A Valsa de Vênus escrita por Sarah


Capítulo 4
Capítulo 04




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Treze anos.

Eliza acordou sentindo uma pontada no ventre e as vestes úmidas. Ao aproximar o candelabro da cama, notou o vermelho. Seu sangue gelou nas veias, mas aquele que vertia entre suas pernas continuava muito quente.

Sabia que já estava na idade de que aquilo acontecesse, mas agora que havia acontecido percebeu que não sabia o que fazer. A dor contorceu suas entranhas, e Rozênia desejou ardentemente que sua mãe estivesse ali.

Pensou em procurar Marcella, mas a anciã dormia em outra ala da Curva do Vento e não havia como alcançá-la sem colocar-se em uma situação ainda pior. Por sua vez, a ama de Eliza dormia no quarto ao lado, mas Rozênia tinha sérias suspeitas de que a mulher a odiava e não a queria ao seu lado naquele instante. Podia dar um jeito de apenas se livrar da camisola manchada, mas, quando uma onda de dor voltou a atingi-la, levantou-se e foi em direção aos aposentos de Eliza.  Quando se ergueu o sangue verteu com mais intensidade.

A menina estava dormindo, os cabelos loiros esparramados pelo travesseiro, mas abriu os olhos antes mesmo que Rozênia pudesse chamá-la.

—Aconteceu alguma coisa? — ela perguntou ao despertar, incorporando-se e esfregando os olhos.

Rozênia sacudiu a cabeça em um gesto afirmativo.

— Meu sangue veio — anunciou.

Aquilo deveria significar que se tornara uma mulher, mas quando as palavras escaparam de sua boca Rozênia se sentiu mais criança do que nunca.

Talvez ela ainda estivesse sonolenta demais para isso, mas Eliza não pareceu surpresa. Em vez disso, ela apenas acenou em compreensão, assumindo uma expressão resoluta.

— Você está com dor? — Rozênia assentiu. — Tudo bem. Volte a deitar, eu já vou ver o que fazer.

Não havia uma alternativa muito melhor do que obedecer, então Rozênia fez o que a outra dizia. Encolheu-se na cama e manteve-se muito quieta. Algum tempo depois, Eliza apareceu carregando uma tina com água quente.

— Você deve colocar isso entre a roupa de baixo — ela orientou, estendendo uma faixa de tecido.

Rozênia mal teve tempo de se sentir constrangida quando a outra virou as costas, saindo do quarto e dando-lhe privacidade. Quando ela retornou, Rozênia já tinha vestido roupas limpas e voltara a se encolher na cama.

As Filhas de Vênus geralmente tomavam chás que evitavam o sangue. Por sua vez, na Curva do Vento, Rozênia costumava passar seu tempo com Marcella quando não estava com Eliza, e fazia anos que o sangue da lua deixara de ser um assunto que interessava a anciã.

 — Sempre dói assim? — perguntou. Eliza sacudiu a cabeça.

— Às vezes não. Depende da mulher — Ela estendeu um cantil feito de bexiga de cabra impermeabilizada para que Rozênia segurasse. Tomando-o nas mãos, percebeu que Eliza o tinha enchido com água quente. Em seguida, Eliza ofereceu-lhe um maço escuro que Rozênia intuiu serem ervas cozidas no melaço. — Coloque isso contra a barriga, o calor vai ajudar. Mastigue as ervas.

Rozênia fez o que ela mandou e, embora a dor não tivesse ido de imediato, sentiu-se mais confortável.

— Obrigada — disse finalmente. — E desculpa por te acordar — acrescentou, sabendo que era sua obrigação cuidar de Eliza, e não ao contrário.

A menina estalou a língua.

— Não seja tola — ela falou, sentando-se na cama e passando as mãos por suas costas.

Rozênia relaxou perante a carícia, mas logo uma pontada de dor a fez gemer. Eliza ajeitou melhor a bolsa de água quente em seu colo.

— É só o primeiro dia, depois vai melhorar.

— Oh, como você sabe? — Era para ser apenas uma pergunta mal-humorada, inspirada na dor, mas Eliza engoliu em seco, baixando o olhar.

— Marcella tem me ensinado — ela disse em um tom não muito mais alto do que um sussurro.

— Como assim? — Rozênia perguntou, curvada sobre si mesma.

— Eu pedi que ela me ensinasse sobre cura e anatômia, e ela tem feito isso — Eliza explicou com um pouco mais de firmeza. — Eu ia contar para você quando tivesse feito um pouco mais de progresso.

Curar os ferimentos dos homens e ajudar senhoras no parto não eram tarefas para uma dama. Eliza franziu o cenho.

— Você não devia estar fazendo isso. Vai arranjar problemas para si mesma e para Marcella! — disse, sentindo o gosto de mal-presságio na língua.

Eliza continuou a carícia em suas costas, mas naquele momento Rozênia sentiu o toque pinicar.

— O calor e as ervas ajudam contra a dor, não é? Não há nada de ruim em saber... Marcella disse que eu poderia ser boa o bastante para me juntar a uma Casa de Cura.

— Você não pode querer isso!

— Por que não? — Eliza questionou em um tom ameno. — De qualquer forma, ainda não sou boa o bastante.

Oh, ingressar em uma Casa de Cura significava dar sua feminilidade em troca dos encantos que eram ensinados lá, prometendo através de magia que jamais casaria, teria filhos ou se deitaria com um homem. Por algum motivo a ideia de que Eliza prometesse que nunca conhecer o amor fez Rozênia contorcer-se na cama.

 — Você está se enganando — Rozênia falou com irritação, deixando-se levar pelo amargor. — Esse tipo de coisa não é para ladys como você — disse como se palavra fosse um xingamento.

Finalmente, Eliza apartou a mão do seu corpo.

— Você está brava comigo.

— Estou com dor. — De fato, naquele instante até os seus ossos pareciam arder. — Obrigada pela ajuda — forçou-se a dizer —, mas acho que prefiro terminar de passar por isso sozinha.

Eliza a encarou por um longo segundo, avaliando-a, antes de decidir-se por levantar e atender aquele pedido.

— Se precisar de alguma coisa pode me chamar — ela disse, parando na soleira da porta.

Rozênia não se dignou a responder, apenas cerrou os dentes e fitou o vazio até que a outra tivesse se retirado. Quando ela saiu, permitu-se chorar, desejando mais do que nunca que Leonora não a tivesse deixado para trás.

.

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Rozênia sobressaltou-se quando ouviu a porta se abrir. Podia vero pátio lá embaixo de onde estava, no último nível da Torre do Viviero, mas a entrada do lugar ficava fora do seu campo de visão. Esperava dar de cara com o Mestre das Aves, mas em vez disso quem surgiu entre as gaiolas foi Marcella.

A anciã tinha puxado o vestido acima dos joelhos para facilitar os movimentos e respirava em arquejos. Rozênia sentiu-se congelar no lugar, a respiração em suspenso, tão quieta como um animal acuado à espera do bote.

Mas, em vez em explodir num sermão, Marcella suspirou.

— Você devia escolher esconderijos mais fáceis para uma velha encontrar, menina. — Rozênia baixou o olhar, e o gavião que Eliza lhe dera piou na gaiola ao seu lado. Sem esperar por uma permissão, Marcella se aproximou, afastando a bandeja de carne com a qual Rozênia estivera alimentando a ave e também sentando no banco.  — Então você brigou com Elisa.

Rozênia fungou. Não era justo que a outra tivesse dado com a língua nos dentes.

— Não foi uma briga.

— Mas vocês não estão conversando.

— Acho que eu preciso de um tempo — falou com indiferença, jogando outro pedaço de carne para o gavião, que o apanhou no ar.

Em vez de constestar, Marcella apenas assentiu.

— Você teve seu sangue.

— Também não é como se isso tivesse importância.

Como Eliza tinha prometido, a dor não durara além do primeiro dia e agora o sangramento já havia quase cessado. Além do desconforto que sentira nada parecia muito diferente, mas ainda assim passara o tempo todo com um nó na garganta.

— É importante para uma donzela. Tenho certeza de que sua mãe gostaria de estar aqui para vê-la como mulher.

— Mas ela não está, não é?! — falou, sentindo como se algo pesado comprimisse seu coração. — Ela me deixou aqui e não vai voltar! — disse num único fôlego, para em seguida se voltar para Marcella pela primeira vez até ali. — Por que você está ensinando artes de cura para Eliza?

A anciã piscou, confusa com a pergunta. Obviamente não era esse tipo de questionamento que ela esperava no momento.

— Porque ela quer aprender. Da mesma forma como não é certo que uma moça de aldeia seja privada de conhecer as letras, não creio que seja certo Eliza limitar seu conhecimento a bordados apenas porque acreditam que esse tipo de coisa é mais adequada a uma dama.

Rozênia mordeu os lábios. Tinha consciência de que estava sendo egoista, mas isso não diminuia a angustia que sentia.

— Ela falou em se juntar a uma Casa de Cura.

— Seria um caminho digno. Mas ela não tem idade sequer para considerar isso ainda e pode mudar de ideia a qualquer instante. Você devia se incomodar com isso.

Rozênia mordeu os lábios. Lá em baixo, no pátio, os aprendizes de soldado tomavam lições: dividos em duplas tentavam derrubar um ao outro usando apenas as mãos. A menina os encarou por alguns instantes. Quando voltou a falar, sua língua parecia muito seca.

— Se minha mãe não tivesse me trazido para cá, eu poderia estar fazendo meu juramento. Poderia ser uma Filha de Vênus nesse isntante, já tive meu sangue, seria permitido. Mas eu nunca vou pegar em uma espada, não é?

Marcella franziu o cenho em uma expressão de desalento, parecendo ainda mais velha do que era.

— Oh, minha menina — ela disse, ao mesmo tempo em que dava palmadinhas em seu joelho de forma carinhosa. — Você sabe que não existe muito mais das Filhas de Vênus ao que se unir, não é? Sua mãe está tentando levar o que resta da irmandade a um final honroso, mas não acho que ela possa fazer muito mais do que isso. Não há mais lugar para sangue novo junto às Filhas de Vênus. 

— Não é justo! Eu deveria estar aprendendo a lutar! Manusear uma espada, usar um escudo e a desarmar alguém! Coisas úteis! Mas em vez disso estou presa entre os laços da roupa de Eliza e aulas de costura, enquanto ela aprende medicina. Eu era quem deveria ter uma vida diferente!

Marcella pareceu considerar aquilo, encarando-a com os olhos apertados. Por sua vez, Rozênia manteve o olhar sobre o dela, erguendo ligeiramente o queixo. Quando a anciã suspirou, a menina teve a senação de que havia vencido, embora não soubesse extamente o quê.

— Isso significa que você também quer aprender as artes de cura?

Rozênia tinha se perguntado a mesma coisa durante os últimos três dias e chegara à conclusão que não. Balançou a cabeça em um aceno negativo.

— Não sou como Eliza. Não tenho a compaixão dela — disse, esfregando as mãos uma na outra e sentindo os dedos pegajosos com a carne que estivera dando ao gavião. Elisa sequer podia tolerar a caça, enquanto Rozênia não achava que perderia o sono se lhe coubesse matar alguém em uma luta.

Marcella fez um gesto de concordância, e era óbvio que ela também achava que Rozênia não fora feita para ser uma curandeira.

— Eu não posso te dar uma espada. — Oh, Rozênia sabia disso. Lorde Bernard não permitiria que ela treinasse com os rapazes, não quando era contra as leis do Reino e quando ele prometera à sua mãe que a protegeria. Não tinha certeza sobre o que estivera esperando, mas ainda assim sentiu seus olhos cheios d’água. — Há outras maneiras, porém — Marcella acrescentou.

Diante dessa pequena esperança, Rozênia forçou-se a trincar os dentes e engolir o choro.

— Quais?

— Nem todas as lutas são com espadas. Eu posso ensinar a você todo o contrário do que ensino a Eliza. O tipo certo de erva pode revirar os intestinos, tornar sangue tão ralo como água ou fazer o coração de um homem se voltar contra ele.

Rozênia arregalou os olhos.

— Venenos?

— E alguns encantamentos também, embora sempre tenha sido melhor com ervas e essências.

— Por que não me ofereceu isso antes? — questionou, desconfiada de repente.

Marcella se recostou no banco, parecendo cansada.

— Você não vai sentir o sangue em suas mãos, minha filha, mas essas coisas que eu posso ensinar ainda são feitas para matar alguém. Mas, como você disse, você já teve seu sangue e já poderia ter feito o juramento para se tornar uma Filha de Vênus. Caso as coisas fossem diferentes tenho certeza de que sua mãe não se oporia à ideia de você se juntar à irmandade. Ela e eu pudemos escolher, não é justo que você também não possa.

— Quero aprender! — se apressou em dizer, antes que Marcella mudasse de ideia.

— Eliza não vai gostar, sabe disso também, não é?

— Ela não precisa saber, ao menos por enquanto.  

Houve um pigarro que Rozênia interpretou como anuência. Em seguida, sentiu os dedos de Marcella sobre sua cabeça.

— Você é uma boa menina, vai fazer bem — ela disse, e Rozênia sentiu uma onda de carinho agitar sua barriga, a angústia em que estivera até momentos atrás dando lugar à animação. — Agora vamos, me ajude a descer essas escadas, não tenho certeza se aguento ver todos esses degraus mais uma vez. E faça às pazes com Eliza quando chegarmos lá embaixo. Não vou começar nenhuma lição enquanto vocês não voltarem a se falar.

Parecia uma exigência justa. De qualquer forma, Rozênia não achava que conseguiria continuar evitando a outra menina por muito mais tempo. Retornou o gavião para o lugar dele, recolheu os pedeços de carne e se voltou para Marcella para ajudá-la, sorrindo pela primeira vez desde que se tornara uma mulher.


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