Uma Galáxia Inteira escrita por Sarah


Capítulo 2
Você já sobreviveu a muito




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Você já sobreviveu a muito

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Adam nunca tinha estado em detenção antes.

 Nunca estivera em problemas nos seus seis anos de curso em Hogwarts, a não ser que contasse alguns pares de pontos perdidos aqui e ali, mas ele tinha certeza que ninguém contava isso, especialmente, não Ronan Lynch. Quando Adam abriu a porta do depósito, o garoto já estava lá, acomodado em uma cadeira, com as pernas cruzadas, parecendo muito confortável.

— Você está atrasado — Ronan disse à guisa de cumprimento, mas havia algum calor em sua voz, e ele curvou-se, arrastando uma cadeira que estava ao seu alcance e reposicionando-a para que Adam se sentasse ao seu lado.

— A sala comunal da Sonserina é longe daqui.

— Eu tenho sorte de estar na Grifinória, então. — Como sempre, o sorriso dele era afiado.

Adam deslizou para o assento que o outro tinha puxado. Ronan tinha colocado as duas cadeiras muito próximas, e seu ombro tocou o dele. Por um instante Adam pensou em afastar-se, mas o assento estava meio bambo, e ele decidiu que era melhor não arriscar. Ronan não se mostrou incomodado.

Daquele ângulo, Adam pode ver a profusão de caldeirões que eles teriam que limpar e arrear durante todas as tardes de sábado por quatro semanas, sem magia.

— Ouch — ele gemeu. Ronan pegou seu olhar e não precisou mais do que isso para entender.

— Não seja dramático. Você sabe, quando lhe dão um trabalho nos banheiros é muito pior, ou quando mandam você fazer um serviço lá fora. Eu quase congelei minhas bolas ajudando a tirar neve do caminho para as estufas na última vez que peguei uma detenção.

— Eu nunca peguei uma detenção.

— O quê? — Ronan perguntou, mordaz. Ele não pareceu acreditar que aquilo era verdade. — Você está brincando comigo?

Adam sentiu-se tentado a dizer que era muito difícil se meter em confusão quando não se tinha amigos, mas mordeu a língua. Havia passado a maioria dos seus finais de semana de forma solitária, com um monte de livros na biblioteca, até que Gansey aparecera e o levara para o estranho grupo formado por ele, Ronan e Noah.

Adam tinha certeza que se tornara amigo de Gansey, e Gansey era amigo de Ronan desde o tempo em que o garoto era um segundarista e não tinha uma postura que prenunciava assassinatos. Por sua vez, Noah parecia bastante feliz em existir ao redor dos meninos, mais ou menos palpável conforme o dia, mas quase sempre presente, compartilhando dicas sobre poções e indicando livros a Adam. No entanto, Adam não tinha certeza se era amigo de Ronan ou se o garoto só o aceitava porque Gansey queria isso, e era muito difícil negar qualquer coisa a Gansey, com seu sorriso brilhante e boas maneiras.

De qualquer forma, ele estava ali com Ronan, e nunca tinha feito nada que merecesse uma detenção antes de conhecê-lo, então isso devia significar alguma coisa. Adam fez um aceno negativo, e Ronan balançou a cabeça.

— Eu devia ter sabido.

Adam sentiu um raio de quentura passar por suas bochechas, ao mesmo tempo que irritação enchia suas entranhas. O tom de Ronan estava entre gracejo e condescendência, como se Adam tivesse acabado de confessar que era virgem. Estava prestes a retrucar quando a porta do depósito se abriu.

Persephone entrou na sala, os cabelos formando uma névoa em volta da sua cabeça. A professora de adivinhação acenou para eles.

— Ronan. Adam. — Ela falou o nome de Ronan com suavidade, como se não fosse mais do que o esperado vê-lo ali, mas se deteve um instante nas vogais do nome de Adam. Por um momento ela pareceu surpresa e preocupada em vê-lo ali, mas então seu olhar caiu em Ronan, e no espaço em que os ombros de ambos se tocavam, e ela sorriu. — Aqui, esponjas novas e sabão trouxa.

A bruxa deixou cair uma sacola muito roxa em cima da mesa de trabalho.

— Adam, querido, Ronan sabe como as coisas funcionam e o que deve ser feito, se tiver alguma dúvida pergunte a ele. Vou ter que conferir se vocês usaram magia nos caldeirões quando eu voltar, então, por favor, não façam isso. — Havia um suspiro em sua voz, como se ela realmente estivesse pedindo um favor, em vez de estar aplicando um castigo.

— Sem problemas, professora — Ronan respondeu.

Adam se levantou, esperando que Persephone tomasse seu lugar para vigiar o trabalho, mas ela não fez isso.

— Sejam bons meninos — ela recomendou, para então virar as costas e sair da sala.     

Adam voltou-se para Ronan assim que Persephone fechou a porta. Definitivamente, aquilo não era o que ele esperava de uma detenção.

— Sim, ela é sempre desse jeito nos castigos. Completamente louca. Não sei como você pode tomar as aulas de adivinhação. — Adam gostava de Persephone e gostava das aulas de adivinhação, porém era difícil negar que a professora parecia um pouco desvairada. — Ainda assim, ela realmente confere se realizamos o serviço com magia — Ronan acrescentou—, então eu espero que você tenha bons músculos.

— Minha mãe é nascida trouxa, eu posso lidar com um pouco de limpeza — disse, uma pontada de desafio soando através da sua voz.

Adam não tinha intenção de puxar aquele assunto, mas foi bom dizer aquilo em voz alta. Os dois pareciam estar no caminho de uma amizade, e se Ronan fosse recuar por causa do seu sangue mestiço seria melhor fazê-lo agora do que depois. No entanto, garoto sequer demonstrou reparar que Adam havia prendido a respiração. Ele encolheu os ombros e finalmente se levantou, alcançando a bolsa que Persephone deixara sobre o balcão.

— Graças a Mérlin por uma ajuda decente, então — ele falou, lançando uma bucha para Adam.

Eles se acomodaram no balcão de trabalho. Adam tinha a bucha, então ele começou esfregando os caldeirões e passando-os para Ronan, que os exaguáva na água corrente. O silêncio foi desconfortável por alguns minutos, até que Adam perguntou:

— Como você conheceu Gansey?

Aquele parecia um assunto seguro, Gansey sempre parecia emanar segurança. A coisa funcionou: Ronan não tinha certeza se o conhecera num trabalho em grupo de herbologia ou se Gansey se aproximara porque corriam boatos de que ele tinha amizade com Noah — Gansey achara formidável ter amizade com um fantasma, para então se decepcionar com o fato de que Noah não podia ter morrido há mais do que duas dezenas de anos e conhecia tantos contos de reis galeses quanto Ronan —, mas, ao fim, Ronan percorreu as duas versões da história, e a conversa os levou adiante.

Eles já estavam discutindo sobre quadribol — Adam gostava do jogo, enquanto Ronan apreciava mais a liberdade de correr numa vassoura — quando Adam passou a ensaboar a segunda pilha de caldeirões.

— Hey, não — Ronan falou assim que Adam lhe estendeu o primeiro caldeirão da nova pilha. Então, Ronan pegou sua mão, juntando os dedos nos seus. — Esses são caldeirões de cobre, não de estanho, são para poções potencialmente explosivas e têm esse vinco na borda — ele explicou, guiando Adam para que reparasse na ranhura. — Você não pode só molhar e ensaboar esses daqui, é preciso realmente esfregar.

O braço de Ronan estava junto do seu, do cotovelo até as pontas dos dedos. O contato era quente. Adam lançou um olhar de esguelha para o garoto. Ronan parecia um pouco corado, embora pudesse ser apenas o efeito de ter passado a última meia hora enxaguando caldeirões. O toque demorou um instante a mais do que o necessário. Ao se afastar, Ronan deslizou ligeiramente a mão molhada por sua pele. Adam não estava acostumado a ser tocado, e o contato o arrepiou.

— Eu posso fazer isso — disse, um segundo após Ronan se apartar, colocando uma nova dose de sabão na esponja e arregaçando melhor as mangas.

Adam só reparou que aquilo fora um erro quando Ronan gemeu ao seu lado.

— Porra, Parish! — ele deixou escapar numa voz engasgada.

Adam tentou escapar, mas então Ronan estava tomando sua mão na dele novamente, mais firme dessa vez. Ele puxou seu braço, expondo a mancha negra e profunda que se estendia acima do cotovelo, enrolando-se em sua pele em uma espiral que ia quase até o ombro.

Doeu quando Ronan fez isso, mas os olhos dele também estavam cheios de agonia, então Adam não fez qualquer reclamação. Ele não tinha certeza de quanto o outro sabia, mas parecia o bastante.

— Você devia ir para a enfermaria.

Adam balançou a cabeça.

— Eu não quero explicar.

— Você ao menos tentou um feitiço curativo?

Oh, ele tinha tentado, mas as marcar negras de onde seu pai tinha cravado os dedos e batido não haviam cedido.

— É mais fácil deixar curar naturalmente. Está melhorando.

A expressão o rosto de Ronan era incrédula.

— Faz mais de duas semanas que as férias de natal acabaram, Parrish! — ele disse, como se Adam não soubesse.

— Eu estou bem, Lynch. Porra, vamos terminar isso, eu não quero passar a noite inteira em detenção.

— Uma merda que você está bem! — Ronan explodiu de volta, e Adam o detestou um pouco.

Os machucados estavam ali desde sempre, mas ninguém nunca reparara neles. Era estranho que Ronan se importasse, e a quentura que se espalhou por seu peito tornou-se mais constrangimento do que raiva.

— Isso não é problema seu.

Ronan passou as mãos pelo rosto, exasperado, sem nem perceber que as palmas estavam molhadas.

— Por que você ainda volta para casa? — ele perguntou com fúria. Do seu ponto de vista, Adam achava que era o único com direito a se sentir irritado: eram seus problemas que Ronan estava trazendo à tona. Mas Ronan parecia sempre pronto a explodir em arroubos de ódio. — Você poderia muito bem ter passado as férias de natal em Hogwarts! Ou na casa de Gansey, eu sei que ele convidou você também!

O barulho que escapou da garganta de Adam era quase um rosnado.

— Meu pai ganharia se eu fizesse isso! Ele acharia que eu tenho medo dele, que não posso lidar com isso!

As palavras fluiram sem controle. Ele nunca falara aquilo para ninguém, e Ronan não iria entender. As pessoas comentavam: Adam tinha visto o que a morte do pai fizera com Ronan, como o garoto chegara em Hogwarts depois das férias de verão do quinto ano repleto de fúria, com os cabelos raspados e uma tatuagem cobrindo as costas. Adam não conseguia imaginar como seria sentir uma dor assim por alguém da sua família. Supunha que se fosse o seu pai, ele apenas se sentiria aliviado.

— Você não precisa lidar com isso. — A voz de Ronan era suficientemente feroz apesar do tom baixo, mas ele voltou a abrir a torneira da pia e a enxaguar o caldeirão, sem se preocupar em verificar se Adam tinha esfregado o cobre direito ou não.

Adam sentiu que só tinha a perder continuando a discussão, então engoliu uma dúzia de réplicas e também voltou ao trabalho. Levaram um tempo nisso, até que ele pegou Ronan lhe lançando um olhar de esguelha.

— O que foi? — perguntou, preparando-se para uma nova onda de discussão.

— Quer trocar comigo? Enxaguar é mais fácil do que esfregar.

Demorou todo um instante para Adam perceber que Ronan estava preocupado que seu braço pudesse estar doendo com o esforço. Estava, mas ele não teria sobrevivido se não fosse muito bom em ignorar esse tipo de coisa. Adam considerou sentir-se humilhado por aquela preocupação, mas, por uma vez na vida, o tom de Ronan era mais afetuoso do que beligerante.

— Tudo bem — falou, dando a volta em Ronan para trocar de lugar com o garoto. — Eu vou sair de casa quando me formar, Lynch. — Ele não devia satisfação a Adam, mas dizer aquilo em voz alta deixou a coisa mais formal, e Adam gostou da sensação. — Faltam só dois anos, e então eu vou sair de casa tendo me formado com honras e com um bom emprego no Ministério, e meu pai vai ver que fui eu quem ganhei no final.

Pela forma como Ronan crispou os lábios, era óbvio que ele ainda achava aquilo uma idiotice, mas o garoto não contestou. Levou mais dois calderões até que Ronan voltasse a quebrar o silêncio.

— Desculpa por fazer você pegar uma detenção e manchar seu histórico perfeito. — A frase poderia ser tomada como uma caçoada, porém Adam compreendeu.

Era algo completamente novo, mas Ronan se importava. Enquanto conversavam mesmo esfregar caldeirões não tinha sido tão ruim, e havia sido emocionante invadir a seção restrita da biblioteca — apenas porque Gansey queria uma confirmação de que Morgana tinha conhecido Gledower antes da Segunda Rebelião Duende, e não depois —, ainda que tivessem sido flagrados. Em comparação com os estudos solitários de antes, Adam estava bem ali.

— Eu ainda posso me formar com honras tendo pegado algumas detenções. Por favor, não me subestime.

Diante daquilo, Ronan deu um sorriso; ainda afiado, mas com aprovação, e o gesto fez Adam sentir-se agradavelmente quente.


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