Black and Blue IV - Soon We'll Be Found escrita por Minerva Lestrange


Capítulo 1
"Em Breve Seremos Encontrados"


Notas iniciais do capítulo

https://www.vagalume.com.br/sia/soon-well-be-found-traducao.html
Música inspiração da história para que vocês vejam como elas se completam.

Aproveitem! ;)



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Come along, it is the break of day

Surely now, you'll have some things to say

It's not the time for telling tales on me

Dois meses antes, 02h45min AM

— Venha comigo para Moscou.

Hermione estava pronta para retrucar qualquer coisa que ele dissesse, mas não àquilo. Depois de tudo que havia passado até então, receber uma proposta do tipo vinda de Malfoy era surpreendente. Ainda o era. Nunca passara por sua mente que ele pudesse ser empático a tal ponto. A ajudara, sim, mas era quase uma obrigação por ser ele a tê-la encontrado em uma situação deprimente e humilhante. Apenas um gesto que ainda o provava um ser humano.

No entanto, ele ainda a encarava com feições sérias enquanto Hermione se via, como poucas vezes na vida, sem palavras. Não eram amigos, não eram amantes, não eram nada que pudesse instigá-lo a permanecer firme em tal ideia, mas lá estava Draco Malfoy lhe oferecendo uma ajuda que ia muito além daquela que fornecida até então – ao menos por seu ponto de vista.

— Malfoy, eu... – Forçou um sorriso ligeiro. – Nós nem nos conhecemos direito.

Sentia-se rija como uma corda esticada e, por isso, procurou buscar água para servir a ambos e tentar dissipar um pouco da tensão que passara a habitar o local. Malfoy, por sua vez, voltou-se a ela, apoiando-se contra o balcão, demonstrando-se tranquilo perante a situação, como se já esperasse uma recusa imediata.

— Não a estou pedindo em casamento, Granger. – Ele dissera como se aquilo fosse um absurdo, depositando o copo vazio sobre o balcão. Hermione não discordou, apenas meneou a cabeça.

— Ainda assim, é... No mínimo, estranho. – Ele lhe levantou uma sobrancelha e precisou suspirar antes de encontrar as palavras certas para usar. – Ouça, eu... Agradeço tudo que tem feito por mim, especialmente sobre hoje, mas... Ir para um país completamente estranho com alguém com quem não costumava trocar duas palavras até alguns dias atrás não tornará minha vida melhor, não me fará esquecer o que aconteceu.

Então, em segundos, o viu indignar-se de uma hora a outra, como se o que dissesse fosse uma besteira sem tamanho e ele não acreditasse que estava sendo recusado com tais argumentos.

— Não está fazendo esforço algum para tentar superar ou mesmo esquecer, você... Ultrapassa os dias enquanto espera que um milagre aconteça e acorde, de uma hora para outra, certa de que foi apenas um pesadelo ruim. – Malfoy aproximou-se enquanto ela engolia em seco. – Não foi e você não irá esquecer. Terá que conviver com as lembranças, transformá-las em algo que a torne mais forte e aprender com elas a ser outra mulher, uma que seja capaz de aguentar tudo isso. Do contrário, acabará exatamente como eu lhe disse há algumas horas.

[...] A cada vez que renuncia encarar seu próprio corpo, a vingança de Greyback torna-se mais e mais sólida. Então, chegará o dia em que isso se tornará insuportável, em que essa... Recusa de conviver com si mesma será intolerável. Nesse dia, Greyback terá ganhado.

Ela lembrou-se de suas palavras, fechando as mãos em punhos até ver os nós dos dedos brancos. Draco apenas observava em silêncio o absorver alheio de suas palavras. Ele era bom nisso, ele era capaz de convencer qualquer um com suas ideias, ainda que fossem absurdas porque sabia usar as palavras da forma como queria, para fazer o outro pensar ou ao menos considerar que podia estar certo. Ele era um Malfoy, certamente o poder de convencimento era parte do pacote. No entanto, tinha certeza absoluta de que estava errado em um ponto:

— Não quero ser outra mulher, apenas... Quero voltar a ser a mulher que era.

So come along, it won't be long 'til we return happy

Shut your eyes, there are no lies in this world we call sleep

Let's desert this day of hurt, tomorrow we'll be free

Um mês e dezenove dias antes, 17h26min PM

— Hermione, o que quer tenha acontecido, conte com o absoluto apoio do Ministério.

— O Ministério já fez o suficiente, Kingsley.  

Ela lançou um sorriso mínimo ao Ministro antes de voltar a colocar seus pertences na caixa de papelão. Não tinha ressentimento algum em relação a ninguém, nem mesmo àqueles que a vinham aborrecendo nos últimos dias. A culpa não era deles, não deveria recair sobre ninguém, além dela.

Ainda, esforçava-se para ser sincera em suas palavras, pois sabia que o homem à sua frente, ostentando feições cansadas pelos anos de trabalho excessivo, mas justo e eficiente, não merecia que sua angústia pessoal recaísse sobre ele.

— De qualquer forma, as portas do Ministério estarão abertas para você. Quando quiser voltar, apenas peça. Não queremos dispor de uma funcionária modelo como você.  

Após seu agradecimento formal, Kingsley finalmente se foi e Hermione pôde sentir-se à vontade mais uma vez. O problema não era ele, jamais o seria, mas estar sozinha na presença de qualquer homem que não fosse minimamente íntimo a receava. Não queria ser assim, pelo contrário, queria conter sua reação não amistosa às pessoas que sabia não serem capazes de lhe fazer qualquer mal. Entretanto, sua vontade e suas ações se encontravam em constante divergência.

Encarando o vaso de vidro que tinha em mãos, o qual outrora abrigara peônias frescas e rosadas, sentiu a imensa raiva que a tomava a cada vez que ponderava o estrago que Greyback fizera em sua vida. Ele jazia preso, a milhas de distância, mas ainda assim era responsável pelo início da destruição de sua carreira, algo que sempre sonhara, porém, começava a se tornar difícil de gerir sem a concentração que ele lhe tirara em apenas alguns minutos de uma maldita noite chuvosa.

Assim, quando percebeu, já havia se deixado levar pelo impulso e o vaso se estilhaçava contra a parede de mármore à sua frente, os cacos de vidro produzindo um som agudo quase agonizante ao encontrarem o chão, como uma melodia trágica e especialmente dedicada a ela. Quase poeticamente. Sentia o corpo tremer, ao mesmo em que os ombros se mostravam tesos e doloridos pela tensão que nunca deixava de acompanhá-la.

Fechou os olhos, tentando manter-se controlada, respirando fundo para que se acalmasse e mantivesse a sanidade intacta, ainda que a sentisse se esvaindo sempre que se deixava abater daquela forma, mas foi surpreendida ao ouvir o pigarro conhecido e, pela primeira vez, não bem vindo. Harry estava parado à porta, encarando-a resignadamente, provavelmente após presenciar o momento de evasão de emoções, obviamente não característico da mulher que ele conhecia.

— Precisamos conversar.

Let's not fight, I'm tired

Can't we just sleep tonight?

Dois meses antes, 03h07min AM

Malfoy parecia um pouco desapontado por sua suposta inércia. Entretanto, não via dessa forma a própria resistência à mudança trazida por Greyback. Ela não pedira, ela não lutara por tal guinada. Havia sido repentino e violento, sentia que os dias foram e vieram como um borrão desde a noite em que ele a violara. A sujeira de todo o ato e de como se sentia exigiam que sua rejeição fosse uma reação plausível.

Porém, ele queria que se adaptasse a uma nova realidade. A uma nova cidade. A possível nova mulher que teria de ser a partir dali. Não era uma boa mudança e não queria sujeitar-se ao que o lobisomem planejara desde o princípio, mas Malfoy era da percepção de que, caso não o fizesse, ficaria louca a ponto de não suportar.

— Tudo bem, então. – Ele anuiu lentamente, mantendo aquele olhar sério que lhe dizia que não concordaria com qualquer que fosse seu ponto de vista. – Como pretende ser aquela mulher novamente? Tem algum tipo de plano para ter de volta a vida que tinha antes de tudo acontecer?

O tom de quase escárnio dele a irritava porque fazia com que suas ideias fossem diminuídas, soassem desimportantes e passassem por facilmente descartáveis. Antes de tudo acontecer, nada disso a atingiria, simplesmente rebateria e seguiria em frente. Porém, era comum que tais sentimentos a acompanhassem com frequência e não queria que Malfoy fosse aquele que contribuísse para levá-la ao extremo com isso.

Ele a apoiara, segurara sua mão até que a pior parte passasse, a ajudara em sua pior fase sem pedir nada em troca. Dessa forma, não queria que Draco tomasse um papel antagonista que não era dele, embora sua insistência para tanto fosse notável. Ele não estava acostumado à pele que desenvolvia naquele momento e entendia isso, mas não aceitava, pois queria sua compreensão em detrimento da reprovação e do desapontamento.

— Apenas... Não acho certo apenas me conformar e tentar me encaixar. – Sentou-se em uma das poltronas, analisando detidamente com os próprios dedos da mão pequena demais alisavam uns aos outros. – Ele me estuprou, Malfoy! Me violentou da pior forma que um homem pode violentar uma mulher! Quer que eu mude de cidade para tentar esquecer isso e aceitar, como se fosse algo normal, algo com que toda mulher deve lidar em algum momento da vida e seguir em frente. Quero minha vida de volta, sim, mas não a qualquer preço, entende? Não se para isso tiver que esquecer a mulher que era e me tornar uma completa estranha... Como Greyback queria desde o início!

Quando percebeu, entretanto, se encontrava em pé em meio a própria sala de estar gritando o que achava com os olhos cheios de lágrimas pela segunda vez na noite, pois toda aquela situação a estava deixando à beira da loucura e o reconhecia. Além disso, o fato de Malfoy estar de partida para outro país só estava tornando tudo pior. Acreditava já ter aceitado que ele não tinha nenhuma responsabilidade sobre ela, repetia a si mesma a todo o instante que era uma mulher adulta, capaz de cuidar de si mesma, mas a verdade é que o queria segurando sua mão.

Fungando, enxugou as próprias lágrimas sob o olhar imóvel do homem sério que ele inexplicavelmente se tornara, sentando-se novamente enquanto tentava controlar as ondas de choro que a acometiam o tempo todo. Sentia seu olhar, ainda de seu lugar inicial próximo a pilastra da cozinha, sempre penetrante e quase disposto a desvendar almas, não fosse o latente e constante desinteresse pelo próximo.

— Nesse caso, então... – Ele começou com o tom de voz ameno, escolhendo cuidadosamente as próximas palavras. – Sinto muito, mas não posso mais ajudá-la.

Lentamente, como se estivesse ocorrendo em câmera lenta, ouviu o ruído dos passos dele encaminhando-se em direção à porta. Ecoava intensamente em sua cabeça, quase como uma ilusão sobre a qual não tinha controle enquanto sentia o próprio nariz formigar devido a mais uma onda de lágrimas. Apesar disso, viu-se colocar-se de pé, quase como num reflexo de si mesma, e voltar-se a ele.

— Draco, não... – Não impediu o soluço que veio à garganta e nem o tom suplicante que não era dela. – Não vá.  

Turn away, it's just there's nothing left here to say

Turn around, I know we're lost but soon we'll be found

Um mês antes, 17h35min PM

Hermione apenas respirou fundo e engoliu em seco, apesar de sentir a garganta fechar-se cada vez mais à medida que os intensos olhos verdes de Harry a encaravam de forma piedosa. Apertou a xícara de café à sua frente, quebrando o incômodo contato visual ao levá-la a boca e sentir o sabor amargo do café, degustando o líquido por breves e cobiçados instantes de paz. Desejava, no entanto, que fosse inquebrável, que o tempo e a vida continuassem a tratá-la como uma mulher normal e aquele maldito encontro não passasse de um sonho, mas a realidade, infelizmente, batia à porta nos momentos mais inoportunos.

Reconhecia que vinha lidando precariamente com a mesma, aliás, mas seguia um dia após o outro, como sempre imaginara que seria, lembrando a si mesma que nada do que acontecera a definiria para sempre, que era uma fase que deixaria para trás assim que se sentisse segura o suficiente para retomar sua antiga vida, como gostaria.

A licença de seu cargo no Ministério da Magia era dual. Seus dias eram constantemente pintados por nuances perturbadoras do inferno e do paraíso. Ia do céu ao inferno em segundos, mas aguentava e seguia adiante. Lidando. Esperando. Não sabia o quê, simplesmente esperava. Um milagre, uma revelação, um dia em que acordaria e se consideraria novamente a mulher que se perdera naquela maldita noite chuvosa.

— Hermione, eu... Sinto muito. – Ele alcançou sua mão por cima da mesa. – Sinto muito por não ter estado lá por você, todos esses dias... Eu...

— Não foi culpa sua.   

Sempre imaginara que essa seria a reação do amigo, não podia condená-lo por simples e pacatamente solidarizar-se com ela, com sua situação, mas não queria olhares de pena sobre si. Estivera evitando aquele encontro nos últimos dias com todas as suas forças porque sabia exatamente o que esperar de Harry. Ignorou todas as suas insistentes cartas, assim como a irritante campainha que tocava sem parar minutos após acabar o turno do mesmo no Ministério e os apelos de Ginny para ir jantar em sua casa, pois “há muito tempo não faziam algo do tipo”.

Porém, ele a encurralara na cafeteria a uma quadra de sua casa e não teve como negar sua companhia, pois ainda tratava-se de Harry, seu amigo sempre preocupado com o bem-estar alheio, o garoto que vira tornar-se homem, que considerava quase um irmão. Nesse momento, seu receio não era sobre confiança, mas sobre desconforto e vergonha por contar a ele algo que a fazia sentir nojo de si mesma. Que ainda lhe provocava reações de completa repulsa e, provavelmente, teria quase o mesmo efeito sobre ele.

— Por isso ele foi preso tão facilmente, encontrado desacordado naquele beco devido a uma denúncia anônima... O desgraçado! – Percebeu como o pulso masculino se fechou sobre a mesa, possivelmente imaginando toda a situação. – Se o QG dos Aurores soubesse, teriam procurado por você nas redondezas, prestado socorro...

Harry ainda estava absorto demais para se concentrar em qualquer outro detalhe que não fosse o técnico e entendia porque. Ao contrário de Malfoy, ele não presenciara o estado humilhante em que se encontrava após o ocorrido, ele não vira com os próprios olhos como havia sido realmente machucada por Greyback, não a acompanhara em seus dias mais catastróficos. Não o culpava por isso, aliás, escolhera assim, apenas não queria ouvir sobre algo que poderia ter sido, mas não foi. Então, lentamente fez sua mente desligar-se do que acontecia ao redor até que a voz do amigo se transformasse em um ruído quase inaudível ao longe, permitindo que ele desse continuidade ao próprio monólogo.

Do lado de fora do estabelecimento, por sua vez, notou que as pessoas corriam de um lado a outro, desesperadas para fugir da tempestade prometida pelo tempo nublado e a forte ventania que castigava os cabelos femininos e os guarda-chuvas já abertos para protegê-los dos respingos insignificantes, mas gelados que já precipitavam das pesadas nuvens.

Poderia chorar e espernear, exatamente como a chuva que agora escorria do lado de fora da vitrine, bem ao lado da mesa confortável onde estavam acomodados, mas àquele ponto não resolveria seus problemas, assim como ter contado a Harry só serviria para satisfazer a curiosidade do mesmo a respeito de seu questionável comportamento.

Queria sua vida de volta e não seria assim que a reconquistaria. A única dificuldade era lembrar isso a si mesma sempre que pensava em desistir, recordar as palavras de Malfoy sobre Greyback estar ganhando aquele maldito jogo do qual sequer escolhera participar. Era competitiva, no entanto. Ultrapassava a vergonha, driblava o asco que sentia de si mesma, assim como a raiva do lobisomem por fazê-la sentir-se daquela forma a respeito do próprio corpo, seguindo ao próximo obstáculo. Mais um daqueles que impunha ao próprio caminho.

— Vou a Azkaban e vou encará-lo frente a frente até confessar o que lhe fez. – Declarou Harry em tom frio que não lhe era característico, embora também não fosse a primeira vez que o ouvisse soar daquela forma. – Então, vou fazê-lo se arrepender do dia em que a usou para se vingar.

Não fez menção de impedi-lo ou tentar dissuadi-lo das ideias que tinha em mente, pois o lobisomem merecia. Hermione merecia sua própria vingança e Harry estava disposto a dá-la. Até então, nunca havia realmente odiado alguém com todas as suas forças, mas odiava Fenrir Greyback e agora tinha certeza de que ele pagaria um alto preço pelo que lhe fizera.  

Well, it's been rough but we'll be just fine

We'll work it out, yeah, we'll survive

You mustn't let a few bad times dictate

Dois meses antes, 03h11min AM

“Draco, não vá.”

Não vá embora agora. Não vá para Moscou.

Hermione já não sabia mais a que se referia àquela altura e Malfoy, certamente, alimentava a mesma dúvida. A questão é que ele não era corajoso o bastante para perguntar e Hermione não estava certa o suficiente de suas próprias vontades para dizê-las. Com uma das mãos sobre a maçaneta, então, ele encostou-se à porta, simplesmente esperando.

O que tinha em mente era: a única pessoa que sabia sobre o que lhe ocorrera estava de partida e não queria que tudo terminasse daquela forma estranha e impessoal. Aprendera a confiar em Malfoy em menos tempo do que em qualquer um, pois, naquele momento, precisava desesperadamente de alguém para segurar sua mão e auxiliá-la a driblar a tempestade. Consequente e infelizmente, apegara-se a ele desenvolvendo tal função, acostumara-se ao fato dele estar sempre por perto para dizer que tudo ficaria bem.

Assim, puramente, queria que ele a entendesse. Queria que ele não fosse embora tendo em mente uma suposta ingratidão e possível manipulação de sua parte, quando não tinha nem cabeça para pensar nisso. Queria derrubar aquela máscara de decepção que estampava seu rosto, pois, ao menos uma vez, era ele quem precisava disso e só aconteceria se entendesse seu lado. Queria coisas demais.

— Só preciso que entenda... – Hermione mordeu os lábios, desviando os olhos, pois sentia que, às vezes, as matizes acinzentadas de Draco eram profundas demais para manter contato. – Por que não posso ir embora, porque não quero que você vá embora tendo em mente que sou sua responsabilidade. Eu não sou e nunca tive a intenção de me tornar uma...  

— Mas você se tornou! – Ele teimou, de má vontade, quase indignado. – Evita buscar ajuda a todo o custo, perpetua essa maldita vergonha que desenvolveu sobre o próprio corpo, você não suporta sequer trabalhar, Granger!

— Não suporto trabalhar porque qualquer homem representa uma ameaça a mim! – Nesse momento, ambos já haviam elevado o tom, mas Malfoy pareceu um pouco espantado pelo que Hermione confessara. Haviam conversado sobre seu trabalho no Ministério, em um daqueles dias em que estava especialmente estressada, e tudo que contara fora sobre a incompetência dos funcionários, omitindo a parte em que se sentia sempre desconfortável e ameaçada. – Sinto os olhares me acompanhando o tempo todo e tenho a impressão de que meu corpo está sendo desnudado por eles a cada passo meu. Sempre que vejo um estranho vindo em minha direção penso que tem a mesma intenção que Greyback. Quando divido um elevador com um homem, qualquer um, só consigo respirar novamente quando outras pessoas entram ou quando chego aonde quero. Às vezes, desembarco em um nível com departamentos que sequer sei a serventia apenas para me ver livre dessa maldita sensação.

O olhar de Malfoy foi quase arrependido por tê-la feito chegar àquele ponto e Hermione suspirou derrotada pela admissão que ele sempre conseguia ouvir dela e que sempre a constrangia. A vergonha de confessar que o que Greyback lhe fizera a estava prejudicando no Ministério não era quantificada, pois sua carreira era uma das poucas coisas que ainda lhe orgulhavam, depois de tudo. Mesmo Malfoy, que a conhecia minimamente, sabia disso.  

Hermione costumava ser boa no que fazia, gostava de trabalhar no Departamento para Regulamentação e Controle das Criaturas Mágicas e desenvolver certo serviço social junto às criaturas injustiçadas, em especial os elfos domésticos. Entretanto, nos últimos tempos, a própria paranoia sobre os olhares masculinos a desencorajava, visto que, racionalmente, sabia que nem metade daqueles seriam capazes de cometer o mesmo ato sórdido do lobisomem. Não conseguia se concentrar e, consequentemente, julgava uma suposta incompetência sabidamente inexistente dos funcionários quando o único problema era ela.

Mordendo os lábios, como usualmente fazia quando estava nervosa, encaminhou-se à poltrona próxima à janela, percebendo como uma tempestade, inicialmente não notada, caía pacificamente do lado de fora, tornando a vista para a cidade completamente embaçada. Abraçou os joelhos, ouvindo o ruído de Malfoy aproximando-se lentamente.

— Só preciso que entenda... – Repetiu, distraidamente. – Ir embora não vai mudar a forma como me sinto. Você ir embora também não vai mudar o fato de que é um dos poucos em que confio agora.

So come along, it won't be long 'til we return happy

Shut your eyes

12 dias antes, 08h16min PM

Encarou o objeto que tinha em mãos e levantou os olhos em direção à fechadura de bronze da antiga porta de madeira maciça com entalhes em ferro pesado denotando a origem histórica da luxuosa casa de interior e considerando demoradamente a suposta necessidade pessoal de concretizar a ideia que lhe vinha pesando nos últimos dias.

Não conseguia deixar de recriminar-se por encontrar-se ali, completamente consciente de suas claras limitações em relação a deixar o passado onde era seu lugar. Encarar as chaves da casa de Malfoy durante todos aqueles dias em que a mesma encontrava-se intocada em sua mesinha de centro fora quase como uma forma de se auto torturar. Entretanto, Hermione tentava não ligar para a sensação maçante que vinha acompanhando-a nos últimos dias, pois em uma constante de emoções desanimadoras, uma a mais não faria diferença.    

Stratford-upon-Avon era a prova material de que tudo acontecera e que seus sonhos eram apenas a forma de sua mente relembrar da forma mais perturbadora possível todos os toques asquerosos e não permitidos de Greyback. Ela poderia lidar melhor com o fato, não fossem os pesadelos que a remetiam também a casa para a qual Malfoy a tinha levado e tentado reconstruí-la.

Reconstruí-la, sim. Ele a livrara das sensações, ele lidara com ela em seu pior momento, ele a ouvira quando mais ninguém poderia – porque ela não admitia passar pela vergonha de desabafar com alguém. Ele segurara sua mão, mas levemente, agora via, sempre frouxamente, pois sabia que não estaria ali pra continuar fazendo-o. Este era Malfoy e não deveria ter que lidar com seu lado mais emotivo clamando por mantê-lo ali, se possível, sempre à sua disposição. Este era Malfoy.

Voltar a Stratford-upon-Avon também fazia com que a dor de não tê-lo mais ali se tornasse mais presente, mas também lhe garantia que, por um instante, ele pensara nela, além de apenas em si mesmo. Então, não hesitou nem mais um segundo e, logo, encontrava-se no pequeno hall de entrada com vistas para a sala de estar. Não sabia o que esperava encontrar, mas a sensação de vazio instalada no ambiente intocado desde que Malfoy fora embora não lhe parecia nada reconfortante.

Descartou as chaves e a sacola de compras no aparador ao seu lado, desfazendo-se dos sapatos como se estivesse na própria casa, tentando sentir-se à vontade novamente, embora mantivesse o olhar desconfiado enquanto esquadrinhava todos os cantos possíveis da casa para, só então, apropriar-se de uma das antigas e caras garrafas de vinho da pequena adega anexa à cozinha.

Malfoy parecia esperar que, em algum momento, voltaria àquele lugar. A casa encontrava-se completamente arrumada, com madeira estocada perto da lareira e comida transbordando dos armários. Tudo parecia exatamente como deveria estar se alguém estivesse vivendo ali, exceto que há semanas ninguém frequentava a casa.

Assim, com a taça de vinho em mãos, subiu as escadas de madeira em direção ao quarto onde ficara durante sua estadia. Seria um grande passo, tinha em mente, voltar ali depois de tudo e encarar a si mesma novamente, naquele grande e luxuoso espelho, mas sem os hematomas físicos deixados por Greyback. Ainda lembrava-se de todas as horríveis sensações e de como se sentira protegida sob as paredes daquele quarto e daquela casa, longe de tudo e todos que poderiam machucá-la novamente. Gostaria de nunca ter saído.

Entretanto, outra porta no fim do corredor lhe chamou a atenção. Era comum que Malfoy dormisse ali, às vezes - quando estava em conflito com a noiva. Porém, nunca ultrapassaram certo limite. A conversa não adentrava um âmbito muito pessoal, nenhum deles queria ser o primeiro a se expor, embora, claramente, ele soubesse muito mais sobre ela e, para completar seu desconhecimento em relação a ele, a casa em si não continha muitos objetos pessoais, nada que indicasse ser Draco Malfoy seu proprietário, nem mesmo um porta retrato decorativo qualquer.

Então, sem conter-se, atravessou o corredor e, lentamente, abriu a porta de madeira para adentrar o quarto de seu antigo anfitrião. Tão espaçoso quanto o que ficara, mas mais masculino e, se possível, mais desocupado. As roupas de cama eram todas claras, contrastando com a madeira escura e maciça da qual a mesma era feita, assim como o guarda-roupas, a espaçosa escrivaninha próxima a janela e um display onde ficava um vaso de cristal solitário e algumas garrafas e copos de bebida, também inutilizados. Tapetes nas cores bege e creme adornavam o assoalho de madeira e duas poltronas ladeavam uma cômoda alta.

Por algum motivo desconhecido e desgostoso tanto quanto, depositou a taça de vinho sobre um dos criados mudos, logo ao lado de um abajur branco, e abriu todas as gavetas do mesmo, assim como as da cômoda e, por fim, as portas do guarda-roupas. Completamente vazios. A cena era deprimente em si, como se estivesse faltando a peça de um quebra-cabeças. Uma das mais essenciais. Aquela peça sem a qual o quebra-cabeça não pode ser concluído e, assim, não vai a lugar algum.

Contudo, antes que pudesse fechar as portas do guarda-roupas e conter o choro que começava a congestionar sua garganta, um pequeno envelope branco subitamente destacou-se sobre a superfície do mesmo e Hermione o alcançou desconfiada. A caligrafia rebuscada não poderia ser mais inquestionável.

Úlitsa Kosygina, Morro dos Pardais, nº. 15. Moscou, Rússia.

   Let's desert this day of hurt, tomorrow we'll be free

Dois meses antes, 04h56min AM

Malfoy ainda estava ali. Dividiam uma poltrona apertada e uma dose considerável de conhaque, nada além. Não era possível dizer que o silêncio se tornara uma constante naquela madrugada, pois sempre o fora. Apenas não era desconfortável o bastante para que quisessem dar um fim a ele.

Era quase irônico que estivessem ali, em uma sintonia instável e quebradiça, a qual, obviamente, não pertencia a eles, observando o nascer do sol. Hermione tinha os olhos pesados, mas, às vezes, colocava o copo frio contra a bochecha para despertar e, no processo, observava o olhar fixo do outro no amanhecer lá fora.

Tinha a impressão de que ele pesava todos os prós e contras de, simplesmente, estar ali, dividindo aquele espaço; ponderar parecia ser algo que o tipo de Malfoy faria com frequência. Porém, não levava em consideração o resto, sabia, apenas o momento. O trovão que poderia trazer a tempestade, arrasando com tudo ao seu alcance; ou levá-la embora em uma rajada de vento, restando nada. E o trovão sussurrava ao longe.

Um raio de luz consistente iluminou seus rostos, tornando os olhos de matizes acinzentadas ainda mais claros e tão brilhantes quanto jamais vira. As feições delicadas e bem desenhadas contrastavam em seriedade perturbada e imóvel. Como se não enxergasse nada além da claridade lá fora tornando-se cada vez mais palpável, nem mesmo sua presença próxima.

Nunca fora sua intenção chamar a atenção dele, apenas tomou seu último golpe e o estendeu ao estranho confiável visitante. Todavia, ele piscou lentamente e voltou o olhar penetrante a ela, lembrando a quem se esforçava para decifrar um enigma muito difícil. Não vacilou. Apenas esperou em silêncio.

O viu observar todos os traços de seu rosto, percorrendo-o sem pressa, decorando cada pequeno detalhe da mesma forma que Hermione memorizava as matizes de seus olhos, pois, quando a dor das recordações a alcançasse, pudesse ter a que recorrer enquanto ele estivesse longe.  Apesar de todo o característico mistério, os olhos dele a acalmavam.

Então, o viu estacar na direção de seus lábios e encará-los pensativamente por tempo suficiente para considerar que estavam se aproximando. Perigosamente. Pois, Hermione confiava em Draco, mas não esperava o contato e não sabia como reagir à ele depois de tudo que lhe acontecera. Era cedo demais. Silencioso demais. Supérfluo demais.

Antes que pudesse decidir levantar-se e quebrar a atmosfera de ludicidade, contudo, Malfoy apertou os próprios lábios contra sua testa, demoradamente, as mãos frias em seu pescoço, mantendo-a ali, embora Hermione soubesse que não era necessário.

Ela fechou os olhos, tranquila, apertando os dedos contra a camisa social, pois queria que ele ficasse, subitamente desistisse de sua decisão previamente tomada, mas Malfoy não prolongou o contato por muito mais tempo, embora este fosse a última coisa que pudesse calcular - mesmo depois, ao recordar.

Dessa forma, não o encarou enquanto levantava-se e terminava a dose que dividiram, vagarosa e silenciosamente. Não havia nem mesmo o ruído característico de gelo contra vidro para macular a cena, os ruídos externos lhe foram totalmente bloqueados em uma tentativa de guardar o momento em que o trovão levava embora a tempestade. E conseguira.

Por fim, ele meramente lhe entregou o copo, seus dedos roçando de forma impessoal, úmidos pelo gelo derretido e Hermione ouviu, finalmente, o baque triste e seco da porta se fechando e quebrando o tão superestimado silêncio.

Let's not fight, I'm tired, can't we just sleep tonight?

Dias atuais, 08h12min PM

Ele a encarava com aqueles olhos capazes de enxergar sua alma e Hermione via-se hesitando, embora essa não fosse mais uma opção. A pergunta estava lá, insistentemente batendo à porta, inconveniente tanto quanto na medida que não tinha uma resposta previamente preparada.

“Porque você veio?”

Hermione nunca fora tomada por tamanha incerteza. No início, a ideia de ir para Moscou lhe parecera a mais acertada. Conversar com Malfoy lhe fazia bem e já era fato consumado que sentia sua falta. Porém, era óbvio que tal problema poderia ser resolvido por carta, embora ele não houvesse mandado nenhuma durante os dois meses que se passaram.

Não queria ser um empecilho, contudo, ao adentrar a casa percebeu que o era. Astoria Greengrass atendera a porta e não parecera muito contente ao chamar Malfoy sem ao menos trocarem qualquer palavra. Provavelmente, a estava amaldiçoando naquele momento por levar ao outro problemas que a distância entre Moscou e Londres, supostamente, deveria ter separado.

“Ele irá levar Astoria para Moscou”, deveria ter dado mais atenção às palavras da Sra. Malfoy.

Malfoy, por outro lado, aceitara sua presença sem questionamentos, embora parecesse surpreso ou mesmo incomodado. Não o conhecia o suficiente para saber e, novamente, a incerteza a tomava porque apenas o fato de estar em Moscou significava que tudo saíra de controle e não queria lidar com nada que pudesse contribuir com tal sentimento, tão estafada já se encontrava.

“Não deveria ter vindo”.

Entretanto, lidar com tudo sozinha lhe parecia cada dia mais maçante, principalmente após deixar o trabalho e ter de lidar com os resultados dos esforços de Harry para vingá-la. As coisas não deveriam ter ocorrido daquela forma. Mas lá estava ela, fugindo novamente, ainda que das lembranças insuportáveis. Tornara-se um hábito nos últimos dias, Hermione notara ao ver-se praticamente morando em Stratford-upon-Avon sobrevivendo a chocolate, pipoca e vinho.  

— Eu não consegui. Não encontrei um caminho para voltar a ser a mulher que era. Eu não tinha um plano. E ainda não tenho. - Deixou a mochila pequena cair pesadamente ao lado de seus pés, só então percebendo como seus dedos estavam trêmulos. - Acho que estou me rendendo.

Ele soltou um riso sem humor, que Hermione não conseguiu interpretar, e serviu a ambos, pacientemente, duas doses de vodka. Antes de entregá-la, porém, ainda a examinou com olhos atentos, como se estivesse buscando qualquer sinal de dúvida a respeito de suas convicções. Se fosse o caso, as encontrara aos montes.

— Talvez estivesse certo. - Ela deu de ombros, não sendo capaz de manter o contato visual. - Talvez me encontrar novamente, em outro lugar, seja a solução. E, no fim, esquecer será melhor para todos.

— Vamos descobrir isso juntos.

Finalmente, saboreou a tradicional vodka russa, apreciando o leve gosto de mel que inundara sua boca além do alto teor alcoólico. Uma sensação de alívio a inundara ao ver os olhos de Malfoy, sempre tão tempestuosos, encará-la com mais leveza. Precisava de sua anuência ali, tanto quanto ou mais do que quando ainda estava em casa.

— Bem-vinda a Moscou, Granger. - Ele se desfez do próprio copo após o silêncio tornar-se maior e mais alto que o confortável. - Ouvi dizer que o outono é a melhor época do ano, você teve sorte.

Ao mesmo tempo era tomada por uma onda de terror em relação ao desconhecido. Não apenas se encontrava em um país completamente estranho, mas acabava de tomar o caminho sombrio e pedregoso da bifurcação que a levaria ao céu ou ao inferno, sem meios termos ou concessões, rápido e certeiro como uma bala no vazio.

Assim, apenas sorriu em concordância, pois ouvira dizer a mesma coisa, provavelmente da mesma pessoa, e o viu encaminhar-se à saída. No entanto, antes que pudesse impedir-se, estendeu a própria mão para alcançá-lo, parando-o. Seus dedos encontraram, primeiramente, a manga do grosso casaco, mas hesitantemente os desceu para chegar à sua mão.

Ele não reagiu de modo algum, apenas esperou. Seus dedos se entrelaçaram de forma embaraçada, estando ambos lado a lado na pequena e íntima sala de visitas. Era irônico como ele sempre estava voltado à saída mais próxima, quase como se fugir fosse seu próprio lema, exatamente como ela estava fazendo naquele momento. Não deixou de considerá-los parecidos, ao menos, neste aspecto.

Então, abraçou-o antes que sua vontade se esvaísse em névoa e receio de ultrapassar uma linha imaginária que impunha a si mesma, refreando-a. Lentamente, tão ou mais cauteloso que ela, sentiu Malfoy desfazer o contato entre seus dedos e a apertar contra si, tornando o contato recíproco, fazendo com que seus músculos relaxassem quase instantaneamente.

— Vou mandar preparar o quarto de hóspedes para você.

Enquanto sentia a respiração dele contra o pescoço, seus fantasmas e medos mais recentes eram deixados de lado e apenas isso justificava estar ali, simplesmente.  Enfim, Hermione concordou com um aceno de cabeça ante ao anúncio dele, mas ninguém se moveu. Por muito tempo.

Turn away, it's just there's nothing left here to say

Turn around, I know we're lost but soon we'll be found


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Notas finais do capítulo

Oi, oi!!

Então, espero muito que tenham gostado dessa parte da história e do modo como decidi contá-la, no caso, duas linhas do tempo. Isso porque não dava para fazer uma parte somente com os acontecimentos de uma madrugada e eu queria explorar mais dos sentimentos de Hermione pré-Moscou (alguém tinha certeza de que ela iria?), naquela noite, como também durante o tempo que se passou, principalmente em relação aos efeitos do estupro em sua forma de agir.

Quem me conhece sabe que eles não vão começar a se amar de uma hora para a outra, mas estamos ladrilhando esse caminho, perceberam como eles estão mais próximos!! *_* Uma hora chegamos lá!

Já dá pra idealizar a próxima parte? Só depende de saber se estão interessados ou não, quero muito saber a opinião a respeito de vocês, especialmente devido a esse modo de narração que eu nunca usei antes. Seríssimo, me incentiva muuuuito saber o que acharam.

Enfim, espero que tenham gostado da mesma forma como espero vê-los nos comentários! Trabalhamos com recomendações também, sintam-se à vontade também :D