Astenia escrita por Lucas P Martins


Capítulo 1
Dom




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Oito anos se passaram.

Se quer saber a verdade, nunca vou te perdoar. Eu não tenho essa coragem depois de tanto enfrentar mentalmente todas as cenas que vivi ao seu lado. Todas as vezes em que baixei a cabeça como um cachorrinho e fiz tudo. Tudo o que você esperava. Tudo o que você retribuiu, mas que hoje tem um gostinho amargo, sabe? Cada beijo tem um gosto meio estranho, parecendo um gole do trago mais agressivo que se encontra numa mesa de bar.

Eu nunca quis que chegasse a esse ponto, com essa cabeça, com todas essas intercorrências. Ficou sempre a dúvida no ar de se eramos de fato amigos, ou aquela cama que dividíamos pedia mais do que uma simples troca de olhares ou um cafuné despretensioso. Eu admito minha incompetência em não ter visto o tamanho da merda que viria. Mas também deveria admitir minha inocência, puerilidade em realmente achar que estava diante de uma amizade que levaria pra sempre.

Pobre rapaz, diria eu.

A tirar uma coragem pra desabafar, atirar uma pedra numa janela que precisaria ser estilhaçada antes que mais alguém fizesse alguma besteira. Tenho dores, sinto sangrar, sinto doer e mesmo assim, também me sinto pressionado contra uma parede que quanto mais se tenta escalar, menos se vê o pico.

Antes eu até acreditava em sentimento. Vivia, sabia que era correspondido, mas era de outra forma. E você também sabia disso, embora insistisse numa amizade que hoje sabemos que não deu em lugar nenhum.

Era amor. E você sabia, eu sabia, todos a nossa volta sabiam, mas você foi a única que preferiu negar e assim machucar a todos os envolvidos no processo. Que outro motivo levaria duas pessoas que diziam ser amigos a trocar carícias, solitários e envoltos numa fina nuvem cinzenta que envolve uma fronteira entre o lícito e o ilícito. A nuvem que tampa nossos olhos, envolve nossos beijos e que nos faz pensar se vale apena sustentar uma versão só pra que os outros continuem afirmando suas ideias mixurucas e ideais mais vazios do que o cacto mais oco do deserto.

Alias, as ideias dos outros parecem um problema né? Esse puritanismo da igreja que frequentávamos que realmente achava que seria um bom plano nos fazer sustentar uma versão de fé era visível que não chegava nem perto de uma verdade consistente. (Aliás, olhando hoje em dia é um esforço bem risível.).

Ideias de um deus que passava muito, mas muito distantes da nossa cama. Distante dos nossos olhares, distante do desejo que negamos. Distante da dor asteniante de se nunca ter amado da forma que ambos mereciam.

Você se esforçou, mas no fim das contas negou o que era latente a todos.

Destruímos muitas coisas juntos. Desfrutamos de muito, vimos muito. Mas esse muito tem um gosto diferente do que tinha antes. Parece até ser melhor que tivéssemos ambos escolhidos viver sem essa verdade e entregues a essa puerilidade falsa que nos envolveu. Nos fez acreditar que estaríamos juntos para todo o sempre, compartilhando desse sentimento dúbio e tóxico. Mas, que aos nossos olhos não tinham nada de mais.

Escolhemos nosso caminho a partir da verdade e infelizmente ela dói. Ela torce o peito como uma faca quente fatiando a mais dura pedra que calça o chão. Limpa, sem rodeios e infinitamente dolorida.

Acreditamos tanto que ela não dói. Que ela fortalece e que nos torna melhores. Mas não. Ela não trás o mesmo alento, o mesmo torpor de antes. O torpor de se merecer e de fazer com que cada troca de olhares, seus olhares agridoces hoje em dia, que antes eram mais deliciosos do que o doce mais gostoso que alivia horas e horas de exposição a fome mais implacável.

A despretensão do seu toque que arrepiava-me, a leveza do seu beijo em minha testa. O percorrer, sem pretensão, de cada centímetro da sua macia pele morena. A cor negra dos seus longos cabelos e cada reação ao mínimo toque e a surpresa de no final, pedir por mais. Mesmo sem nossas bocas nunca terem se encostado, mesmo sem nosso amor nunca ter sido concretizado.

Aliás, ai é que está um ponto. Nunca aconteceu. Mesmo tendo ouvido sua doce voz pedir por mais disto, nunca aconteceu. De quem é a culpa? Não sei. Não parece a mim caber um julgamento minimamente racional, já que a racionalidade não cabe quando um sentimento é tão avassalador.

Tão avassalador quanto destruidor, veio, voltou, passou, ficou até que finalmente se extinguiu após um ato de desespero seu. Palavras que tornaram qualquer coisa que tivemos sem valor.

Nunca devia ter deixado você me ligar aquela noite. Nunca, nem no meu sonho mais cruel e mortífero, ouvir de ti que me quis, que queria me dar prazer, mesmo estando com outro alguém, soou tão bruto e desprovido de qualquer emoção.

Seu desespero acabou mostrando o que eu demorava muito pra entender, nunca houve nada. Nunca haverá nada, pois nunca seremos capazes de amar. Ou pelo menos, de amar aquele que deveríamos ter amado antes de partir.

O que me levou a deixar que você pensasse que eu sou louco? A louca é você. A corroída pelo medo aqui é você. Sempre foi você. Tentando parecer racional, só pra esconder a irracionalidade de um desejo que você mesmo manifestou. Foi patético, mas funcionou. O que atesta minha ingenuidade e meu atestado único de otário.

Oito anos passaram.

Oito anos foram jogados fora.

Só ficou a astenia.

Um beijo que nunca foi dado e que nem nunca será, já que meu coração te quer distante enquanto meu corpo vaga sem destino rumo ao abismo que cavei desde que te encontrei pela primeira vez frente a frente. Suga minhas forças, me atira rumo ao poço do desconhecido e me desnivela pra nunca mais reencontrar a consistência da razão que um dia me fez entender-me como gente. Houve amor entre nós, um amor que se mostrou venenoso. Que mostrou que se pode acabar com tudo, sem ter acontecido nada.

Vaga minh’alma. Vaga pra bem longe. Pra não achar lugar no mundo que te aceite. Pra não achar um que te dê o mesmo braço que ela deu. Vaga pra se desfazer a cada passo que dá. Um inferno merecido. Um destino muito justo a quem nunca mereceu nada.

Restou apenas não acreditar. Se fechar. Destruir com a decepção qualquer instrumento de fé que pudesse existir. Cravar no peito a morte de um sentimento que levou consigo qualquer chance consistente de paz, de sossego, de uma boa noite que sono que seja.

Restou se entregar a uma lenta sucção de forças. Aceitar que a mágoa é melhor companhia do que a sua presença. Aceitar que um dia, não muito distante, talvez nem a morte aplaque o sentimento que existiu, ou que existirá em qualquer um de nós.

Restou uma frieza. Um natural e longo vazio.

Assino a carta no mesmo desespero em que me propôs ficar. Assino para afirmar que ainda pode haver um único fio de esperança que resida em deixar nessa carta tudo o que me aflige e me entregar nos braços da mesma mágoa que há tanto permanecia a espreita, a esperar pela minha companhia.

Preciso deixar tudo aqui. O papel aceita tudo. A sociedade não, a igreja não. O papel aceita essa história maluca que só pode ser o conto mais desgraçado já escrito por alguém em toda a história da humanidade.

 

Assino a astenia. E aceito sua companhia. É o que me resta.

 

Atenciosamente,

Dom.

 

 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado.


Grande abraço,


Dr. Lucas



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