Superstition escrita por PW, VinnieCamargo, Jamie PineTree


Capítulo 1
Capítulo 01: Timebomb (Parte I)


Notas iniciais do capítulo

Capítulo de introdução de alguns personagens. Escrito por todos os escritores.



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Todos os olhares estavam voltados para as duas mulheres no octógono.

De um lado estava Astrid, trajando um uniforme branco. A loira de olhos claros e provocantes, preparava-se mentalmente para o desfecho daquela noite, compenetrada em encarar sua rival. Aquela era uma luta definitiva no circuito e a vencedora, competiria na próxima fase, com a atual campeã e dona do tão cobiçado Cinturão do MMA.

Atrás dela, seu treinador massageava seus ombros castigados e a lembrava do por que estavam ali.

— Não se esqueça do que está em jogo, Astrid. Mostre a todos o que você pode fazer.

— É por isso que estou aqui. - Astrid acenou positivamente e calçou as luvas brancas, sem interromper o contato visual com Elena, sua oponente de vermelho.

A imprensa adorava os olhares provocativos nas fotos de divulgação, que faziam todas as vezes antes de cada luta, ressaltando que existia uma rivalidade fora do octógono. Astrid não pensava dessa forma, mas Elena sim. A americana jamais deixaria que uma garota mais nova lhe ofuscasse, para ela, era pessoal.

— Estamos nos preparando para o início do terceiro e último round! – Anunciou o comentarista em alto e bom som. – O embate final entre a russa, Astrid e a americana, Elena. Dois nomes bem conhecidos na categoria Peso Galo!

Os cornermens se afastaram assim que o gongo soou. Astrid e sua oponente se dirigiram para o centro do octógono, aumentando a tensão dos espectadores com o jogo de pernas cativante. Elena foi a primeira a atacar, aplicando vários cruzados de direita e esquerda em Astrid, que conseguiu desviar a tempo. Eram movimentos rápidos, não com o objetivo de machucar, mas sim desestabilizar sua oponente o quanto antes.

Astrid abraçou as pernas de Elena e a puxou para trás. A americana não percebeu de imediato e não conseguiu se livrar da jogada, perdendo o equilíbrio e caindo de costas. Elena já mostrava sinais de cansaço das rodadas anteriores, mas mesmo assim, avançou com um direto de esquerda. Astrid desviou, agarrou e travou o braço de Elena, imprimindo a força de suas pernas sobre o corpo dela.

— Sensacional! Astrid avança com uma chave de braço, pressionado a americana contra o octógono!

O árbitro se aproximou para a contagem, mas não teve tempo para isso. Com o outro braço livre, Elena deu um golpe certeiro no nariz da loira, que por um breve momento, recuou. Falhando na primeira tentativa de finalização.

— Isso vai ficar feio amanhã de manhã. – Brincou o comentarista.

Antes que percebesse, Astrid teve seu rosto levado ao chão com força, Elena imobilizou seu braço esquerdo e o peso do seu corpo não deixava que a loira se movesse. A platéia urrava desesperada para a contagem final. Elena era mais velha e mais experiente que a loira e a mídia já especulava que a americana era a preferida dos fãs para a vitória, o que só aumentava a pressão sobre os ombros de Astrid.

De relance, a russa podia ver o rosto nervoso de seu treinador. Ele lhe lançava uma expressão preocupada, mesmo que esperasse pelo sucesso de sua pupila, ele não conseguia deixar de soltar um “que porra é essa?” de vez em quando.

O árbitro se aproximou das duas, com o braço erguido para começar a contagem final de 10 segundos.

XXXXX

Analisando a pele da jovem como uma tela em branco, Alex colocou as luvas de borracha e ligou a máquina de tatuagem. A garota sobre a mesa soltou alguns gemidos de desconforto, que fizeram o tatuador dar um sorriso discreto.

— Mesmo que eu desmaie aqui mesmo, não pare. – Ela disse, sem conseguir disfarçar o incômodo.

— Só tente não pensar na dor. Logo vai acabar.

Alexander Holland era formado em Artes Visuais, mas o apreço por tatuagens falou mais alto na decisão do que fazer da vida. A dor das agulhas penetrando a pele repetidas vezes era algo que ele já estava acostumado com isso, aquela era uma forma diferente de arte e Alex era o seu maior adepto.

Ele morava num pequeno apartamento acima do estúdio, junto com José, seu melhor amigo que conhecera na última visita ao Brasil e a namorada dele à tiracolo. Alex não negava que o convite fora feito com segundas intenções, mas José tinha uma sexualidade diferente e era fiel à sua garota, o que a cada dia mais, só aumentava o ciúme de Alex pelo melhor amigo.

Alex pegou um frasco de Ritalina do bolso e engoliu alguns comprimidos. O remédio tarja preta lhe ajudava a se concentrar melhor no que fazia, além de ter o efeito de deixá-lo com maior facilidade para lidar com os problemas, que uma hora ou outra, sempre surgiam para atormentá-lo.

Anos atrás, Alex estava cansado de ser rotulado como um dos “esquisitos” na faculdade, nunca tendo conseguido se enturmar com a turma dos populares. O passo mais fácil foi se fazer ser notado, quando pintou o cabelo de amarelo-canário e pichou o carro de um dos odiados professores. Uma suspensão foi lhe dada de imediato, mas junto com ela, veio a admiração dos alunos.

Seu pai era um ex-general militar, aposentado da corporação, mas nunca dos velhos hábitos. Por isso, Alex fora criado com a rigidez de um soldado, como se ele próprio estivesse servindo ao Exército Americano todos os dias. O mesmo aconteceu com sua mãe, que não mais suportava a vida casada com um militar paranóico.

Ela foi embora de casa e anos depois, Alex também.

Alex era bom no que fazia e seus desenhos eram sempre movidos por muita emoção. Sua arte não precisava ser entendida, ela precisava ser apenas sentida. Ele transformava desenhos simples, como aquela borboleta, em uma figura repleta de significados. A primeira asa já estava pronta e cliente tentava não mais reclamar.

A pichação evoluiu para invasão de propriedade particular e alguns arrombamentos esporádicos, apesar dele nunca ter sido preso (muitos amigos de seu pai eram policiais e o ajudavam quando podiam), seus delitos chamaram a atenção de um mafioso, que via em jovens como Alex, bons soldados para o crime.

Alex precisou parar a tatuagem, a simples lembrança de seu tempo servindo a máfia o fez tremer. Várias lembranças começavam a inundar a cabeça do rapaz, sobre os momentos que machucara e ameaçara pessoas numa crise de instabilidade, que muitas vezes fizera o tatuador suspeitar ter algum distúrbio em sua mente, mas o medo do resultado ser positivo era assustador demais e para conseguir lidar com isso, o remédio sempre estava lá para ajudá-lo.

— Algum problema? – A garota perguntou, percebendo que o olhar perdido do seu tatuador

— Não. – Mentiu.

Alex passou as mãos nos fios púrpura do cabelo e pegou o frasco de Ritalina novamente, mas para o seu azar, o vidro estava vazio e aquele era o último de seu estoque. E ele sabia que não podia continuar sem o seu vício.

XXXXX

Um silêncio constrangedor era presente na sala, só era possível ouvir o barulho da água de chuva caindo lá fora e a respiração pesada da mulher, a editora-chefe do The Hidden Oracle News, a principal fonte de notícias impressa e digital da cidade. Uma elegante mulher de meia-idade, com um corpo cirurgicamente melhorado e definido, mas isso ela nega com todas as suas forças.

Springfield não era a cidade mais emocionante e cheia de acontecimentos da América, pelo contrário e Gerda não parava enquanto não conseguisse o que queria, mesmo que tivesse de colocar seu melhor jornalista no fogo cruzado entre dois países. Meses atrás, Lucky Ray tinha sido enviado para relatar os ataques à Síria e mal chegara de volta à cidade, Gerda já o tinha colocado numa nova matéria.

Investigar as recentes atividades ocorridas no aeroporto da cidade. Um lugar que ganhava o recorde por se tornar mais caro do país inteiro durante a construção e que supostamente, o governo e o exército abrigavam um projeto secreto lá dentro. Lucky estava parado no centro da sala, esperando sua chefe terminar de ler a matéria que ele tinha escrito sobre o Amélia Earhart.

— Vai ficar aí me olhando por quanto tempo? – A editora perguntou, como se o seu trabalho fosse frustrante. E Lucky também já suspeitava que Gerda tinha virado mais uma burocrata sem alma. – Já terminei de ler isso que você chama de matéria.

— Ela não está pronta ainda. – Lucky deu riso nervoso. – É só um esboço.

— Tanto faz se é só um esboço ou o jornal inteiro, a resposta é não. – A editora disse curta e grossa.

— Como assim não? – Lucky se exaltou com a resposta. - Eu fiz exatamente o que me pediu.

— Lucky, eu pedi que investigasse o porquê do governo investir tanto naquele aeroporto. E francamente, você me vem com uma absurda teoria conspiratória sobre aquilo lá ser a Área 51? É sério isso?

— Eu não disse que era a Área 51, mas tem algo de muito errado acontecendo naquele lugar. Minhas fontes me disseram que...

— Suas fontes são um médium da TV e um cara internado num manicômio. – Ela o interrompeu com desdém.

— Não é um manicômio, é uma clínica de saúde mental. – Corrigiu.

A mulher suspirou, tirando os óculos de leitura e os jogando sobre a mesa, olhando fixamente para Lucky, que começava a suar nervoso com aquela mulher lhe cortando as asas.

— Lucky, A idéia de que os Estados Unidos esconde uma operação secreta no aeroporto é um tanto improvável, ainda mais agora com o Trump louco da cabeça no poder...

— Só uma vez, confie no meu instinto. – Lucky disse com veemência. Mesmo que sua inconsequência lhe gerasse uma demissão, ele nunca se dava por vencido tão fácil. – Essa é uma história intrigante demais para ser ignorada sem ter seu devido ponto final e eu não vou deixar por isso mesmo, Gerda.

Mesmo que nunca admitisse, a editora admirava a persistência do jornalista. Não importava para onde tivesse que ir, Lucky estaria lá de qualquer jeito e fazia seu trabalho maravilhosamente bem e apesar de considerar a curiosidade de Lucky como sua maior virtude, aquele também era seu maior defeito.

— Sabe que odeio ser grossa, mas não posso te dar autorização para uma matéria sem ter um conteúdo completo. Pórem continue fazendo o que faz de melhor, vá ao aeroporto e veja o que pode descobrir sobre isso.

Um sorriso despontou no rosto do jornalista, que saiu da sala confiante e logo começou a pensar no que faria para descobrir o que acontecia no aeroporto. Mesmo que sua vida dependesse disso.

XXXXX

— 10, 9, 8...

Em qualquer sentido possível, Astrid odiava que duvidassem dela. A russa já tinha passado por várias adversidades para chegar ali, tudo se resumia ao cobiçado reconhecimento no final das contas e perder quando já estava tão perto da vitória, seria uma vergonha que ela jamais esqueceria.

— 7, 6, 5...

Tomada por um sentimento de que não ia se render. Astrid conseguiu escorregar o braço direito para fora e acertar o rosto de sua oponente, atingindo a orelha esquerda, que pela expressão feita, pareceu ter sido uma dor lancinante para a americana. Elena só conseguiu escutar um zumbido forte dentro de sua cabeça, antes de levar uma joelhada próximo aos seios.

— 4, 3... – O árbitro interrompeu a contagem quando Astrid retomou a liderança e dominou a morena, recebendo gritos eufóricos da platéia, que só pediam que ela acabasse logo com a oponente.

Elena se dividia entre bloquear os golpes e atacar a oponente, mas Astrid não diminuiu e socou várias vezes o a cabeça e o rosto da adversária. A câmera fez questão de dar um close no protetor bucal cheio de saliva, que voou para fora da boca da americana, seguido por uma espessa saliva.

Alguns segundos se passaram, Astrid deixou que Elena pudesse se levantar e com toda a calma do mundo, deu o último golpe. Elena recebeu o soco em rosto e caiu de joelhos em cima do logotipo da UFC, por mais que tentasse recobrar um pouco de consciência, a americana estava atordoada demais para levantar e ali mesmo ficou.

Completamente derrotada.

— E Elena foi à nocaute, senhoras e senhores! – O locutor anunciou contente. - Astrid Ivankowitch é a vencedora dessa noite e vai competir na semana que vem em Springfield, Estados Unidos!

O juiz suspendeu o braço de Astrid e ela finalmente conseguiu sorrir, a dor física quase não era mais sentida e a euforia tomava conta de seu corpo. A atleta da nova geração tinha vencido uma veterana. Tinha conseguido não só mostrar como era uma boa lutadora, mas que estava mais do que preparada para ser a melhor do mundo.

Seus olhos brilhavam de contentamento até que ela o viu. Fileiras acima, uma pessoa se destacou na multidão, acenando com timidez e um sorriso envergonhado pela exposição. Um musculoso rapaz moreno, com um olhar castanho e apaixonado. Ele pareceu gritar algo para ela, mas o barulho não deixou que ela ouvisse.

A multidão gritava célebre pelo nome de Astrid, mas para a lutadora, ver aquela pessoa em especial fora o bastante para estragar a sua vitória.

XXXXX

Já havia anoitecido quando o táxi parou no aeroporto Amélia Earhart.

Alex decidira dar um tempo da cidade. Ele tinha comprado muito remédio sem receita graças ao auto intitulado mafioso, sem pensar no quanto seria caro o pagamento. E agora, quase um dia inteiro sem Ritalina, Alex sofria com o efeito rebote. Sua capacidade de assimilar as coisas ainda não tinha diminuído, mas aos poucos, o garoto conseguia suportar a abstinência.

Só não sabia por quanto tempo.

Visitar a mãe no Brasil era uma boa desculpa para ficar longe dos problemas e conseguir pensar nos próximos passos que daria. Já era angustiante conviver com a namorada do José e às vezes, ele sentia que sua instabilidade poderia chegar em níveis que ele jamais conseguiria se perdoar.

Caminhou com ar distraído pelos corredores e alamedas ricamente decoradas do aeroporto, perto do freeshop e do terminal de a arte o fazia se distrair desembarque. Numa ala decorada por alguém com uma sinistra sensibilidade artística. Era fascinante para Alex o modo como aquelas imagens eram capazes de causar uma angústia e admiração ao mesmo tempo.

— Oi, você pode segurar a minha mochila por um minuto? – Disse uma voz atrás dele. - Só enquanto eu vou ao banheiro?

Alex não pode escutar direito, a música em seus fones de ouvido estava alta demais. Só se deu conta do pedido da moça, quando ela lhe entregou a mochila e se afastou até o banheiro. Ele não deu importância, apenas olhou para o celular e viu várias chamadas perdidas de seu pai. Alex ignorou as ligações de propósito, achando que era por que tinha roubado e usado o cartão do pai para comprar a passagem aérea.

Alex viu que seu pai deixou umas mensagens de voz e mesmo contra a sua vontade, ele parou para ouvir.

Alex, está acontecendo algum... Você tem que... Não é segur... Não vá para o aeropo...”

A voz do ex-militar parecia ofegante como se estivesse correndo de algo ou alguém. Tantos anos deprimido por não estar mais no exército, finalmente conseguiram deixá-lo louco. Mas o conteúdo da mensagem chamara sua atenção e Alex soube na hora, que algo de muito errado estava acontecendo.

XXXXX

O ar no cômodo subterrâneo era gélido e denso, embora a decoração bonitinha se esforçava em compensar a sensação estranha. Tapetes coloridos de diversas formas e tamanhos distribuídos em todos os cantos, parcialmente escondendo o chão de concreto batido. Cada uma das paredes tinha uma cor diferente: azul claro, verde claro, bege e um laranja fosco. Frases de superação coladas em todas as paredes, assinaturas e fotos felizes num mural.

Tudo era exatamente o mesmo desde a última vez que Laura havia visitado, uma década atrás, porém agora, fosse por ter despertado seu espírito artístico ou talvez tivesse sido apenas a sua experiência de vida, dessa vez ela conseguia notar os métodos para disfarçar a frieza natural do recinto. Era no subterrâneo de uma igreja, e embora Deus não tivesse conexão alguma com os responsáveis pelo grupo de apoio, o próprio era mencionado várias e várias vezes com muito amor pelos participantes, a base da fé e da superação de cada um. Laura entendia a fé, entendia a parte de precisar de um pilar maior para se apoiar, mas aquilo não era pra ela. E agora no meio de um monólogo em partes ensaiado, não sabia se serviria para alguma coisa ter chegado ali.

­— ... Por alguns meses, após a morte dos meus pais, esse lugar era tudo o que eu tinha. — Cabelos loiros longos sobre um vestido chique, sombras em degradê num tipo de flor. Olhos azuis nervosos, Laura tentava se focar em algum dos ouvintes. Nenhum dos rostos era familiar, e ela não tinha certeza se os ouvintes entenderiam, visto que uma década depois, os que precisavam de ajuda ali claramente não estavam relacionados a um acidente aéreo. Então ela não podia esperar um retorno como aqueles que havia recebido no passado. Sentia como se pudesse ter um branco. Sentia a onda de timidez que havia deixado pra trás, se aproximando como uma serpente. Queria terminar logo.

— Naquela época, eu passei a esquecer... e deixei para trás. Mas agora, prestes a pegar o primeiro avião depois de tudo o que aconteceu, uma década atrás... tudo... tudo... voltou. — Pausou, finalmente encontrando alguém que pudesse pairar o olhar e se abrir. Uma jovem de dreads, um sorriso fácil num rosto bonito, era nela mesmo que Laura iria projetar seu discurso. Olá estranha.

— Por muito tempo, eu acreditei que tinha superado... — Laura suspirou fundo. — Eu... eu acho que sou boa em enterrar meus sentimentos... enterrar meus medos. Sempre fui. Então, alguns dias atrás, o meu irmão que geralmente prefere morrer do que abrir o coração sobre os próprios sentimentos me abraçou e disse que eu poderia enterrar tudo, menos a verdade. — Segurou as lágrimas. — É por isso que eu tô aqui. Eu acho que estou com medo. E eu acho que nunca deixei pra trás.

Ninguém aplaudiu, porém alguns sorrisos de solidariedade surgiram entre os membros e Laura retribuiu. Ninguém sabia o que dizer, porém Laura não culparia. Segurou mais algumas lágrimas e sentou-se, parcialmente constrangida, porém, por outro lado se sentindo plena.

Após mais alguns minutos constrangedores, seguidos de abraços desajeitados, Laura se via encarando as fotos mais antigas do mural. Procurava a si mesma ali, quem sabe enfiada entre um dos grupos sorridentes, mas sabia que já fazia muito tempo. A única prova de que Laura havia estado ali antes era ela mesma. Então a jovem de dreads se aproximou e Laura sorriu, um pouco desconcertada.

— Me desculpa se eu te encarei demais. — Laura confessou. — Eu não me dou bem nessas coisas...

— Imagina. — A moça sorriu, agora olhando as fotos do mural também. Ajeitou as alças da bolsa nos ombros e seus olhos brilharam. — As vezes, tudo o que precisamos é de um par de olhos para nos guiar na multidão.

Laura riu.

— Timing espetacular. Porém é isso mesmo, obrigada.

— É só a verdade. Eu já passei por isso... Sinto muito pelo que aconteceu com seus pais. Sinto muito por ti.

— Agradeço. — A loira estendeu o braço. — Laura.

— Alanah.

As duas se cumprimentaram e voltaram para as fotos. Laura encarou e pensou se deveria estender a conversa.

— Eu preciso ir. — Alanah deu de ombros e passou a procurar um celular na bolsa. — Atrasada para o trabalho. Tchau Laura, foi um prazer.

̶ Tchau... obrigada.

Alanah se foi, e Laura a encarou, sem resposta. Antes de desaparecer pela porta, a garota se virou para Laura uma última vez.

— Eu sei que não é da minha conta, porém pega esse avião. Sei que não é a resposta elaborada que você procura... — Alanah suspirou. — Sei lá, as vezes só precisamos de um empurrão. Confia em mim.

Laura sorriu, se perguntando se aquele seria um momento mágico da vida em que você conhece alguém que parece te entender tão bem, então esse alguém desaparece para sempre.

Porra, não. Correu atrás. Ela com certeza pegaria o número da garota.

XXXXX

 

Embora o controle da aeronave ricocheteasse em suas mãos, o piloto Louis Gomez já sabia o que fazer. Estava na altura errada. Mil pés abaixo do correto, porém a culpa não era dele se a estação de controle não conseguia gerenciar e transmitir suas informações de maneira correta.

— Mayday Mayday! — Berrou contra o microfone. — Gomez, solicitando confirmação urgente para troca de altitude!

Esperou sua voz ser processada. A resposta começou a surgir do outro lado, porém foi interrompida por um choque abrupto na dianteira.

O nariz da aeronave despencou em direção ao mar numa virada abrupta de noventa graus. Louis gemeu de desespero, mas não tinha ninguém para ouvi-lo. Ninguém para salvá-lo dessa vez.

— PORRA! — Berrou contra o controle. — Eu acertei!

Mas era tarde demais. 30 pés. 15 pés.

— Louis? — Era Tina, encostada contra o batente da porta. — Mamãe pediu pra você parar de berrar pois ninguém aqui é surdo.

— Mamãe quer que eu pare de berrar? — Louis arremessou o controle do videogame sobre a cama. — Ela esqueceu que é ela mesma que resolve tudo no berro aqui em casa?

— Deixa ela ouvir você falando assim... Ela joga uma chinela lá de baixo e te acerta. — Tina deu de ombros. Entrou no quarto saltitando e sentou-se na cama do irmão. Encarou a caixa do simulator e observou a expressão desapontada do rapaz. Louis já estava com 28 anos, bonitão, os olhos verdes numa pele alva e cabelos escuros. Tina era uma versão mulher do rapaz, mais nova, formosa, bronzeada e alto astral.

— Deixa eu adivinhar. — Tina sorriu. — Altitude?

Louis franziu, confuso.

— Andou mexendo nas minhas coisas?

— Você sabe que eu adoro bedelhar. Eu vim procurar meu carregador, você enfia o seu no rabo e depois vive pegando o meu. O simulador tava aberto...

— Não faça mais isso. Tem coisa importante aqui... — Era um dos problemas de ainda morar com os pais. Não um tão grande, visto que Louis não passava muito de seu tempo em casa. Porém as vezes as folgas eram longas e Louis realmente sentia o peso.

— Já tentou gritar com menos sotaque? — Tina ofereceu. — Reconhece mais rápido. Seja conciso.

— Eu não tenho sotaque, Tina.

— Todo mundo diz isso. E não tô falando de você, e sim do sistema que usaram na programação do jogo. Eu sei que pilotos e controladores de voo são acostumados com sotaques diferentes e--

— Quer o meu emprego agora?

Tina encarou, um pouco sentida.

— Só queria ajudar, Lou, Jesus. Você só tá bravo que eu sou melhor...

— Cala a boca Tina.

Tina ignorou. Encarou os pôsteres e quadros no quarto do irmão, então observou as malas bagunçadas no chão. Louis observou a irmã escaneando suas coisas e suspirou. Sentiu os olhos da irmã pousando numa sacola da farmácia sobre uma das mesas e seu coração parou.

— O que você trouxe da farmácia? — Tina franziu, andando em direção a sacola. — Eu trouxe o remédio de pressão da mamãe mais cedo.

— Não é da sua conta! — Louis adiantou-se em direção a sacola, acidentalmente empurrando a irmã. Tina cambaleou e encarou Louis, pega de surpresa pela reação.

— O que há de errado contigo, porra? — Tina berrou. — Toda vez que você tá em casa é a mesma coisa!

— Me desculpa. — Louis respirou fundo. — É que eu ando...

— Tarja preta?

Louis encarou o olhar da irmã. Sobre os tapetes, duas caixas de remédios e um potinho de comprimidos recém caídos das sacolas,.

— Louis, o que tá acontecendo? — Tina estava calma agora. — Fala comigo! Você pode tomar isso?

Louis juntou os remédios na sacola, pegou um maço de cigarros e as chaves do carro. Catou a carteira na escrivaninha e saiu pela porta, com Tina atrás.

— Louis, onde você vai? Fala comigo. Você sabe que pode falar comigo.

— Eu não... Eu vou pro aeroporto.

— Você disse que não ia trabalhar hoje...

— Adivinha? Mudei de ideia! — Louis deu de ombros, descendo as escadas rapidamente.

— Fala comigo Lou! — Tina quase implorava agora. Louis havia notado que nesses momentos da irmã desesperada que ele percebia o quanto ela era parecida com sua própria mãe. — É sobre o papai?

— Não é isso Tina. — Louis soltou uma risada triste. — Se fosse isso...

— Lou! Louis!

Louis saiu pela frente da casa e bateu a porta. Lágrimas descendo pelo rosto, caminhou até o carro e entrou.

Tina saiu pela porta da frente, correndo em direção ao carro. Mesmo com o vidro fechado, ela aproximou-se e bateu com soquinhos na janela.

— Odeio ficar brigada contigo. Fala comigo.

Louis não encarou a irmã. Ligou o motor do carro e percebeu a irmã se afastando da lateral, desapontada e o deixando ir. Ainda de vidro fechado, Louis a encarou e fez o movimento de “eu te amo” com a boca, e então saiu em disparada pela rua.

Observou a irmã voltando pra casa pelo retrovisor. Suspirou aliviado. Observou a sacola de remédios no banco do carona. A irmã tinha se preocupado sobre o tarja preta, que na verdade Louis tinha pego para um amigo, e não com o potinho de comprimidos. Se perguntou se ela teria lido o nome do remédio.

Se ela tivesse lido, descobriria que era um anti-retroviral. E Tina sabendo do HIV era a última coisa que Louis precisava naquele momento.

XXXXX

Por trás dos óculos quadrados, Cisco encarava uma pintura na parede oposta. Várias pinceladas e várias interpretações. Não sabia se era uma flor, uma multidão ou se era um rifle.

Cisco estava deitado sobre um sofá, sob os olhos cuidadosos de sua terapeuta Jeanne. Por anos acreditou que a cena do paciente no sofá era apenas coisa de cinema, mas agora estava vivendo e não parecia tão absurda. Não era a primeira vez que tinha aquele pensamento. Cisco espreguiçou-se, casualmente deixou os pés no coturno balançarem para fora do sofá, e então voltou a posição inicial de deitado. Rosto quadrado, olhos claros e cabelos castanho escuros, mesmo com 32 anos se sentia quase como uma criança ali.

— Aquele quadro na parede. — Apontou. — É uma flor, uma multidão ou um rifle?

Jeanne virou-se para o quadro, depois voltou-se para Cisco.

— Me diz você Cisco. O que você vê?

Cisco encarou sério, e então ambos caíram numa risada sincera. O homem costumava dizer que Jeanne fazia aquilo demais. Tinha sentido falta da terapeuta.

— Eu honestamente não sei. — Jeanne ajeitou os próprios óculos, encarando o quadro com um sorriso. Cabelos escuros e curtos contra um rosto redondo e fofo. Jeanne lembrava sua mãe, e Cisco se perguntava se aquela semelhança inesperada era o que o deixava mais confortável com aquela terapeuta, ao invés dos outros profissionais que havia conhecido ao longo da vida. — Não sei o que está naquele quadro, Cisco. Achei bonito e comprei.

— É bonito. Eu gosto.

Cisco voltou a ficar em silêncio. Estava acostumado com bastante silêncio, a ser deixado sozinho. Jeanne percebia aquilo, e as vezes só deixava Cisco respirar.

— Então Cisco, voltando. Se arrepende de ter deixado ambos para trás?

Cisco suspirou.

— Eu precisava fazer isso. Eu estava ficando louco. Não com eles... e sim com o que eu estava me tornando lá dentro. Perdendo a essência sabe?

— Esses tipos de trabalhos causam essas sensações, Cisco. Combinado com o estresse...

— Sim, o estresse. Eu não estava me importando demais com algumas coisas, como antes, sabe? E ainda com o mundo virando de ponta-cabeça, um maluco com o dedo no gatilho, bateu uma espécie de desespero. Eu precisava voltar.

— Entendo Cisco. Porém você não respondeu minha pergunta.

Cisco encarou Jeanne, um sorriso desconfortável no rosto.

— Ok. — Jeanne suspirou com um sorrisinho. — Me fale sobre a última vez que você viu ambos.

Cisco deu de ombros.

— Com detalhes ou breve?

— Do seu jeito, Cisco.

Cisco assoviou.

— Vamos lá. Minhas malas já estavam no heliporto e eu tinha meia hora até irmos embora. Eu já tinha me despedido de toda a minha equipe, porém os dois não haviam aparecido aquele dia e eu estava ficando nervoso, até porque a conversa na noite anterior não tinha ido bem.

Jeanne assentiu.

— Então eu fiz o que tinha jurado que não faria. — Cisco estava desapontado consigo mesmo. — Eu voltei. Tava começando a escurecer, e eu peguei aquele corredor gigante que passa por baixo do deck principal até a cabine dos dois. Eles tinham uma espécie de suite pois já eram casados quando chegaram na plataforma, então os casais com bons cargos tem essa vantagem sabe?

Jeanne confirmou com um sorriso.

— A porta tava aberta. Eu entrei e era uma cena familiar pra mim. O Tony tava sentado na mesa de computador, perdido em algum relatório. “Vai mesmo Cisco?”, ele disse, sem olhar pra mim, como se eu não tivesse dito trezentas vezes que estava indo embora. Eu respondi algo tipo: “É tô indo”.

— E a Cameron?

— A Cameron tava encostada na varanda da cabine, observando o mar. Dá pra ver boa parte do por do sol, eles eram sortudos. Diversas vezes eu passei tardes inteiras na varanda, bebendo com eles e vendo o sol sumir. Só tenho memórias boas sabe? Tinha.

— A Cameron disse algo? — Jeanne anotou algo.

— Disse. Eu me aproximei da varanda, quase me arrependendo de deixar a plataforma só por aquela vista que eu poderia ter qualquer dia. Eu me aproximei e peguei na mão da Cameron, e ela recuou e disse: “Pode ir. Suas roupas estão em cima da cama.” Inclusive essa camiseta que eu tô usando, tava lá no meio. Aí meio que serviu do pontapé que eu precisava sabe? — Cisco respirou fundo, balançando a cabeça negativamente para si mesmo. — Não estou sendo dramático aqui, eles não estavam falando direito comigo e eu precisava de um motivo para estar ali, um que não fosse um eu desesperado por um toque. Ela apontar para as minhas coisas foi a coisa mais viável que poderia acontecer. Aí eu falei: “é, eu só vim pegar minhas coisas”.

— Eles não falaram mais nada?

— O Tony me desejou sorte. A Cameron continuou lá, fazendo cena na varanda e sequer virou de volta pra mim. Eu catei as minhas coisas e saí do quarto.

— E machucou? — Jeanne estava séria. — Doeu pra você?

— Pra caralho. — Cisco suspirou fundo olhando para cima, retirando o óculos e rapidamente impedindo qualquer lágrima de cair.

Jeanne assentiu.

— A questão é que eu não posso falar por eles, Cisco. Ao meu ver eles também saíram machucados da situação toda...

— Poderiam ter me dado um tchau mais animado. Eu já tava me sentindo péssimo.

— É exatamente isso, Cisco. As vezes você pode mudar o mundo, mas não pode mudar a cabeça de uma única pessoa. Mas se tem algo que eu sei, é que temos tempo. Pode não parecer, mas temos tempo de sobra. Eles vão entender.

Cisco concordou.

— Meu contrato acabou e eles me chutaram da empresa. — Cisco deu de ombros e sorriu. — Tenho tempo de sobra agora. E sobre o quadro na parede, acho que é uma flor.

XXXXX

Ainda com a conversa de Jeanne na cabeça, Cisco corria desajeitado pelo aeroporto. Um óculos escuro improvisado, mochila recém arrumada, tinha tomado uma decisão difícil. Talvez fosse hora de esquecer?

 

Acting on your best behaviour

Turn your back on mother nature

Everybody wants to rule the world

 

Cantarolava baixinho Everybody Wants to Rule The World enquanto procurava sua respectiva fila. Iria visitar seus pais. Eles o esperavam fazia um bom tempo. Cisco podia estar na merda, porém tinha história o suficiente para deixá-los entretidos por um mês.

Parou atrás de uma loira cheirosa de um vestido florido na fila, e pousou a própria mochila no chão.

 

All for freedom and for pleasure

Nothing ever lasts forever

Everybody wants to rule the world


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Notas finais do capítulo

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