Um Natal Presente escrita por Astus Iago


Capítulo 1
Um Natal Presente




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/732835/chapter/1

O trovejar da tempestade sobrepôs-se à pesada chuva invernal, silenciando o metafórico choro de todos os anjos. A morta paisagem pela janela retratada, assaz melancólica, dançava aos ventos. Os brilhos estelares, fixos na esfera celeste, iluminavam o diminuto edifício a que chamo casa. Estava a ser uma noite deveras turbulenta.

Poucos dias restavam até à chegada do santo Natal. Ao vidro baço da janela, aguardava a chegada dos meus queridos familiares. Para as festividades, entenda-se. Havia-os convidado de propósito para a celebração. Os meus tios, os meus pais e os sobrinhos. Não eram tantos quanto isso, e ainda bem. Abomino multidões. Na verdade, já não os vejo há alguns anos, essas gentes de sangue do meu sangue, isto porque o meu trabalho me tem requerido o isolamento e o nomadismo. Como tal, pretendo dar uma boa impressão nesta calorosa reunião.

Preparei a mesa de jantar. Decorei a sala de estar e o meu gabinete de estudo com as melhores decorações que pude adquirir. Não sou religioso, perceba-se, mas sou certamente homem de costumes e tradições.

A casa estava era pouco iluminada. Porém, não seria difícil de encontrar. Localizava-se numa região isolada, particularmente convidativa, que incentivava ao eremitismo. O bosque adjacente era belo e verdejante nas épocas primaveris. Adoro o local. Escolhi este sítio porque me inspira, permitindo de igual forma uma solidão propícia à criação e ao estudo. Sou pintor, devo dizer, amante das paisagens intocadas pelo Homem, autoproclamado esposo do mundo natural. Para mim, tal habitação fora um verdadeiro achado.

Ouvi o berrante toque da campainha. Não refleti muito no momento, admito. De certeza não estava em completo domínio dos meus raciocínios, talvez devido ao exterior sorumbático que me provocara um astral estado de torpor. Não vira ninguém a chegar pela janela. Achei estranho. E só mais tarde, depois de tudo se ter passado, viria a lembrar-me do simples facto de na minha casa não existir uma campainha para ser tocada.

Deixei o gabinete e percorri o curto corredor. Um comprido tapete vermelho-escuro revestia o soalho. A porta ali estava. A placa de madeira preparada, em posição vertical, cuja maçaneta redonda controlava o movimento. A minha mão correu a ela. "Olá pai. Olá mãe." - eram as frases que ensaiava comigo próprio. Mas, quando abri, não eram eles.

Ali estava um espetro com um ciano cintilar. Muito mal definido, o humano corpo de um enrugado organismo tomava forma no ambiente. A fantasmagórica aparição tossindo, adoentada. A sua concreta aparência era difícil de definir através dos resquícios de névoa e da misteriosa aura de luz azul que a envolvia. Não era aterrorizante. Era passiva. Não me queria mal. Não me tocou, nem sequer me falou. Só estava ali, como se fizesse parte do comum meio circundante. Ao contrário das árvores e das flores, não era algo vivo. Era uma forma fria e insensível, um ser de uma impactante decrepitude. Um curioso perfume exalava daquela paranormal presença. Tanto aquela forma de silhueta humanóide e longos cabelos como o seu odor peculiar me eram familiares. Evocava memórias aquele cheiro, recordações de tempos alegres e distantes. Que doce cheiro, nostálgico.

Quando aquela existência se desvaneceu nos ares levemente enevoados, dei por mim acordando no cimo da minha cama. Não me lembro de como lá fui parar, mas no meu punho fechado residia um peluche, um daqueles ursinhos de peluche com que as crianças ainda dormem. Era o meu peluche, o ursinho com que eu dormia nos meus alegres tempos de infância.

Julguei ter-se tudo tratado de um bizarro sonho, apesar de não recordar ter adormecido em primeiro lugar. Nem temi depois quando ouvi alguém bater à porta. Desta vez sim, eram os meus desejados convidados. E qual não foi o meu espanto quando o meu pai me deu a trágica notícia: na véspera, a minha mãe havia falecido.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!