Superstition escrita por PW, VinnieCamargo, Jamie PineTree


Capítulo 11
Capítulo 09: Flowers N' Rifles (Parte II)


Notas iniciais do capítulo

Escrito por PW



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Cisco estava empenhado em concluir seu plano. No centro da Sala de Comunicações, ele fazia sua mágica e digitava diversos códigos em um dos computadores. Ele abrigava o servidor principal, que abria as portas da rede para o restante das máquinas. Algumas luzes piscavam ao longo da sala, sinal de que tudo ia como ele queria.

O engenheiro estava quase lá, ele estava sentindo que seus passos se aproximavam da porta iluminada, a saída nunca pareceu tão próxima. Foda-se os militares! Esses merdas vão comer o Protocolo Argo querendo ou não! Esbravejou em pensamento. Cisco não queria saber se as coisas funcionariam, por hora, estava concentrado em fazer valer a pena todo o esforço. Passou muito tempo pensando em como resolveria seus problemas, tão concentrado em chegar ao fim, que não dava a mínima aos meios e isso o ferrava. Agora ele compreendia o significado de “os fins justificam os meios”. Se o homem quisesse que sua história com o Amelia Earhart acabasse bem, ele teria que dar tudo de si, diferente de quando pulou fora da relação com Tony e Cameron. Ou quando seu contrato na plataforma acabou e ele decidiu fugir para a casa dos velhos pais.

Por mais que sentisse saudades dos lábios de Cameron, das mãos de Tony, das noites em que o trio bebia e terminava com seus corpos quentes na cama… Ele não esqueceria que fora sua decisão de ir embora, que definiu como o espaço no seu coração esfriaria. Cisco não se arrependia totalmente do feito, ele finalmente estava livre do peso de se sentir emocionalmente incompleto. Ele tinha tudo quando o assunto era toque, corpo, sexo… Mas sua capacidade de se relacionar era como uma torneira ligada. Cisco transbordou e foi esvaziando, até não sobrar nada.

Ao despertar dos pensamentos com um barulho claro, os olhos do rapaz brilharam atrás dos óculos. Na tela do monitor, um background preto com um espaço nas cores do emblema do aeroporto para inserção de caracteres. Cisco precisava apenas de uma senha de acesso, para entrar no sistema de comunicação do aeroporto e enviar o alerta. Mas como conseguiria a tal senha? Tá feliz, Amelia?

O zumbido seguinte o assustou. Desligou o monitor ligeiramente e se jogou embaixo da mesa. Inclinou-se e viu um objeto voador sobrevoando a sala. Havia uma luz vermelha acesa e o drone carregava uma coisa em sua parte inferior, que o engenheiro conseguiu enxergar perfeitamente.

Uma câmera ligada.

Os militares haviam o encontrado.

XXXXX

Um, dois e a caneta de ferro tilintou. Três, quatro, a caneta tilintou outra vez. Cisco abriu os olhos e respirou fundo, a imensidão branca girou e o assustou. Nem percebeu, mas tinha caído em seus devaneios outra vez.

Estirado sobre o sofá da terapia, encarava o teto, estoico. Os braços permaneciam cruzados sobre o corpo e compenetrado em não falar nada, Cisco notou a mulher elegante e serena batendo a caneta contra a quina da mesinha. A única coisa que pensou foi em como aquele sofá era pequeno para seu corpo alto, seus pés estavam pendurados.

— Eu sei que não é nada fácil pra você estar aqui, Francisco. — Proferiu ela, sua voz era aveludada e extremamente doce, como a de sua mãe. — Mas eu preciso saber mais de você.

Era a primeira vez dele ali. Confessou estar com medo, nunca tinha dado de cara com uma terapeuta como ela antes, principalmente pela postura que passava. Os outros profissionais pareciam menos dedicados, talvez. Ele conseguia driblá-los facilmente. Cisco passou por pessoas demais para fazer deles uma figura manipuladora, então seu cérebro já estava formatado para evitá-los. Achou que ela faria de tudo para entrar em sua cabeça e o homem não queria ninguém mexendo em sua mente. Esquecera muitas coisas ruins no passado e não seria uma mulher bonita com a voz de uma pena caindo que o faria recordar.

— Pode confiar em mim, Francisco. Seus superiores me contrataram, mas eu serei sua amiga a partir de agora. Sua mente estará segura comigo. — Jeanne explicou, quase sussurrando.

Ela estava prestes a conhecer vestígios de sua mente turbulenta.

— Apenas comece de onde achava que é válido começarmos.

O engenheiro arrumou os óculos quadrados sobre o rosto e detestou ter corado naquele momento. Fora a primeira vez e meses. Sentiu-se novamente uma criança tímida. Maldita hora em que a deixou para se enfiar no meio do oceano. A plataforma havia deixado mais sequelas do que imaginou. E ele entendia que precisava conversar com aquela mulher, de alguma forma estava ficando confortável.

— Depois não me culpe por desgraçar sua cabeça, moça. Os outros saíram traumatizados. — Brincou sem questionar.

Ela abriu um sorriso meigo.

— Experimente, Francisco.

O homem franziu, sentindo-se desafiado. A terapeuta prosseguiu:

— Não há nada de complicado em ter passado por situações complicadas. Nenhum risco é tão grande, quanto se fechar por inteiro e guardar seus sentimentos só para si. Abra suas cicatrizes para o mundo, deixe-o ver do que você é feito.

Com os olhos marejados e de peito aberto, Cisco começou o primeiro relato.

XXXXX

— Não faça essa cara para o seu pai, Jane Doe. — O carrasco disparou.

Instintivamente, Jane afastou-se e, atordoada, caiu em cima de algumas caixas dentro da tenda. A andarilha não conseguia tirar os olhos da figura resiliente, enquanto o dono daquele sorriso sórdido insistia em se aproximar. Meu pai… Meu pai? Seus lábios tremiam de frio e apreensão. Ela levantou depressa e de soslaio, encarou a saída da tenda. Tudo que mais queria naquele momento era fugir para longe e nunca mais vê-lo na sua frente.

Jane sacou um pedaço de madeira pontiaguda de um das caixas quebradas. Apontou na direção dele. Por mais que tremesse, se ele fosse capaz de investir, ela seria capaz de atravessar aquela farpa pelo seu estômago. Pensou no sangue quente escorrendo no piso.

— Não se aproxime! — Avisou. Os cabelos caíam no rosto, escondendo o olhar selvagem.

O homem parou e encarou.

— Você quer mesmo fazer isso? Quer resistir? Seria mais fácil se apenas conversássemos feito duas pessoas civilizadas.

— Vai se foder! — Jane esbravejou a plenos pulmões. — Não quero ser civilizada!

Encarou de novo a saída, pronta para correr e não olhar para trás. Ele nunca a alcançaria, nem em milhões de anos um indivíduo como aquele, de sapatos caros e relógio importado, seria capaz de pegá-la. Felizmente, as ruas ensinaram para Jane que pessoas sem rumo são as mais espertas, pois elas mesmas constroem o próprio caminho a trilhar.

E o caminho de Jane daria diretamente para fora daquele inferno.

O homem oriental refletiu por alguns segundos e comentou:

— Sua mãe ficaria feliz em te ver, ela está muito preocupada, sabia?

O coração de Jane começou a bater mais forte. A farpa de madeira quase despencou de suas mãos, mas ela se mantinha firme. Sentiu o chão se desfazer sob seus pés. Pelo que constatou, sua mãe era a única pessoa capaz de desarmá-la, apagar sua alma que ardia como brasa e esfriar seu sangue que fervia dentro das veias. A mulher ensinando a garotinha a tocar piano era a mesma que pintara o quadro do templo, a mesma que assinava os quadros que encontrou. Jun Kobayashi. Agora Jane lembrava como reconhecia a Sala de Controle e a cadeira em que sentara, a vista para a pista de decolagem… Minha mãe trabalhava como Controladora de Voo no Amelia Earhart, é isso!

Jane sempre esteve em casa.

O insight fez Jane engolir em seco, dizendo:

— Eu lembrei do que você faz.

— Me chame de pai, Jane. Eu sou seu pai e sempre serei.

— Vá a merda! Chamo como quiser, se tem uma coisa que você não é… É um pai! — Ela cuspiu. — Como alguém que detém tantas responsabilidades consegue fazer tantas atrocidades? Essa merda toda de conspiração e esconder segredos do governo, enganar as pessoas, matar outras!

O oriental engravatado estufou o peito.

— Tem senadores que se escondem atrás do título e senadores que fazem valer a pena sua alcunha, querida Jane. Eu sou um dos que fazem valer o título, não importa o que seja, estarei aqui para proteger minha nação.

— Seu patriota de merda! — Ela berrou, rangendo os dentes, e avanço. Pulou e direcionou a farpa contra o peito do Senador. — Nesses dias que passei aqui presa por você e seus soldadinhos, aprendi que a única coisa que não conseguimos enterrar, é a verdade e a sua em breve estará estampada na primeira página do jornal, Senador Kobayashi!

Ela não conseguiu acertar o primeiro golpe e viu quando o político sacou uma pistola. Jane tentou deferir outro golpe e um tiro ecoou pela tenda.

Atordoada, a andarilha recuou. Não havia atirado para matar, ela presumiu. Então, apenas deu de ombros e correu para fora dali.

XXXXX

Hilligan entrou no galpão marchando com seus seguidores. Estranhou que o ambiente estivesse mergulhado em um silêncio sepulcral. Intrigado, ele foi até a vidraça da sala cirúrgica onde prendera os sobreviventes. Não ouviu nada e achou tudo muito suspeito.

Aproximou o rosto do vidro e apertou o nariz contra o material frio, olhando para dentro. Por mais que estivesse embaçado, era claro pra ele que não tinha nenhum sobrevivente ali. Todas as lâmpadas do local oscilação, criando uma vertigem, mas um foco de luz chamou sua atenção vinha do final do cômodo.

— Ei, seus incompetentes, venham até aqui! — Bradou, chamando a atenção de alguns soldados.

Chegaram perto com imediatez e o sargento continuou:

— Essa é a hora de se redimirem. Ouçam bem! Entrem e vejam o que os ratinhos estão aprontando. Um deles fugiu mais cedo, então a sentença já foi dada, podem matá-los sem dó!

Todos assentiram e prepararam suas armas, empunhando-as. Eles estavam prontos para a guerra. O Sargento Hilligan apenas destrancou a porta e um rangido se fez presente. Abriu passagem para seus inferiores. Aquela era a hora de darem continuidade à operação.

Os militares entraram sorrateiramente na sala e foram recepcionados por um móvel que voou em sua direção. O objeto bateu contra dois deles, que se desequilibraram e caíram. Com as armas apontadas, os outros começaram a atirar na direção de onde acharam terem visto o móvel vir. Uma grande mesa surgiu da extensão do cômodo e eles continuaram disparando. As balas ricocheteavam no metal, criando rastros de faíscas, enquanto a mesa se aproximava rápido. Atrás dela, Randy e Lucky encolhidos a seguravam e empurravam contra os soldados.

Tami e Astrid também surgiram de outro canto da sala cirúrgica. A lutadora ergueu uma maca e lançou contra o soldado caído. Ele gemeu e despencou de volta, desacordado. As luzes piscavam e Tami correu para a porta. Outro soldado que estivera no chão, levantou e apontou sua arma contra o rosto da professora. Tami berrou e segurou firme os pedaços de gesso da parede que os rapazes derrubaram. Ela jogou as pedras e uma delas atingiu o braço do militar, que deixou a arma cair. Tami chutou-a para longe e deferiu um golpe certeiro com a pedra contra o rosto do soldado, atingindo seu olho.

Entreolhou-se com Astrid e viu os homens empurrarem a mesa na direção da porta, prensando os outros dois militares contra a parede. Um deles tinha o braço armado para baixo, impossibilitado de mover-se, mas o outro conseguiu livrar a mão na qual estava sua arma e atirou contra o pé de Lucky, que gritou.

Fora apenas o susto, o tiro acertou o chão e Lucky pareceu aliviado. O soldado tentou atirar mais uma vez, mas Astrid o recepcionou bem ao lado com um soco, que estalou seu maxilar. Dois dentes do soldado pularam da boca e ele ficou tonto. Randy fez as honras e acertou o outro militar. Os dois caíram inconscientes.

— Rápido, as armas! — Randy avisou, pegando o armamento do militar que derrubou.

Todos os outros: Astrid, Lucky e Tami se apossaram de uma arma e marcharam para fora do centro cirúrgico abandonado. Hilligan havia sumido. Randy fez uma ronda pelo galpão com sua arma em punho para ter certa, enquanto Lucky e as garotas trancavam a porta da sala e barravam com coisas pesadas encontradas no galpão.

— Precisamos encontrar o Cisco! — Lucky exclamou suado, enquanto parou para respirar. — Lembrei que ele morria antes da Astrid.

A lutadora se enrijeceu.

Antes de sair do galpão, Lucky viu um pedaço de encanamento do teto despencar e esmagar um recipiente de vidro que jazia jogado no piso. Os cacos se espalharam num uníssono agudo e Tami soltou um gritinho, assustada. Foi inevitável que o jornalista ficasse arrepiado e uma onda de eletricidade percorresse seu corpo. Seria aquele um sinal da morte do companheiro?

— Acho que o Cisco vai morrer esmagado. — Sua fala eclodiu no silêncio. — Não podemos deixar que isso aconteça!

XXXXX

O drone deu algumas voltas barulhentas e baixou voo, ficando na frente de Cisco. O engenheiro suava frio e deferiu um chute, mas não acertou o objeto, que voou para longe. Seu braço latejou.

Resolveu sair debaixo da bancada e deixar o lugar o mais depressa, o Protocolo Argo poderia esperar mais alguns minutos. Ele voltaria com a senha. Ele não fazia a mínima ideia de onde o controlador do equipamento poderia estar. Poderia estar detrás da porta, inclusive. Então, ele apressou o passo, trombando com cabos espalhados pelo piso. Por pouco não escorregou e tropeçou, um dos cabos se desconectou e uma faísca discreta dançou no ar. Nada aconteceu. O drone voltou a sobrevoar ao seu encalço, a câmera ligada à tiracolo.

Cisco parou e mostrou o dedo do meio para a câmera.

— Me peguem se forem capazes, cães do governo!

Então, deu meia-volta e passou pela porta, mas sentiu algo resistente no meio do caminho e esbarrou, desengonçado. Recuperou-se ligeiramente, mas viu o fardamento camuflado típico do exército e deixou uma corrente de ar escapar dos lábios, antes de senti-lo agarrar seu braço machucado com força. Cisco urrou com a dor que consumiu seu membro e foi forçado a ficar de joelhos. No meio da descida, encarou a arma de grosso calibre no outro braço e olhou para cima, apenas para encarar um Sargento Hilligan com os olhos embrasados.

— Parece que nos encontramos de novo, engenheiro. — E abriu um sorriso diabólico. — Mas dessa vez, você não conseguirá escapar, eu mesmo vou esmagá-lo.

Entre ranger de dentes e uma dor lancinante, Cisco se contorceu. Seu músculo estava um centímetro de implodir, podia sentir as veias inflarem. Deu uma última olhada para trás, o drone estava parado no ar, com suas hélices girando. Por um segundo, Cisco sentiu-se imbatível, mas agora sentia a morte respirando na sua nuca. A sensação de Louis ter sido tragado pelas sombras aumentou e ele se sentiu impotente. Mais uma vez, Cisco sentia-se inútil. Primeiro Tony, depois Cameron e por último todas aquelas pessoas com quem conviveu todos esses dias…

Disposto a desistir, Cisco deu um impulso para frente e o solavanco desestabilizou o Sargento, que sacou a arma e deixou o engenheiro correr com as forças que ainda tinha por alguns metros. Em seguida, posicionou seu rifle e apertou o gatilho.

Cisco foi direto pro chão e a parte interna de seu braço queimou.

XXXXX

Lucky pulou o pequeno muro de concreto e passou pela abertura com a facilidade da sua altura. Randy e Tami fizeram o mesmo, mas Astrid teve um pouco de dificuldade por conta de sua baixa estatura e obteve a ajuda do jornalista. Ele carregava uma bolsa com os arquivos encontrados no galpão, não sairia do aeroporto sem aquelas provas. Os quatro adentraram na garagem e os olhos de Tami brilharam ao avistar a ambulância da qual Nate citou antes da morte de Laura.

Randy logo correu para verificar suas condições. Olhou para dentro e não viu nenhuma chave na ignição. Alguém apressado deveria tê-la largado para trás depois do atentado. Eles tinham encontrado o pote de ouro no final do arco-íris, por isso o policial tratou logo de retirar a blusa de seu fardamento e amarrar ao redor do braço. Tami viu o homem enfiar o braço coberto no vidro da ambulância com força. Randy conseguira destravar a porta, os estilhaços caíram aos seus pés.

— Venham, não temos mais tempo a perder, vamos embora daqui! — Ele acenou com a cabeça, animado. Começou a fazer ligação direta no automóvel.

— Mas… E o Cisco? Eu não vou deixá-lo para trás nas mãos dos militares. — Tami protestou, parando de caminhar.

Astrid passou por ela e tocou o ombro da professora.

— Cisco pediu que confiássemos nele, Tami. Eu confio e você?

A latina assentiu, mas não se sentia bem em deixá-lo à própria sorte.

— Nós vamos conseguir ajuda. — Randy estava com a cabeça para fora da janela, olhando o trio. — E com sorte, ele já deve estar do lado de fora nos esperando para resgatá-lo.

— Ele é o próximo, tenho medo de que ele não consiga… — Tami encheu os olhos de lágrimas.

— Nós decidimos nos sacrificar por todos, assim como ele decidiu se sacrificar por todos, Tami. — Lucky murmurou. — O Cisco é um homem forte e vamos encontrá-lo, ok? Mas primeiro, precisamos aproveitar essa oportunidade e buscar ajuda.

Ouviram o som de motor ligado e um grito de comemoração de Randy dentro do veículo. A ambulância estava pronta para partir, os fárois acesos batendo no portão de ferro. Lucky e Astrid se puseram na frente de Tami, a professora encolheu os ombros e avistou o par de mãos pálidas ir em direção a ela.

— Chegou nossa hora, vem, vamos fazer isso pelo nosso amigo. — Astrid disse e abriu um sorriso feliz. Lucky também sorria ao lado dela, com os olhos repletos de esperança, como Tami nunca tinha visto naqueles dias de clausura.

A mulher latina fechou os olhos e sentiu a maciez da mão de Astrid. Estava pronta.

Minutos depois, acelerando a ambulância em alta velocidade, Randy arrastou o único obstáculo, aquele portão de ferro. O ar frio da noite entrou entrou pelas janelas e o sentimento de liberdade foi imediato.

XXXXX

O ar frio bateu contra o rosto de Cisco e ele pensou estar debruçado na janela do consultório de Jeanne ou até mesmo do seu quarto que permanecia intacto na casa dos pais. Finalmente estava livre!

Pelo contrário, o engenheiro abriu os olhos para encarar sua nova realidade e deu de cara com um breu e uma enorme sombra se erguendo sobre seu corpo. Um cheiro de ferrugem e um sinal sonoro contínuo. Ele não conseguia se mover, estava atado por inúmeros nós de cordas em volta dos braços justapostos ao tronco e pernas sem condições de mexer, quase empacotado.

Seu braço machucado permanecia dormente, mesmo que seu sangue tivesse esfriado. Agradeceu por não poder olhá-lo, deveria estar todo fodido. A saliva escorregou seca na garganta e abaixo de sua panturrilha, sentiu uma poça empapar sua pele. O buraco feito pelo rifle do militar era gigantesco e quase explodiu toda sua perna. Cisco quis chorar, mas não tinha mais lágrimas. Cisco tinha se tornado um crocodilo naquela situação.

O sinal sonoro continuou e ele olhou para cima tomado pela confusão. Duas colunas horizontais de metal reluziam à luz da lua e sustentavam o que parecia ser uma caixa. Uma grande caixa, onde caberiam três Ciscos. Identificou como sendo um elevador de transporte de carregamentos do aeroporto. E começou a se debater, tentando se livrar da corda, mas seu corpo estava dormente demais para fazê-lo. Tombou a cabeça de volta no asfalto das margens da pista de pouso e tentou manter a calma.

Conseguia ver as luzes da pista bem próximas.

A calma não durou dois segundos.

— SOCORRO! — Berrou e sua voz se distanciou vazia pelo céu apinhado de nuvens.

O sinal sonoro soou mais alto e ele arregalou os olhos quando o elevador se movimentou vertiginosamente acima dele. Uma risada e o elevador parou bruscamente. A carga em cima do dispositivo sacudiu.

Cisco tentou avistar de onde vinha a risada, mas sabia que estava bem perto. Olhou instintivamente para o lado e viu os grossos pneus do carrinho. Aquilo esmagaria sua cabeça em questão de segundos, a ideia o congelou. Olhou para o lado oposto e solas pesadas de uma bota grudaram no chão, levantando poeira. Botas militares.

— Já que os outros não conseguiram, eu prometi a mim mesmo que daria conta do recado. — Hilligan ficou de cócoras ao lado do engenheiro, analisando com prazer sua expressão abalada.

— Faça o que tem que fazer de uma vez e não enche o saco! — Cisco repudiou.

Cuspiu na cara do sargento e tomou um soco em seguida, tonteando.

— Você se acha espertão, né, Francisco Gallo? Eu tenho nojo de gente que acha que tem a resposta pra tudo, mas não passa de um animal indefeso, uma presa prestes a ser devorada pelo predador. E adivinha quem é seu predador? — Ergueu a sobrancelha sisuda. — Esse garotão aqui. — Hilligan bateu várias vezes na lataria do transportador. — Ele suporta até dez vezes seu peso, digamos que, em questão de minutos, teremos merda italiana espalhada pela pista.

Cisco arrepiou-se, mas não se deixou temer pelo carrasco. Quis cuspi-lo outra vez, mas já tinha uma bochecha inchada e não queria ter um rosto feio ao adentrar no Mundo dos Mortos.

O transporte fez um barulho maior, como se estivesse acelerando aos poucos.

— Está na hora, engenheiro.

— Vai pro inferno!

Hilligan debochou e subiu no carrinho, pronto para apertar o botão para descer o elevador. Deu uma última olhada para a caixa e sua mão bateu no botão feito manteiga. O elevador estremeceu, o sinal sonoro apitou e Cisco gritou, balançando a cabeça freneticamente em negação.

A estrutura começou a descer.

— ME AJUDEM, EU NÃO QUERO MORRER! — As lágrimas do engenheiro começaram a brotar.

Hilligan foi atingido por uma pancada forte e veloz. Seu cotovelo bateu contra o painel, e o botão fez o elevador parar de funcionar. Não soube dizer de onde veio o impacto, mas caiu de cima da cabine do transportador com um baque surdo.

XXXXX

Uma brisa sorrateira empurrou o rifle que estava encostado contra o banco da cabine, que despencou e acionou novamente o botão de ligar. O elevador voltou a descer.

Jane não percebeu e viu o rastro de sangue da boca e nariz do sargento que ficara na ponta do pedaço de madeira. Sorriu satisfeita. Observou o homem se contorcendo lá e cá no chão e subiu o primeiro degrau do carrinho. Ela ouvira os gritos desesperados do companheiro e viera como um jato.

Hilligan imediatamente puxou a oriental para baixo e Jane se desequilibrou. Acabou batendo o rosto contra o degrau, gemendo de dor e caindo de joelhos. O homem então investiu e lhe passou uma gravata. Os braços musculosos apertaram seu pescoço.

A distância era grande demais para o sargento conseguir alcançar seu rifle.

Ao fundo da briga, Cisco berrava por ajuda. O elevador estava cada vez mais próximo.

Jane pensou nas mãos livres e tateou uma delas sobre o rosto do veterano de guerra. A outra foi na direção oposta, para baixo. A andarilha enfiou o polegar no olho esquerdo de Hilligan, que urrou, rangendo os dentes. Ele estava com ódio e passou a comprimir ainda mais a garganta da oriental.

A cabeça já estava assumindo uma coloração arroxeada. Jane estava ficando sem oxigenação, sem forças. Ela tateou sua querida farpa de madeira, resistindo à gravata. Os olhos esbugalhavam e sua pupila começava a dilatar. Jane estaria morta em pouco tempo, teria que ser mais rápida em seus últimos segundos. Naquele momento, não sabia qual era o estado de Cisco com o elevador, mas cogitou se valia a pena morrer antes dele. Se sua morte mudaria algo no rumo de vida do seu amigo.

Amigos. Jane tivera poucos em sua vida, mas entendia o valor de se preservar alguém como Cisco. Alguém com sua percepção de mundo, sua garra, sua personalidade singular e com sua lealdade. Cisco sempre se provou leal às suas convicções e Jane não deixaria que Hilligan o apagasse de sua memória nunca mais.

A oriental surpreendeu o sargento, fincou a madeira em sua coxa e lhe arrancou um urro estridente. A gravata se desfez e Jane pôde levantar e tomar o oxigênio que faltava.

— Jane? Jane é você? — Cisco gritou, a voz desesperada e trêmula.

Ele ainda estava vivo!

— Jane me tira daqui agora, por favor! Tá muito perto!

Mas Jane não teve chances de chegar até o botão. Hilligan utilizou a perna saudável para chutar a costela da andarilha. Jane atingiu de bruços a lataria traseira do carrinho.

O elevador desceu mais alguns metros, a caixa pareceu mais ameaçadora. Cisco não aguentou e cedeu completamente às lágrimas.

XXXXX

Não há nada de complicado em ter passado por situações complicadas. Nenhum risco é tão grande, quanto se fechar por inteiro e guardar seus sentimentos só para si. Abra suas cicatrizes para o mundo, deixe-o ver do que você é feito.

A voz de Jeanne ressoou dentro de sua mente. Ele já estaria morto? Estaria apenas delirando?

A lonely road, crossed another cold state line

Miles away from those I love purpose undefined

While I recall all the words you spoke to me

Can't help but wish that I was there

And where I'd love to be, oh yeah

Cisco só pensou em coisas não ditas, em sentimentos que nunca foram escancarados, atitudes que poderiam ter feito a diferença. Talvez com Tony e Cameron, talvez com Laura, Louis... Cisco só tinha certeza de que suas cicatrizes eram feitas de inúmeros monstros, que decidiram aparecer para o mundo naquela noite.

Aquele quadro na parede é uma flor, uma multidão ou o rifle? Acho que é uma flor.

Sua voz substituiu a de sua terapeuta no meio da bagunça que era a mente de alguém com tantas imperfeições.

— O rifle! — Jane ouviu Cisco berrar. — Ele tem um rifle! Encontra o rifle!

Tarde demais, o peso do elevador já tinha chegado até ele.

Dear God the only thing I ask of you is

To hold her when I'm not around

When I'm much too far away

We all need that person who can be true to you

But I left her when I found her

And now I wish I'd stayed

'Cause I'm lonely and I'm tired

I'm missing you again oh no

Once again

Primeiramente, Cisco sentiu as bases da caixas, que prensaram seus ombros. Ele virou o rosto, de modo que apenas um lado da face sentiu o impacto inicial. Suas têmporas doeram e suas bochechas foram marcadas pelo fundo da caixa. O engenheiro ainda tentou desinflar seu peito e seu abdômen, para absorver menos peso. Mas não adiantou muito. Embaixo dele, apenas o concreto da pista. As bases curvadas do elevador estavam esmagando seus ombros e a falta de ar foi o primeiro indício de que Cisco estava morrendo.

Jane escalou a traseira do transporte de maneira ágil. Estava determinada a ir até o fim. O sargento mancou bem atrás dela, ele conseguira retirar a farpa de madeira e agora tentava acertá-la com o objeto. Os zunidos não desconcentraram a oriental, que entrou na cabine. A madeira atingiu a barra da lateral da cabine e a base do carrinho desestabilizou Jane, a andarilha rolou pelo banco e caiu de cara no painel.

There's nothing here for me on this barren road

There's no one here while the city sleeps

And all the shops are closed

Can't help but think of the times I've had with you

Pictures and some memories will have to help me through, oh yeah

Cisco berrou uma última vez, o inferior do elevador comprimiu seu peito para trás bruscamente. Ele ouviu ossos quebrarem, talvez fossem suas costelas. A sola de seus pés já estavam tortas o suficiente para quebrarem seus tornozelos, mas ainda resistiam. Cisco fechou os olhos, sentindo a cabeça prensada contra a pista. A dor era insuportável e ele desejou a morte fosse mais rápida. Depois disso, sua visão escureceu.

Jane apertou o botão e o elevador parou de descer. Ela não ouviu mais Cisco e caiu em lágrimas.

— Você é idêntica ao seu pai. — O sargento provocou, abaixado do lado de fora do transporte. A cara toda ferrada.

Tomada pelo ódio, Jane agarrou o rifle e esperou pelo maldito.

Some search, never finding a way

Before long, they waste away

I found you, something told me to stay

I gave in, to selfish ways

And how I miss someone to hold

When hope begins to fade

Hilligan surgiu bem atrás dela com a farpa de madeira em mãos. Antes que atingisse em cheio a cabeça da andarilha, Jane virou-se e descarregou o rifle em seu rosto. A cabeça do militar explodiu em diversos pedaços, feito um balão vermelho de festas. Sangue e pedaços de cérebro respingaram na extensão de sua face e o resto decapitado voou para fora da cabine.

Os lábios de Jane tremiam, mas seu olhar selvagem prevalecia.

— Eu não tenho pai.

A lonely road, crossed another cold state line

Miles away from those I love purpose undefined

 

Dear God the only thing I ask of you is to hold her when I'm not around

When I'm much too far away

We all need the person who can be true to you

I left her when I found her

A oriental voltou a sentir as lágrimas quentes escorregarem em sua pele e pulou para fora. Seu corpo todo doía e ela mal conseguia andar devido tantas escoriações. Caminhou até o elevador lentamente, as luzes vermelhas da pista fazendo um contraste pela noite enevoada atrás dela.

Abaixou-se. Queria ver Cisco, os cabelos molhados na frente do rosto, e não soube o que fazer em seguida, a não ser inclinar-se para cima e gritar para o céu com toda sua força.

And now I wish I'd stayed

'Cause I'm lonely and I'm tired

I'm missing you again oh no

Once again

XXXXX

Dentro da ambulância, Lucky abriu casualmente o diário e começou a ler algumas páginas.

“DIA 01

Meu nome é Abraham Carter Wippler, dezessete anos, Carolina do Norte. Esse é meu primeiro dia aqui, sou um dos mais novos do comboio. São muitos, talvez mais de uma dúzia. Estou intrigado, eles demoram para falar o que pretendem, mas parecem felizes de estarem conosco…”

“DIA 04

...Pararam de nos dar comida. Alguns dos nossos já começaram a apresentar reações opostas ao treinamento, mas isso nem sequer parece um treinamento. Ouvi um dos especialistas citar o nome Oracullum e vez ou outra a palavra “experimento”. O que isso pode ter a ver com tal descaso perante meus companheiros?”

“DIA 07

...Os primeiros foram levados para algum lugar desconhecido. Eles nos falam pouco, mantêm o mínimo de contato. Estamos sendo mantidos presos dentro de uma estufa hospitalar, sendo observados a todo momento. Meu companheiro, o soldado John Fisher, está péssimo, voltou do outro lado bastante fora de si. Confesso que está difícil vir aqui durante o dia, estamos sempre passando por testes psicológicos e físicos. Eu farei parte do próximo grupo que irá para o lado de lá…”

“DIA 13

...Depois daquele dia eu nunca fui o mesmo, começo a ver coisas estranhas acontecerem. Coisas que nunca aconteceram, coisas que acontecem tempos depois de tê-las visto. O que diabos eles fizeram comigo? Inclusive… Por que tenho a sensação de já ter escrito estas entrelinhas?”

“DIA 15

Talvez essa seja a última vez que apareço por aqui. Tenho certeza de que eles irão mexer conosco novamente. Foram incontáveis vezes, mas desta vez nós vimos o próximo passo antes. Não era isso que queriam desde que começaram o Experimento Oracullum? Foi como da primeira, eu vi tudo em um sonho vívido. Não só a mim, mas vários da mesma remessa. Graças a uma falha deles não os deixaremos realizar a porra de uma lobotomia coletiva, vamos contra-atacar! Essa é a única chance de sairmos…”

Lucky fechou o diário, horrorizado.

XXXXX

I see the look in your eyes

I know you're thirstin' for blood

I feel it stirring inside

But you got nothing on us

A ambulância seguia com sua sirene desligada em alta velocidade pela pista de pouso, o vento chacoalhava os cabelos de Tami e a jovem segurava o chapéu. Lucky e Astrid vinham na parte de trás, balançando com as sacudidas causadas pela velocidade, se entreolhando vez ou outras, aquele olhar de “vai ficar tudo bem”. Porém, Tami, ao lado de Randy no banco do passageiro, não se perdoaria se algo acontecesse a Cisco, mas pedia ao universo que o colocasse em seu caminho.

— Aquela não é a Jane? — O policial perguntou, descrente.

— Onde? — Tami semicerrou os cílios.

Jane sacudia os braços.

— Tem alguém com ela… — Randy diria, mas foi interrompido pela professora.

— Oh, meu Deus! — Ela tapou a boca e seus olhos ficaram marejados. — Aquele é o Cisco! Randy, é o Cisco!

O engenheiro estava deitado com a cabeça no colo da oriental. Ele cuspiu sangue, gemendo com a dor ininterrupta. Completamente ferido e machucado, Cisco tentou acenar.

You want a war

You don't know what you're asking for

You want a war

You don't know what you're asking

You want a war

You don't know what you're asking for

You want a war, you want a war

— Caralho, temos um problema dos grandes! — Astrid berrou através de uma portinhola que dava acesso à parte dianteira da ambulância.

— O que foi agora? — Randy indagou, sem tirar os olhos de Jane.

— Tem dois caminhões do exército nos seguindo! — Lucky completou, enfiando a cara na portinhola também.

Randy viu os enormes faróis através do retrovisor e analisou o local onde Jane e Cisco esperavam. Haviam um transportador, muito sangue e restos de uma massa vermelha pela pista.

Bradou:

— Se preparem, temos uma missão de resgate e fuga pra realizar. Lucky e Astrid, abram as portas traseiras e aguardem meu comando!

Bring on the fire and bring on the storm

We'll still be here when it's all said and done

Burn down the bridges and tear down the walls

We'll still be standing invincible

Invincible

De onde estava, Jane conseguia enxergar parcialmente o que acontecia através da névoa. Atrás da ambulância, caminhões do exército vinham em sua perseguição e logo depois deles, escondidos pelo tamanho, um jipe militar.

Under in my chest

Adrenaline in my veins

You better bring your best

If you wanna play my game

E detrás do volante, o Senador Kobayashi.


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Notas finais do capítulo

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