Rodoviária, longe de Casa escrita por simplesmente


Capítulo 1
Só mais um passageiro


Notas iniciais do capítulo

...de passagem.



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Estação Rodoviária, 6:41 da manhã

 

Lá estava ele, mais uma vez, esperando um ônibus de cores amarela, branca e azul que nunca se atrasava ao fazer a curva de entrada da velha estação. Discutia consigo mesmo numa ferrenha e contínua briga individual sua coragem de ter saído da asa do velho pai — quando não piorava o estado emocional culpando-se de ter traído a asa do velho pai, cuspindo no prato que o alimentara. O velho, tão tenramente cansado de labutar, cuja corcunda adquirida com o tempo não permitia um esforço um pouco maior, era mais um afável e bom idoso vivendo só, daqueles homens que, ao final da jornada, mereciam o título de nobre guerreiro.

 

O garoto pensava um problema, que não se relacionava unicamente com o fato inquietante de o velho não conseguir lidar com os desafios do cotidiano como quando mais novo. Tinha a ver com uma indagação angustiante: que homem, meu Deus, em plena terceira idade, merece desligar a luz do quarto sabendo que acordará mais um dia só, sem o calor de uma mulher, ou sem o carinho de um filho, sem mesmo poder contar aos netos suas histórias? E se as mulheres são para nós um traiçoeiro abismo, para que a companhia de uma delas? E, afinal, para que contar histórias? A quem contá-las? Acho que você sabe que não mereço tamanha solidão, meu filho. Havia sido a última discussão acalorada do garoto com o velho tão depreciado pela atitude alheia. Quando não pela falta dela.

 

Novos tempos, dinheiro que já não vinha fácil se fazia naquele instante inútil e mortalmente necessário — para morrer é preciso ter dinheiro também. E ali, sentado, um jovem esmagado pelo próprio desejo de ser alguém.

 

Alguém...

 

Um descrente crendo em qualquer coisa. Parece uma piada de mau gosto. Crente num tal Alguém que se tornaria por força do destino, não por força das suas vontades. Sem dúvida, a crença dos descrentes dura pouco tempo. Pouco até demais. Desejo oscilante de um garoto parvo que pela manhã estava disposto a seguir em frente. À tarde decidia-se por jogar tudo para o alto e retornar para o conforto proporcionado pelo afeto paterno, o protetor de uma vida. À noite, berrava e soluçava tentando encontrar qualquer resposta em meio aos pesadelos. Medo do abandono.

 

Apenas férias... Refletiu o jovem amargurado no banco de uma rodoviária ruidosa. Iria passar um mês de férias em sua casa, mas já não era a mesma sensação das primeiras semanas, quando havia acabado de se mudar da sua pequena e idílica cidade natal para a conturbada metrópole. Havia agora o medo de, a cada volta — ou já seria ida? —, magoar seu velho com uma palavra proferida ou um gesto incalculado. Havia a saudade, voltando ao início, do novo lugar ao qual se acostumara e onde solidão fez casa em seu peito. Havia a descoberta de que sentido é algo inexistente e de que sonhos são meras fantasias — agarre-os, senão a brisa leve do menor desespero os levará, tal qual fugazes desejos.

 

Havia nas coisas mais presença, mais vivacidade, mais sensibilidade. Como a tempestade que se anunciava ao norte e o vento frio que balouçava o ar embolorado da estação. As férias trariam mágoas, bem como as saudades do tempo de menino assim que o jovem olhasse mais uma vez o seu quarto ainda arrumado. Também sofreria o garoto outras saudades, que doeriam ainda mais por ter tido a fraqueza de senti-las. Saudades do novo lar que estava deixando, por curto tempo, para trás.

 

Às seis horas e quarenta e cinco minutos um ônibus prorrompeu ao final da rua. Era amarelo, branco e azul. O garoto observava a multidão apressada, carregando bagagens de viagem em seus vários formatos, cores, tamanhos. Alguns indivíduos se abraçando e sorrindo, enquanto outros choravam e se beijavam como se fosse a última vez que miravam os olhos uns dos outros — talvez fosse —, miseráveis mendigando um trocado ou um pão com as forças que ainda lhes restava para permanecerem de pé ou com a astúcia de quem roubaria sem deixar rastros. O rapaz estava atordoado o suficiente para que algumas cenas não mais o chocassem. Já se acostumara, sentia-se anestesiado.

 

Ele morava na cidade grande. Mendigos e amores deixados para trás eram algo banal, corriqueiro. Pra que ainda se espantar?

 

Ele guardou as malas, apresentou o bilhete, subiu as escadas, acomodou-se na poltrona.

 

Ninguém ao seu lado.

 

Nada mal. Concluiu ao notar que a empresa havia comprado um novo ônibus, substituindo a velharia que antes realizava o percurso que ele seguia. Visualizava e checava o transporte. Não a falta de companhia. 

 

Onze horas. Ele passaria esta quantidade de horas confinado com estranhos para, finalmente, romper a espera de quatro meses e meio sem ver o rosto do seu pai, a quem agora o jovem homem sentia no âmago do seu espírito que deveria proteger. Deveria.

 

A vida não funciona como um rádio à pilha: alimente-o e sintonize as estações, até você encontrar a ideal, aquela que combina perfeitamente com o seu momento. O rapaz, por mais que amasse o pai, não podia simplesmente voltar. Era um homem independente, mas, antes disso, agora era um filho independente.

 

Pergunta-se como pode a independência trazer tristeza, ao invés da tão sonhada felicidade? Talvez a resposta seja simples. É que uma vez cativado, sempre cativo.

 

 

 

"O amor é a primeira condição da felicidade do homem."

Camilo Castelo Branco


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Notas finais do capítulo

Ao som de Let Down [Radiohead] enquanto brotava a inspiração para escrever.