Casa dos Horrores escrita por Astus Iago


Capítulo 1
Casa dos Horrores




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Eu não estou louco.

Sei que a polícia nunca acreditará em mim. Por isso, redijo este preciso documento para que, se as autoridades não aceitarem a verdade, alguém o faça. Relatarei tudo o que vi e relembro, rezando para que a memória e o terror da lembrança me não perturbem o discurso.

Apanharam-me em flagrante a invadir a aparentemente pacata mansão de Timothy Alcada. Eles devem ter descoberto. De alguma forma, por qualquer obra de feitiçaria, devem ter previsto a minha ação nessa dormente noite. Eles não sabem a razão. Não a compreenderiam mesmo que a explicasse. Eu tentei, juro-vos que tentei. Mas todos nós tememos a verdade, isto porque todos nos tememos a nós próprios.

Alcada sempre foi um conhecido meu, homem reservado e de sossego. Pouco o vi sair de casa, por isso presumo que não trabalhasse. Sendo até um indivíduo consideravelmente abastado, nem via nele a necessidade de uma ocupação profissional. Sua mansão assombrava as massas com a sua sumptuosidade. O estilo era antiquado, vitoriano, com dois andares acima do solo e um sótão. Elegantemente mobilada com as luxúrias do século passado, a casa tinha tudo para ser uma cómoda e convidativa habitação.

Timothy era solteiro e não tinha intenções de se casar. Sempre muito calado e formal, era membro assaz de um clube de pesca recreativa onde eu próprio estava incluído. Duas vezes por mês, íamos privar de alguma vida marinha o lago de Hacerat. Como disse, era muito reservado e até solitário. Verdadeiramente conservador. Por conhecê-lo assim é que achei estranho o dia em que se me dirigiu em pânico, pedindo socorro. Quase não reconheci o seu rosto, visto de perto. Era de meia-idade, mais jovem que eu. Sob o nariz, um bigode cuidadosamente aparado. Sobre ele, uns óculos redondos. Suplicando-me por ajuda, notei que as suas faces outrora rosadas perderam grande parte da sua cor. Algo decerto se passava, algo perigoso. Pressenti-o desde o início.

Balbuciava histórias horrorosas de aberrações ancestrais perdidas no tempo, seres de uma maldade orgânica buscando uma entrada de volta para este nosso mundo. Arcaicos termos de um teor sobrenatural saíam-lhe da boca em inaudíveis murmúrios. Na altura, julguei que o homem estava a ter uma espécie de ataque psicótico. Sendo assim, encaminhei-o até ao hospício mais próximo e conceituado, o Asilo de Bonassade. Assinei o devido contrato aceitando as responsabilidades pelo comportamento e saúde do instável Alcada enquanto paciente. Mas em breve viria a descobrir o erro que fora esse internamento.

Alcada não mostrava sinais de melhorar. Continuava a falar por enigmas. Contava aos médicos histórias de aparências abismais e universos paralelos. Falava de uma tal "Bellaska". Repetia também inúmeras vezes a palavra "bakbadoo". Gritava sobre um eventual fim do mundo com um disco descendo dos céus, com uma intensa luz ofuscando a grande Nezca, capital do Domínio. Proclamava o advento do Medo e a supremacia de uma enorme e estratificada família de anatómicas monstruosidades. Descrevia ao pormenor gigantescas cidadelas inexistentes. Rapidamente perdi as esperanças na recuperação do meu amigo. Seu psicológico parecia irremediavelmente destroçado.

Poucos dias depois, recebi a notícia da morte de Timothy. Nas paredes do quarto onde dormia, foram encontradas misteriosas fórmulas registadas com sangue e frases agramaticais como "o êxodo de Bellaska espírito do sideral Phobos Erebus serão unidos Mundo Novo Utopia da promessa" e a mais críptica "erg sipla bakbadoo" estavam inscritas como orações a uma potência que me ultrapassa a imaginação. As autoridades consideraram tudo o produto de um suicídio. Porém, eu não estava convencido. Afinal, a causa de morte nem chegou a ser corretamente identificada. Para além disso, observei pessoalmente o cadáver. E aquele terrível esgar de terror...

Era medo, puro medo.

Fiquei de luto. A igreja não me permitiu dar-lhe um enterro cristão, justificando tal posição com as múltiplas blasfémias que o indivíduo dizia no seu estado de delírio. Prometi passar todos os meses, antes dos encontros de pesca, pela velha mansão como forma de homenagem. E o que vi surpreendeu-me.

Vi as luzes do edifício acendendo e desligando. Ouvi o ranger característico de passos sobre uma escada de madeira. Alguém estava lá dentro, alguém possivelmente relacionado com a morte do proprietário.

Assim sendo, ganhei coragem e entrei, respirando fundo. Achei estranho a porta estar aberta. Sentia-me quase convidado a entrar, como se uma etérea voz no meio do silêncio me chamasse. Eu ouvia-a. Meus pés pisando o rangente soalho, cada passo assinalando a aparente decrepitude da mansão. Seu exterior belo disfarçando a sombria decadência do interior, as aparências sempre iludindo desde tempos imemoriais. Era esta a casa onde Timothy Alcada vivera. Talvez aqui residisse o segredo do seu enigmático fim.

A treva irrompia por cada sala e corredor, possuindo a pedra e as madeiras, o chão e o teto, numa sagrada sinfonia de misteriosa escuridão. Uma luminosidade intermitente provinha do andar superior, separado da minha pessoa por um único conjunto de escadas.

Subi com cautela, com o temor no corpo. O ar fresco bafejando, uma breve aragem vinda da porta que deixei semi-aberta. Lá fora se ouvem as árvores, os ramos embatendo agressivamente contra o vidro das janelas. Uma clássica noite de inverno.

O andar de cima era, esteticamente, idêntico ao primeiro. Porém, mais compacto e limitado. Um retrato decorava uma das paredes de coloração bege. Não era Alcada na pintura, mas sim uma desconhecida mulher. Estava representada apenas da cintura para cima, nua. Suas mãos empalidecidas cobriam os desnudados seios. Seus cabelos negros, mais negros que o noturno cenário, pendiam-lhe sobre os ombros. A face era esbelta e decidida. O olhar, penetrante e sedutor.

Não pensei muito acerca da identidade daquela figura feminina. Podia nem sequer existir, sendo mera obra de ficção. Podia até ser uma amiga, colega ou familiar de Timothy. Na verdade, era possível que tivesse sido o próprio Timothy a pintá-la. Ouvi dizer que a pintura era apenas mais um dos seus passatempos. Fora um verdadeiro amante da arte nas suas mais variadas formas.

Prossegui a minha investigação, perseguindo a fonte da inexplicável luz. Vinha de uma porta aberta ao fundo do corredor, possivelmente um quarto. Seria impossível enxergar, mesmo com esforço, o conteúdo daquela assombrada divisão. Não podendo ver de longe, procurei ver de perto. Temendo pelo que estaria no outro lado, entrei.

E os meus medos tinham fundamento.

Passei sob a soleira da porta, de olhos fechados, feridos pela luminosa intensidade. Quando os abri, descobri que havia deixado a casa. Na verdade, havia deixado todo o nosso plano de existência. Estava numa dimensão completamente diferente, um pantanoso reino de escurecido nevoeiro. A relva que cobria os lamacentos terrenos era amarelada e húmida. A terra parecia mover-se ao toque como se de uma espécie de gelatinoso semi-fluido se tratasse. O céu era avermelhado, enojando-me a vista, como lava incandescente escorrendo lá do alto. Sinuosos cometas faziam curvas no firmamento em órbitas ridículas, impossíveis de prever através do cálculo. Organismos lodosos, compostos de uma espessa substância que me ultrapassa o conhecimento, deslocavam-se de um lado para o outro, como se procurassem algo que nunca poderia ser encontrado.

À minha frente, um lago de tamanho considerável refletia as ardentes chamas do céu. Um ser banhava-se no lago, uma pessoa. A primeira coisa que pensei fazer foi chamá-la. Era uma mulher, uma jovem isenta de qualquer traje. Notei os cabelos notavelmente escuros mas, no momento, estava tão aterrorizado que não fui capaz de associar a sua graciosa figura ao retrato da parede. A esverdeada água suja cobrindo-lhe a elegante pele. Estava de costas para mim. Escondia os seus lindos olhos, os seus lábios excessivamente vermelhos. Isso era o que eu pensava até ela se virar.

Nunca vi coisa mais horrenda. Aquela boca descaída e os olhos fora do sítio. A ausência de cabelo na fronte da cabeça e o nariz retorcido. Mas o pior eram as regiões mais íntimas da sua imagem. Essas haviam sido completamente alteradas por qualquer magia. Seus seios assemelhavam-se a volumosos globos oculares e o orifício vaginal mudou para a aparência de um grotesco par de inflamados lábios. Vi dentes lá dentro, afiados caninos de animal. A garganta abrindo, a garganta funda. Fileiras e fileiras de brancos dentes. E os olhos... os olhos...

Segurou-me pelos ombros. Não tive tempo de reação. Foi tudo muito rápido. Vi-a de perto, tão perto. O maxilar inferior começou a decair e a decair...

Foi demasiado repentino quando o interior da sua boca me envolveu a cara. A saliva entrou-me pelas narinas. O caráter desconfortável da situação levou os meus olhos a manterem-se abertos. Senti o nariz prestes a rebentar com a pressão. Aquela paisagem da profunda fenda, os lubrificados muros de carne apertando e interrompendo-me o fluxo respiratório. O sangue concentrando-se-me na testa levou a que a minha vista começasse a turvar. A língua dela, aquela gordurosa serpente, deslizou pela minha faringe adentro. Aí, graças a Deus, perdi a consciência.

Quando acordei, já não estava no mesmo sítio. Estava no sótão da casa. Era uma espécie de claustrofóbica arrecadação. Telas usadas espalhadas por todos os cantos, enegrecidas pela penumbra. Em todas elas, o mesmo retrato: a face desfigurada daquela abominável fêmea.

Levei as mãos à cabeça. Acabaria tão louco quanto Timothy. Havia um grande mal naquela casa, e estava cada vez mais forte, alimentando-se da sanidade que me restava. Mais e mais e mais. Cada vez mais profunda a língua. Os olhos, aqueles olhos. O calor doía-me tanto. Transpirava por todos os poros, juro. E piorou mais quando as pinturas desapareceram, quando cada uma foi substituída pelo cadáver de uma mulher.

Corri do sótão, caindo de cabeça no andar de baixo. Dei de caras com a polícia. Expliquei-lhes tudo. Avisei-os dos cadáveres no sótão. Mas não acreditaram, isto porque não havia sótão. Nem sequer havia o retrato de uma mulher na parede, só uma inocente caricatura de Timothy. Fui acusado de invadir uma propriedade privada de forma injustificada. Julgaram a invasão como uma fracassada tentativa de roubo.

A polícia ficou preocupada no início ao descobrir-me. Isto porque referi os cadáveres de imensas mulheres. Ao que parece, diversas jovens da cidade têm desaparecido misteriosamente nos últimos dias. Não tomara conhecimento do assunto antes devido ao meu pessoal desinteresse pelos noticiários. Aquela casa esconde um grande mal. Timothy estava envolvido. Um qualquer pacto obscuro levou à sua decadência mental, só pode ter sido. Fora uma vítima das circunstâncias, tal como eu. Mais mulheres desaparecerão até aquela criatura diabólica estar satisfeita. E quem sabe o que poderá fazer quando estiver finalmente saciada...

Eu não estou louco!

Revistem a casa! Destruam-na se for preciso! Mas impeçam aquele monstro de sair. Por favor, por amor de Deus, impeçam o monstro.

Acreditem...

Eu não estou louco...


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