Superstition escrita por PW, VinnieCamargo, Jamie PineTree


Capítulo 3
Capítulo 02: No Control


Notas iniciais do capítulo

Escrito por JamiePineTree



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São Petersburgo, Rússia

 

Mergulhada numa banheira com gelo, Astrid tentava sem sucesso celebrar a sua vitória.

Até poucos anos atrás, não existia espaço para mulheres no UFC, que era um espaço totalmente predominado por homens. E Astrid tinha orgulho em se destacar numa competição que era considerada “pesada demais para mulheres”. E a decisão de virar uma lutadora foi justamente para se superar fora do tatame e provar que as pessoas estavam erradas sobre ela.

Que qualquer mulher poderia fazer o que quiser e nenhum homem poderia dizer o contrário.

— Como se sente? – Perguntou Yuri, seu treinador.

— Meio atropelada por um trem, mas feliz. – Astrid sorriu sem forças, tentando fingir que estava tudo bem. – Pelo menos não quebrei o nariz.

— Tem certeza? – Yuri cruzou os braços, incrédulo com a resposta. - O estádio inteiro estava sob seus pés, mas eu vi que tem algo te incomodando. Era ele, não era?

Mesmo com o passar das décadas e com uma avantajada barriga de cerveja e vodca, Yuri era o melhor treinador que Astrid poderia ter. Um professor bruto e exigente, mas que sempre atuava com uma rocha emocional para ela.

Principalmente quando o ex-noivo era o assunto.

— Você também o viu? – Uma rápida sombra de ódio passou pelos olhos da loira. – Quando penso que finalmente estou livre do Sasha, ele me aparece desse jeito. Como aquele filho da mãe consegue sempre consegue estragar a minha vida, Yuri?

Astrid se levantou da banheira, envolvendo seu corpo atlético num roupão e olhando para si mesma no espelho do camarim do estádio, vendo a dor que era relembrar da pessoa que tentava esquecer. Ela já tinha aprendido a não ter mais raiva, passando por cima de suas lembranças com indiferença e focando no que era mais importante na sua vida. Ela mesma.

Em 2OO8, Astrid se classificou para os Jogos Olímpicos de Pequim, conquistando a medalha de bronze no Judô, mas fora nas Olimpíadas de 2012, que conhecera Sasha, um dos integrantes da equipe masculina de judô. E logo no início, uma paixão devastadora surgiu entre os dois, algo que fora impossível para ela de controlar.

Não era racional, era físico. E deixando a razão de lado, ela não podia negar que o amava. Até poucas semanas, quando Sasha mostrou quem realmente era e tudo aquilo fora destruído.

— Sei que queria dividir isso com ele, mas...

— Eu lutei muito para chegar até aqui, Yuri. – Astrid o interrompeu. - Você mais do que todos sabe disso e sabe também, que não vou deixar nada e nem ninguém me atrapalhar. O Sasha foi sim muito importante na minha vida, mas tenho mais o que fazer, do que chorar por um homem como ele.

Aquela frase foi um sopro de alívio no coração do velho treinador. Yuri se aproximou de sua pupila e posou com um sorriso paternal ao lado dela no espelho.

— Eu treino vencedores, Astrid. Nunca se esqueça que é você, quem tem o controle de sua vida.

=-=-=-=-=

Depois de viver em diferentes lugares, como um nômade, Lucky Ray finalmente pudera voltar para o lugar que podia chamar de lar.

Sua curiosidade inquietante, somada com a vontade por novas aventuras o fizeram seguir a carreira jornalística, estando em diversos casos de repercussão mundial, principalmente em situações onde sua própria vida estava em risco. A temporada na Síria fora um desses momentos. Estar no meio de uma guerra e encarar a morte de várias pessoas, mesmo que Lucky não conhecesse nenhuma delas, doíam no jornalista de qualquer maneira.

A nova profissão de Lucky lhe trouxera ainda mais responsabilidades, que não mais o deixara confinado naquela cidade pequena. Lucky se tornou correspondente do The Hidden Oracle News, viajando pelo mundo em busca de novas histórias para serem contadas, enquanto Ariel preferia se manter recluso no quarto, remoendo cada momento ruim que passara.

O relacionamento com seu filho adolescente era o preço pago pelo jornalista, por sua liberdade. Ariel Ray tinha poucos traços em comum com pai, puxando quase inteiramente a mãe. Cachos cor de cobre e inexpressivos olhos azuis o definiam. Já Lucky tinha os olhos e cabelos castanhos, junto com uma pele naturalmente bronzeada, herança de sua avó latina.

Lucky não aguentava mais o silêncio e a barreira de gelo que cresciam entre eles, mesmo que os dois estivessem juntos naquele momento, assistindo ao canal de luta livre feminina no quarto do garoto.

Antes de Ariel nascer, Lucky já tinha certeza de sua sexualidade na época, ganhando desde cedo olhares tortos de quem o conhecia, mas o garoto aprendeu a conviver com isso da forma mais difícil. Porém numa noite com seus amigos e várias garotas, somadas com muito álcool, Lucky foi seduzido (e supostamente drogado) por uma garota que o tinha como alvo.

Ele estava bêbado demais e não fazia idéia da relação sexual com ela, mas dias depois viera a notícia ela havia engravidado. Lucky não se abalou, mesmo sabendo que era novo o bastante para criar um filho, ele amou aquela criança desde o primeiro momento

Mas os tempos não foram bons e tranquilos para nenhum dos dois.

— Como vai a escola? – Perguntou Lucky, tentando iniciar uma conversa.

— Legal. – Ariel respondeu sem qualquer animação, evitando contato visual com o pai.

— Talvez possamos fazer alguma coisa no final de semana. Lembra que você adorava pescar? – Lucky insistia.

— Pode ser, qualquer coisa eu te aviso.

Ariel continuava encarando a tela, não que estivesse ignorando Lucky de propósito, mas para ele, era muito mais fácil resolver seus problemas, se fingisse que eles não existissem.

— Olha, eu sei que sente falta da sua mãe, mas as coisas nem sempre são como a gente quer. –Naquele momento, Ariel estremeceu e finalmente olhou para o pai, não podendo mais esconder a dor que insistia em guardar. - Mas estou tentando, Ariel. Juro que estou.

Ariel desligou a TV e se moveu desajeitadamente até a cadeira de rodas, ficando de frente para o pai. O coração de Lucky se partia ao ver o filho naquela situação, além de se culpar por sempre estar longe e não ao lado dele.

— Tudo bem, pai.- O garoto disse ao ver a expressão triste no rosto do pai. – Já me acostumei. Mas se insiste tanto, a gente pode pescar no próximo sábado. Promete?

— Eu prometo. – Lucky sorriu.

=-=-=-=-=

— Eu já disse que está tudo bem. – A européia reforçou. – Pode devolver minha bolsa agora.

Lucky fixou seu olhar na loira a sua frente. Ele ainda segurava a bagagem dela, com tanta força, que os nós de seus dedos estavam brancos. Um zumbido retumbava com tanta força dentro de sua cabeça, que Lucky achou que ela fosse explodir como um balão de ar. Ele levou as mãos aos ouvidos, tentando abafar o som estridente, mas o uivo continuava soando dentro de sua cabeça. E doía muito.

— Você está bem? – Ela perguntou.

— Desculpa... Eu não sei o que deu em mim. Foi uma sensação estranha. – O sangue ainda zumbia em seus ouvidos, acompanhada por uma brisa gélida.

Lucky tentou ignorar, mas quando ele olhou além das portas de vidro do terminal, onde um carro estava sendo mal estacionado e um segurança se aproximava ao veículo, ele soube que aquilo já tinha acontecido.

E soube também o que iria acontecer.

— Ai meu Deus... Tem uma bomba naquele carro...

— Como assim bomba? Do que está falando? – Astrid perguntou em voz alta. Sutileza não era seu forte. A pergunta histérica atraiu alguns olhares sobre eles. Incluindo o de um senhor idoso com olheiras e uma expressão cansada, um dos seguranças do aeroporto.

— Isso não tem graça, rapaz! – Ele disse com rispidez. Só a menção da palavra “bomba” já era o suficiente para provocar o pânico no aeroporto. - Você não pode brincar com um assunto sério como esse.

— Eu sei, mas me escute, por favor. – Implorou com uma voz sôfrega. - Não sei como explicar isso, mas esse lugar precisa ser evacuado imediatamente! Você precisa avisar que todos devem sair.

A confusão no terminal chamou a atenção de várias pessoas, inclusive foi percebida por uma jovem morena com chapéu, Tami, que caminhava pelo saguão ao lado do pai.

— Espera um pouco, daddy. - A curiosidade da moça falou mais alto novamente e ela e aproximou. – Eu já volto.

— Vou te esperar no carro. – Ele respondeu, se afastando com as malas e indo para o estacionamento externo.

Astrid e o segurança tinham conseguido reunir uma platéia ao redor de Lucky, que por mais que tentasse argumentar com o funcionário, era tratado como um criminoso em potencial.

— O que esse cara andou fumando? – Ajeitando as alças da mochila em suas costas, um rapaz de cabelo rosa comentou com o engenheiro de óculos ao seu lado, Cisco, que ignorou de propósito ao comentário.

— Essa mochila... – Lucky viu um flash explodir em sua mente e se lembrou do exato momento, em que aquela mochila explodiria, destroçando o corpo do rapaz tatuado.

Lucky puxou fora a mochila de Alex, que não teve tempo para protestar. Ele não mais se importava com os olhares julgadores e desconfiados sobre ele, o jornalista sabia o que tinha visto e tinha certeza, que por mais louco que parecesse, estava fazendo a coisa certa e abriu a mochila. O simples barulho ameaçador do tique-taque, foi o suficiente para uma expressão de espanto tomar conta de todos ali.

Lucky e todos os outros viram as barras de C3 acopladas à um timer, que indicava faltar menos de um minuto para chegar ao zero. Levado por um repentino impulso, o jornalista largou a mochila e tentou correr até as portas do terminal, vendo o segurança desavisado se aproximar do carro bomba, mas foi contido pelo segurança idoso. No mesmo momento, as portas de vidro explodiram em milhares de pedaços, assim como o carro que queimava intensamente no lado de fora.

— PAI! – Tami gritou ao ver que seu pai tinha sido atingido pelo deslocamento de ar e pelos vários dos cacos de vidro, ele deus alguns passos assustado, sem entender ainda o que havia acontecido e viu a filha berrar por ele. As pernas do homem ficaram fracas e ele desabou em cima de mais cacos de vidros, já morto.

— Vão por ali! – O segurança apontou para a porta por onde Lucky viera. A porta dava para um longo corredor de serviço, menos iluminado que os demais ambientes do aeroporto.

Sem exitar, Nate tirou Alex de sua frente e foi o primeiro a entrar, Cisco e o tatuado foram em seguida. O policial Randy se apressou em ir até Tami, que continuava a gritar pelo seu pai. Ele a segurou e mesmo sob os protestos tristes dela, Randy pediu várias vezes que se acalmasse e arrastou a garota para longe do corpo, seguindo em direção ao corredor se serviço apontado pelo segurança. Por um breve momento, Randy viu o suspeito de transportar drogas que ele tinha aprendido mais cedo, correndo junto com a multidão, mas naquele momento, a segurança de Tami era mais importante.

Com pessoas correndo para todos os lados, Lucky seguiu em direção ao túnel, levando junto uma moça loira aterrorizada e um piloto. Astrid permaneceu onde estava, olhando para o jornalista com uma aflição profunda em seus olhos azuis. O jornalista cruzou o olhar com a lutadora russa e só então eles entraram, antes da mochila de Alex explodir e obstruir a passagem.

Não deixando que mais ninguém entrasse.

=-=-=-=-=

— Fiquem todos calmos! – Gritou o segurança que guiava o grupo. Mas nem ele conseguia se acalmar, aquele túnel era proibido para todos, inclusive para quem trabalhava no aeroporto.

Ouvindo o crepitar do fogo e os gritos angustiantes ao redor deles. Conforme os segundos se passavam, o corredor se preenchia com a fumaça densa do incêndio, dificultando a respiração e só aumentando o desespero de todos ali. Os sprinklers foram acionados, amenizando a fumaça e encharcando o grupo, que andavam em passos rápidos pelo túnel, que não parecia mais acabar.

— Para onde estamos indo? – Perguntou Cisco.

— Um lugar seguro. – Disse o homem. Ele desceu uma escada de ferro e parou em frente a duas portas de aço reforçado, tirou um cartão magnético do bolso e o passou contra o leitor de identificação. A luz verde acendeu e a porta foi destrancada.

— Entrem aqui. Rápido!

O grupo se viu diante de um enorme depósito de dois andares, capaz de abrigar pequenos aviões se estivesse totalmente. Porém o lugar estava muito escuro e abarrotado de diferentes peças armazenadas, incluindo cilindros de produtos químicos. Não havia ar-condicionado ali, mas um antiquado sistema de ventilação continuava funcionando, o que foi possível por alguns momentos, acalmar a respiração e o ânimo deles.

— Vocês vão ficar bem aqui até o resgate chegar, mas eu preciso voltar. Ver se encontro mais pessoas. – O segurança se manteve empoleirado na porta. - E me desculpe por desconfiar de você, filho.

Antes que Lucky pudesse argumentar, ou até mesmo agradecer pela ajuda, o velho segurança voltou para o túnel, trancando a porta atrás dele. A última coisa que Lucky viu, foi o olhar de determinação do homem, daquele cumpriria seu dever até o fim.

— Onde ele foi. – Perguntou Randy, o policial, que arfava como se tivesse acabado de correr uma maratona.

— Ele disse que iria tentar encontrar mais pessoas. – Lucky respondeu. - Estamos por nossa própria conta agora.

=-=-=-=-=

Era um depósito de dois andares abaixo do nível do solo. Sem janelas, apenas suavemente iluminado por lâmpadas fracas e um leve rastro de fuligem pairava no ambiente. Uma extensa camada de poeira cobria as centenas de caixas sem etiqueta e um enorme maquinário, que iam desde peças de avião, até veículos de construção. E todos que estavam ali, pareciam estar abandonados há muito tempo.

Mesmo sendo um lugar muito grande, uma sensação de clausura e confinamento os abatia.

O piloto, Louis, andava de um lado para o outro, com o celular erguido no ar. Decerto, Tina já deveria saber do atentado e ele queria avisar à ela e sua família, que na medida do possível, estava tudo bem.

— Algum de vocês tem sinal de celular? – Perguntou ele em voz alta. Seu cabelo estava encharcado, e a água pingava de seu rosto em seu uniforme impecável.

— O meu estragou com a água. – Disse Nate, atirando o objeto que se espatifou na parede mais próxima, quase atingindo Alex, que lançou um olhar fulminante para ele. Nate apenas ignorou com sua eterna expressão antipática.

Cisco, o engenheiro de óculos, também tentou o seu. Não havia sinal algum, nem para ligações ou para usar a internet. Frustrou-se e guardou o aparelho. Randy tentou o rádio comunicador, testando todas as frequências, mas em todas elas, apenas um chiado incessante era ouvido.

Tami passou pelo policial, abraçando o próprio corpo e caminhando com tropeços. Ele supôs que ela ainda estivesse em choque pela morte do pai e quis ir até ela, prestar seu apoio da mesma forma que Tami fizera mais cedo, mas seu foco precisou se voltar para o jovem problemático ao seu lado.

— Nós não estaríamos aqui se não fosse por ele. – Nate lançou o comentário no ar, como uma fagulha em direção à gasolina, que no caso tinha, tatuagens e cabelos rosa.

De todos ali, Nate era o que menos aparecia abalado com o ataque ao aeroporto, pelo contrário, parecia tão entediado, que precisava de alguma forma de aumentar sua adrenalina. O rapaz sabia como ler as emoções de alguém e também como usar isso a seu favor para se distrair.

— Você acha que eu tenho cara de terrorista? – Alex perguntou confuso, agindo exatamente como Nate queria.

— A cara e tudo mais. – Nate revidou com um empurrão em Alex, aquela já era a segunda vez em menos de dez minutos. – Tinha uma bomba na sua mochila. O que acha que vamos pensar?

Alex tentava se controlar, mas a abstinência continuava a gritar em seu consciente e isso refletia em seu corpo. Olhos agitados, a tremedeira e a falta de discernimento que o remédio ajudava a controlar. Além do mais, a Ritalina o auxiliava em ignorar um provável distúrbio mental, que Alex temia possuir.

Mas Nate também não estava facilitando nenhum pouco.

O tatuado respirou fundo, mas seu instinto impulsivo falou mais alto, o que levou a empurrar Nate de volta com muita rispidez, que tropeçou nos próprios pés e caiu perto do piloto. Nate se levantou com um olhar irado e desafiador, ele rapidamente ergueu o punho no ar e partiu na direção de Alex.

Contudo, Astrid segurou sua mão em pleno ar, com mais força ainda do que o rapaz. Ela se colocou com calma entre Nate e Alex, olhando profundamente para o estudante de espanhol.

— Já chega disso, ouviu bem? – Ela não falou com grosseira, mas sua voz foi incisiva o bastante para abaixar a moral de Nate. - Agora não é o momento de ficarem brigando como duas crianças.

Com uma dignidade discreta (e também pelos olhares julgadores sobre ele), Nate recuou, se desvencilhou da loira e caminhou para longe dela. Astrid não precisou pensar duas vezes antes de intervir, apesar de ser uma lutadora e ser reconhecida num esporte violento, ela odiava brigas gratuitas como aquela.

Mesmo que doesse admitir, Nate fazia Astrid se lembrar de seu ex-noivo, Sasha.

— Tudo bem, eu acredito que possa não ter sido ele. – Louis disse. – Mas isso foi claramente um ataque terrorista muito bem organizado. E eu não entendo como a segurança deixou passar isso, ainda mais após todas as drásticas mudanças feitas aqui depois do 11 de setembro.

O Amelia Earhart era um dos aeroportos que frequentemente faziam parte da rota de Louis. O piloto sabia do quanto o assunto terrorismo tinha modificado o seu trabalho, do quanto precisou se acostumar com a vigilância constante em todos os lugares que pousava e, sobretudo das mais avançadas técnicas anti-terrorismo. O Amelia Earhart podia ser um pequeno aeroporto de uma cidade sem atrativos, mas ele era tão capacitado para evitar uma tragédia, quanto qualquer outro aeroporto do país.

— Eu acho sei quem foi. – Todos os olhares da sala se voltaram para uma maltrapilha jovem asiática, que se manteve calada e quieta como um fantasma desde então. Ninguém tinha dado pela presença dela até o momento. – E se eu estiver certa, estamos todos mortos.

=-=-=-=-=

I'm trying but I keep falling down

I cry out but nothing comes now

Tentando limpas lágrimas que escorriam sobre seu rosto e se misturavam a fuligem, Tami seguia caminhando sem rumo pelo depósito abandonado. Numa dor que parecia infindável em seu coração, a professora tentava colocar seus pensamentos em ordem, mas todas as vezes que fechava os olhos, a imagem de seu pai caindo morto voltava para atormentá-la.

I'm giving my all

And I know peace will come

I never wanted to need someone

 

— Isto não pode estar acontecendo... — Ela murmurou atordoada.

O medo e choque não deixavam que ela pensasse direito. Enquanto andava perdida pelos corredores, passando por diversas repletas de material químico, Tami colocava sobre seus ombros a responsabilidade do que tivesse que enfrentar, sempre agindo de sua forma metódica e altruística, como uma heroína, habilidades aprendidas com seu pai.

Yeah, I wanted to play tough

Thought I could do all just on my own

But even Superwoman

Sometimes needs the Superman's soul

Help me out of this hell

Às vezes perto, às vezes longe, mas nunca por muito tempo, era ele quem ensinara a professora a superar seus diversos problemas com destreza e persistência. Seu pai não estava mais ali. Ela tentava admitir isso de uma vez por todas, mesmo que fosse muito complicado aceitar. Era isso que seu pai diria. Mesmo que ele não estivesse mais no plano físico, ele estava em seu coração e Tami sentia-se sortuda por isso.

Your love lifts me up like helium

Your love lifts me up

When I'm down down down

When I've hit the ground

You're all I need

Um pouco mais calma, Tami tirou o celular de seu bolso, vendo que ainda estava sem sinal e que já havia passado um bom tempo desde o ataque. Ali onde estava, ela não conseguia escutar nenhum som que denunciasse o que acontecia no aeroporto acima dela e por isso, tentou se orientar e voltar para onde os outros sobreviventes estavam.

And if you let go

I'll float towards the sun

I'm stronger 'cause you fill me up

But when the fear comes

And I drift towards the ground

I am lucky that you're around

Mesmo que não tivesse janelas ou ar condicionado, uma rajada fria passou por seu corpo, levando até seu nariz um odor completamente desagradável, o que fez a Tami sentir-se nauseada. Aquele cheiro horrível parecia ter origem no final do corredor onde se encontrava e ficava cada vez mais forte.

Tami foi se aproximando com curiosidade, andando como se estivesse num campo minado, onde qualquer passo errado que ela fizesse, pudesse ser fatal. Ela percebeu uma movimentação mais adiante e ergueu a tela do celular para iluminar e enxergar melhor o que seria, mas era só um rato.

Um rato que devorava um cadáver.

Help me out of this hell

 

Your love lifts me up like helium

Your love lifts me up

When I'm down down down

Os vermes e as larvas passeavam felizes sobre o corpo do homem, que não parecia estar morto há muito tempo. Mesmo com as roupas puídas, ainda era possível enxergar que ele algum dia fora um militar bem sucedido. Ou quase. Tami tentou desviar o olhar, mas era impossível ignorar a cena.

Sentia-se desnorteada, perdida e especialmente aterrorizada.

When I've hit the ground

You're all I need

'Cause your love lifts me up like helium

Your love lifts me up like helium

 

Seu braço esquerdo acionou uma alavanca na parede, ligando a energia elétrica e todo o depósito pareceu ganhar vida. Os pequenos e fracos pontos de luz foram substituídos pela luz cegante de enormes lâmpadas no teto, que se acenderam ao mesmo tempo.

A claridade repentina cegou a professora, que deu alguns passos desastrados para trás, se batendo com a estante de ferro atrás dela. Vários objetos diferentes caíram no chão junto com ela, inclusive, um tanque de gás hélio de médio porte. A queda fez com que a válvula de soltura do gás se quebrasse e por ser mais leve que o ar, logo ele chegou até Tami.

Your love lifts me up like helium

Your love lifts me up like helium

Your love lifts me up like helium

Tami não percebeu de imediato, mas sentia-se ainda mais tonta e de repente, sua visão ficou turva e seu olhar ficou preso ao corpo sem alma a sua frente. Ela não tinha mais controle sobre sua mente ou corpo, tudo o que conseguia era fazer pequenos movimentos arrastados. Seus pulmões inflamavam, pedindo por oxigênio e por mais que aquilo doesse, Tami sentia se tão leve, que seus olhos se fecharam calmamente.

=-=-=-=-=

— Aí, posso falar com você por um minuto? – Alex se dirigiu à Astrid, com uma expressão envergonhada. A russa estranhou por um momento, mas concordou em ir com ele para um lugar mais afastado do grupo.

— все в порядке. – Astrid disse sem querer em russo, e quando um enorme sinal de interrogação surgiu na cabeça de Alex, ela tratou de se corrigir: - Eu quis dizer “tudo bem”. O inglês não é um idioma que domino com perfeição.

— Eu só queria agradecer por ter me defendido, mesmo que não precisasse. – Alex se aproximou sem jeito e a cumprimentou com um gesto amistoso no braço, algo que não era muito do seu feitio. - Isso não é o tipo de coisa que as pessoas fazem por mim.

— Não foi nada. – Astrid retribui com um sorriso amável. - Eu vi quando aquela garota estranha pediu para você segurar a mochila dela. Sei que você não é o responsável por isso. E aquele cara, o tal do Nate, é um babaca.

Assim como Nate também parecia ter, Sasha possuía uma personalidade explosiva e disso ela já sabia, mas nunca pensara que a insegurança dele se voltaria contra ela um dia. Até que numa noite, após uma discussão fútil, Astrid viu uma face totalmente diferente do “ciúme bobo e o senso de proteção” que o noivo dizia ter.

Foi difícil para ela explicar sobre o olho roxo, os machucados e hematomas para os pais. Eles sabiam que a filha tinha lutado centenas de vezes e em nenhuma delas, ficara tão machucada como daquela vez. Astrid mentiu para não preocupá-los, mas naquela noite, todo o amor que sentira por Sasha morreu.

Assim como o relacionamento deles.

— Ei, você acredita mesmo no que a garota falou? – Alex se referia ao que fora dito antes por Jane, a moradora de rua. – Tipo, o meu pai falava muita coisa parecida desde que se aposentou do exército, mas ele era meio pancada da cabeça e eu nunca pensei que fosse verdade. Até agora.

Antes que Astrid pudesse responder, duas pessoas se aproximaram deles, Cisco e Laura.

— Vocês viram uma moça de chapéu passar por aqui. – Laura perguntou visívelmente preocupada. – O nome dela é Tami.

— O policial disse que ela sumiu assim que a gente entrou. – Cisco reforçou. – E acho que num momento desses, não devemos deixá-la sozinha por aí.

Astrid e Alex negaram, o que causou uma inquietação no engenheiro, mas principalmente em Laura. A artista plástica sabia mais do que ninguém, como era a dor de perder um pai e conseguia enxergar o sofrimento genuíno de Tami. E se de alguma forma, Laura pudesse confortar o coração de Tami, ela faria isso.

Até que escutaram um grito de puro horror.

=-=-=-=-=

O odor do hélio não podia ser sentido, mas Randy conseguia notar que havia algo errado, assim que chegou até aquele corredor e viu o cilindro girando loucamente no próprio eixo. Dando passos apressados, o policial viu o corpo da desaparecida. E mais adiante, um corpo em avançado estado de putrefação.

Randy não conseguiu segurar o grito. A situação já tinha perdido qualquer controle.

O hélio do cilindro mal armazenado chegara ao fim e mesmo sabendo que não havia risco de explosão, Randy se apressou em colocar a cabeça no lugar e se concentrar na pessoa que viera procurar. O policial abafou o nariz com o braço e se aproximou da professora.

— Tami! Você consegue me ouvir? – Sem resposta. Ela parecia tão em paz, como se estivesse apenas dormindo.

Atrás dele, Laura e Cisco surgiram. A loira estremeceu ao ver ambos os corpos. Muitas lembranças ruins invadiam sua mente e era provável, que nem toda a terapia feita no grupo de apoio da igreja, fosse capaz de ajudá-la novamente a seguir em frente.

— Me ajudem a tirar ela daqui. Para o mais longe possível! – Randy gritou, ignorando o militar morto. Aquele era um assunto para mais tarde.

Cisco tomou a jovem inerte em seus braços. Ela era tão pequena que se aninhava perfeitamente ao corpo do engenheiro. Tão pequena, de caber no coração.

O engenheiro já havia perdido muita coisa em sua vida. A desilusão no trabalho e a ruptura brusca entre ele, Tony e Cameron ainda pesavam em sua consciência, e o engenheiro sentia-se como se estivesse se afundando cada vez mais num lamaçal de tristeza. E mesmo Tami sendo até então, uma pessoa desconhecida, Cisco queria ter de volta o controle de algo em sua vida.

Ele não podia mais se deixar ser levado, como um barco perdido numa tempestade.

— Acho que ela não está mais respirando. – Laura disse, levando as mãos até a boca e suando cada vez mais frio. Durante o transporte, ela percebeu que o couro cabeludo de Tami parecia deslocado embaixo do chapéu, mas não comentou nada.

Numa área mais distante, Cisco devolveu Tami com cuidado ao chão. Randy tomou seu lugar e pegou os pulsos da professora, porém com todo aquele nervosismo, ele mal podia sentí-los. O policial apoiou sua cabeça sobre o peito de Tami, sendo observado silenciosamente por Cisco e Laura, mas quase não ouvia mais os batimentos cardíacos de tão fracos. Era uma questão de tempo para seu coração parar totalmente.

Randy tapou o nariz de Tami, respiração boca a boca, ele não sabia se ia ajudar, mas tentou mesmo assim. Alternando-se entre a massagem cardíaca e a respiração artificial, mas conforme os segundos passavam, Tami ia sendo levada embora.

— Ai meu Deus... – Laura gemeu apavorada, enterrando seu rosto contra o peitoral de Cisco, que instintivamente a cercou com seus braços. Sentindo que o pior se aproximava.

Enquanto o coração de Tami continuasse funcionando, Randy não pensou em desistir por um minuto sequer. Mesmo expondo-o publicamente, Tami salvara sua vida e a salvar a dela, era o mínimo que ele podia fazer.

Como se tivesse acordado de pesadelo, o corpo de Tami tremeu num espasmo. A professora se ergueu assustada, puxando o ar em sua volta de forma pesada e demorou um pouco, para notar que Randy segurava firmemente sua mão. Tami meneou a cabeça e se inclinou um pouco, sem soltar a mão dele.

— Bem-vinda de volta. – Disse o policial com um sorriso aliviado.

=-=-=-=-=

O jornalista já imaginava que título sensacionalista Gerda colocaria no jornal, assim que aquela história fosse ao público. Mais afastados dos outros e sem saber ainda do acidente de Tami, Lucky vasculhava cada centímetro daquele enorme depósito, procurando por uma provável saída. Mas a mesma sensação agonizante voltara, gelando sua espinha e fazendo o desconfiar de qualquer sombra que passava por ele.

E também de som muito fraco, que parecia estar chamando por ele.

Lucky...

Quando todas as luzes do depósito se acenderam, o jornalista agradeceu mentalmente. Espaços confinados o deixavam nervoso, a não ser que tivessem algum valor histórico. Lucky sentia-se melhor quando estava cercado pela natureza, quando podia sentir a terra sob seus pés, e o céu sobre sua cabeça.

Lucky... — Mais uma vez.

Ele tentou ignorar, precisava terminar logo aquilo antes da bateria do celular acabar. E tinha algo que era ainda mais importante, assim que amanhecesse, ele iria sair com Ariel para que passassem o dia juntos e retomar a conexão que existia antes do filho ficar paraplégico e se desligar do mundo. Aquela era uma promessa que ele não queria quebrar.

— Lucky! – Astrid puxou o jornalista pelo ombro. - Não me ouviu te chamando?

— Hummm... Talvez. Desculpa. – Ele sentiu como se tivesse levado uma bronca, o que por um momento, fez com que soltasse um sorriso. E logo deu lugar à preocupação de antes. - Já passou uma hora desde o atentado e não consegui mais esperar. Não quero contar nada para os outros, nem causar pânico ainda, mas a gente precisa sair daqui de qualquer jeito.

— É melhor me contar o que está escondendo. – A loira fitou Lucky seriamente. Astrid tinha um olhar tão hipnótico, que não permitia que desviassem os olhos dela.

Lucky suspirou derrotado. O que ele tinha descoberto enquanto vasculhava o depósito era preocupante e contar para os outros sobreviventes não era uma boa idéia, mas por algum motivo, ele sabia que podia confiar em Astrid.

Apressando-se em usar o pouco de bateria que restava, Lucky mostrou as plantas do aeroporto no seu smartphone de tela infinita para a lutadora. Ele mostrou o caminho que fizera naquela tarde, desde o escritório da administração, o saguão principal e o corredor de serviço por onde vieram, que ficava abaixo do terminal de desembarque.

— Eu não entendo nada de plantas e engenharia, é melhor chamar o Cisco...

— Esse lugar não existe, Astrid. – Lucky revelou, arrancando uma expressão confusa da lutadora. - Olha só, todas as plantas que encontrei diferem em algum momento, principalmente sobre o perspectiva de tamanho do lugar, mas em nenhuma delas, esse depósito aparece, Astrid.

Astrid reviu as plantas uma por uma, sob um novo ponto de vista e pode confirmar o que o jornalista dizia. Em nenhuma das plantas colhidas por Lucky, havia algo que indicasse a presença de salas ou depósitos como aquele naquele corredor em especial. Era como se ele simplesmente nem existisse.

— Então, se ninguém sabe que da existência desse lugar... – Ela parou, já sentindo qual seria a resposta daquela pergunta.

— Significa que ninguém nunca vai procurar a gente aqui.


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Notas finais do capítulo

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