seria possível agasalhar todas as crianças carentes do país que passavam os dias e noites ao relento. No entanto, bastou o típico som do celular avisando que havia chegado um e-mail à minha caixa postal para que a empolgação tomasse conta de mim por completo. “Deve ser uma das lojas”, pensei.

Discretamente, saquei o aparelho, deixando-o meio tampado abaixo de uma das peças de Drizella de forma que caso alguém aparecesse, não perceberia que estava mexendo no aparelho enquanto deveria estar esticando os tecidos.

“Querida Ella,

Parabéns, você foi uma das candidatas selecionadas para uma entrevista de emprego na Fary Land, a melhor loja de roupas sob encomenda da cidade e a única com marca e estilista própria!

Compareça na nossa loja ás uma da tarde de amanhã para a entrevista.

Boa Sorte! ”


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