Black Annis: A Coisa que Nos Uniu escrita por Van Vet


Capítulo 8
O Manco


Notas iniciais do capítulo

Oi, leitores do coração!

Esse capítulo foi muito divertido de se escrever, portanto espero que esteja bom de se ler também. Ele ficou grandão, mas me perdoem porque não foi possível diminuir.

Aguardo seus comentários (que não teve nenhum no capítulo passado, que triste). Ótima leitura para todos!



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Todas as pessoas que o conheciam no fórum e nos tribunais, advogados, promotores, juízes, policiais, meirinhos e até a mídia local, o chamavam de Manco. Não era exatamente um modo pejorativo de se referir a ele, como se, enquanto ele estivesse se distanciando pelo longo e polido corredor do tribunal de Illinois as pessoas ficassem falando as suas costas “Lá vai o Manco manquitolando”. Não, não era assim. Na verdade, as pessoas falavam aquilo com uma entonação de respeito, afinal fora essa reputação que o Manco criou para si. Falavam também na cara dele, e o apelido facilmente pegou porque, embora o promotor de justiça da cidade de Illinois tivesse um nome inglês comum, de fácil pronúncia e de sonoridade agradável, era o Manco que abria portas e fazia os advogados de defesa, muitas vezes os réus, tremerem diante de sua fama.

Naquela manhã ensolarada de semana, o tribunal estava razoavelmente cheio. Era como se os presentes na audiência tivessem comprado um ticket para uma grande apresentação de comédia, mas se tratava do julgamento de Jason Hopkins. Jason, o réu, era filho de um grande empresário da cidade e passou a vida toda achando que os habitantes de Illinois, e de qualquer lugar que ele fosse visitar no mundo, lhe deviam alguma coisa. Ele nascera com a famosa pompa dos despreocupados, mas também numa carregada criação racista e reacionária. O Sr. Hopkins ensinou logo cedo a Jason que as senhorinhas americanas deveriam ter ajuda dos mais novos para atravessar a rua, mas que um jovem afro-americano deveria apanhar bastante antes que fosse perguntando o que ele fazia caminhando pelo seu quarteirão as dez horas da noite. Aprendeu que havia mulheres honesta, de boa família, mulheres para se casar, e que existia as putas, as garotas que serviriam apenas para se divertir, as que aceitavam oral, anal, e em todas as posições, e por isso seriam para sempre rejeitadas e execradas. Essas mulheres eram tão insignificantes, que apanhar um pouco para “tomar juízo” não passaria de um favor, na concepção de Jason Hopinks. O problema para o rapaz de tão boa família, foi que no dia vinte e três de Novembro de 2016, ele batera demais em Sue Harven. Batera tanto que Sue nunca mais poderia ter a chance de ser a mãe do feto que carregava em seu ventre.

O Manco entrou no tribunal repuxando um pouco a perna direita e sentou-se na mesa destinada a acusação, à esquerda do juiz. O local estava cheio, faltando apenas o próprio réu, mantido em custódia pela polícia do estado, e que chegaria dali alguns minutos dentro da viatura. Muitas cabeças na plateia se viravam para o promotor, cochichando. Normalmente, ele era só um nome na seção criminal dos jornais, portanto quando o nome ganhava um rosto, e esse rosto era jovial e bonito, o impacto era inevitável. E ele nem bengala usava. Sua manqueira era sutil e algumas das mulheres (alguns dos homens também) achavam a claudicação dele bem atraente.

A seguir, descobrindo a idade e o aspecto do promotor, haviam muitas teorias para a condição de coxo do rapaz. Sua mãe fora uma daquelas ativistas as avessas, igual Jenny McCarty*, e não vacinou o garoto contra poliomielite na infância; Um acidente automobilístico, que vitimou todos os seus irmãos mais novos o deixou com aquela sequela; Ele fora um jogador de futebol americano talentoso e muito famoso na sua universidade, mas que sofreu uma grave falta e nunca pôde competir numa liga oficial; Entretanto, se alguém levasse a questão até ele, o Manco diria tranquilamente:

“Minha mãe era enfermeira, sou filho único e nunca gostei de esportes. Acertaram um cano de ferro contra meu joelho, só isso”.

Só isso. Ele nem parecia se importar muito com o fato, acontecera há tantos anos que o jovem promotor até se acostumara. Seu ortopedista dizia que quando ele ficasse velho, a prótese de metal que reconstituía sua patela e parte do côndilo medialdo fêmur, incomodaria mais e doeria nos dias frios. Mas aos trinta e quatro, ninguém fica pensando nas dores de quando alcançasse os setenta anos.

A única coisa que o Manco não explicava era quem ou o porque o acertaram na perna. “É irrelevante” ele afirmava, sorrindo com simpatia. Ninguém se concentrava muito nesse fato, afinal. Era interessante a aura de mistério por trás do passado do homem. E ele parecia gostar. Assim como gostava de seu apelido.

O que o Manco não gostava, contudo, era de casos como aquele. Não da disputa judicial em si, porque essa era sua grande paixão, mas da natureza da acusação. A justiça de Illinois contava com um corpo de três promotores principais e ele sempre se tornava o destaque quando surgia um caso de feminicídio ou agressão doméstica severa. Aquilo meio que foi se tornando sua especialidade, ainda que o promotor flertasse com o crime organizado no início da carreira.

Manco folheou os arquivos em sua pasta, revendo as provas coringa que tinha em mãos. Um belo trunfo de sua equipe, mas principalmente sua. Ele tivera aquela intuição, a de averiguar os colegas de faculdade do réu, e isso levou a investigação, que resultou na descoberta comprometedora que apresentaria agora, no último dia de audiência. Os advogados de defesa de Jason, os irmãos Welsh, estavam nervosíssimos com a grande reviravolta. O juiz Terrance O’Mara informou como eles tentaram adiar o dia final para dali uma semana, e isso deixou o Manco feliz. Feliz por ter certeza de que havia encurralado aquele assassino psicopata e metódico. Não seria o primeiro do tipo que ele enfiaria atrás das grades, e tão pouco o último.

O juiz O’Mara chegou junto com o réu, Jason Hopinks, embora cada um tenha entrado por uma porta. Enquanto o juiz negro, de mais de cento e vinte quilos, ocupava sua poltrona a frente do tribunal, o rapaz loiro de corpo musculoso, metido num macacão cinza chumbo, sentava-se na cadeira do culpado, próxima dos advogados célebres contratados pelos pais.

─ Hoje, no último dia de audiência do caso O Estado Contra Jason Hopkins, a corte ouvirá as testemunhas finais da defesa e da acusação, seguido das respectivas alegações finais das duas partes ─ anunciou O’Mara com seu vozeirão de trovão ─ Iniciemos.

Brian, o irmão Welsh mais novo, levantou-se de sua cadeira e começou sua pantomima previsível. A testemunha da defesa era a amiga de Sue Harven, uma moça que trabalhara com a vítima nos últimos cinco anos em uma cafeteria próxima da casa de Jason. A senhorita Margaret Thomas, morena, baixa e de olhos maquiados, subiu no tablado reservado para as testemunhas, realizando, em seguida, o juramento de dizer apenas a verdade diante da corte.

O Manco aguardou, olhos indiferentes, a moça ser abordada pelo advogado do réu e começar os questionamentos em favor do mesmo:

─ Srta. Thomas, como vai? ─ não esperou que ela respondesse ─ Hoje estamos julgando Jason Hopkins pelo assassinato de sua amiga falecida, a senhorita Sue Harven. Pelo que sabemos até o momento, Sue namorou Jason por um pequeno período de tempo ano passado, a senhorita, sendo amiga de Sue, poderia dizer, mais ou menos, quanto tempo foi?

O promotor sorriu, achando muito curiosa, e risível, a linha que a defesa estava seguindo para refutar sua prova final.

─ A Sue chegou um dia para mim, por volta da metade de Abril de 2016, e disse que havia encontrado um cara legal na festa de um amigo. Então eles tinham ficado e tudo foi incrível.

─ Entendo. Esse cara legal está aqui hoje, entre nós?

─ Sim ─ a moça confirmou, piscando excessivamente.

─ Poderia nos apontar ele, Srta. Thomas?

Margaret Thomas ergueu o braço na direção de Jason, que sorriu jubiloso para a moça. O promotor tamborilou os dedos sobre a mesa de mogno, paciente, enquanto sua assistente bufava exasperada por todo aquele teatro para fazer o júri se convencer da índole imaculada do rapaz Hopkins.

─ Muito bem ─ Brian Welsh alisou a gravata e prosseguiu ─ Voltando a minha outra pergunta não concluída, por quanto tempo Sue Harven namorou Jason?

─ Cerca de cinco meses.

─ Cinco meses…? Entendo. Foi ela quem lhe disse isso ou você supôs por algum sinal diferente no comportamento de Sue?

─ Um pouco dos dois. Durante duas semanas, Sue estava trocando de horário com outra garçonete, para poder estar mais cedo em casa. Ela parecia bem feliz. Eu então perguntei o que ela e Jason estavam aprontando para ela sair cedo por tantos dias, mas Sue me disse que Jason era passado e depois… Depois ela riu.

─ Riu? Ela estava à vontade…? Alegre? Tranquila?

─ Sim. Ela namorou Jason por apenas cinco meses, mas já estava em outra.

O banco dos réus parecia tenso. Das nove pessoas convocadas, cinco eram mulheres, e dessas cinco, duas negras. O restante, o Manco analisara minuciosamente, correspondia a um conjunto étnico entre descendentes de italianos, ingleses e mais dois homens com sobrenomes latinos. Uma hilariante ironia para Hopinks. Visto a característica sortida do grupo, a defesa vinha trabalhando arduamente com duas linhas de argumentação para inocentar o réu. A primeira, de que Jason não estava na cidade no dia do ocorrido e isso estava sendo corroborado por duas testemunhas nada confiáveis, um primo e um tio. A segunda, e a mais emética para o promotor, de que Jason era um homem carinhoso, de bem com a vida com toda a comunidade, sem exceção de credo e cor, portanto nunca seria capaz de acabar com a vida de uma mulher grávida.

─ Com “estava em outra”, a senhorita quer dizer que ela começara a namorar outra pessoa? ─ Brian tentou elucidar a hipótese de Margaret.

─ Não sei bem se namorando, mas ficando, com certeza. Outro cara.

─ Chegou a ver esse outro homem, alguma vez?

─ De longe apenas, indo pegá-la na cafeteria. Não consigo dizer idade, nem etnia, ou mesmo como era o rosto. Era noite e ele estava dentro do carro, esperando-a. Mas Sue me disse quando a questionei aquele dia, disse com todas as letras, que estava saindo com esse outro homem.

─ E esse outro homem tinha um nome, Margaret?

─ Sim. Ela o chamava apenas de John. Não sei o sobrenome.

A assistente olhou para o promotor que sorriu, os dois não perplexos, mas quase empolgados pela linha de raciocínio que os irmãos Welsh estavam querendo que o júri acreditasse. Se fosse uma opção, o Manco gostaria de pôr seu outro joelho, o sadio, a prova, para endossar sua teoria, a de que Margaret Thomas, a melhor amiga de Sue Harven (pobre Sue) fora comprada pelo pai do réu naquele testemunho. Um homem que ela não conseguira ver, nem descrever de nenhuma forma, e que se chamava simplesmente John. Mais conveniente, impossível!

─ Mais uma pergunta, Srta. Thomas ─ Brian pediu ─ Jason chegou a procurar Sue alguma vez, depois disso?

─ Sim ─ ela concordou, balançando a cabeça e aproximando a boca do microfone ─ Ele foi a cafeteria numa manhã de Domingo, mas era para falar comigo. Queria saber como andava a Sue, porque ela simplesmente parou de querer o contato dele. Eu disse que ela estava em outra, ele ficou um pouco emocionado, me disse que havia se apaixonado por Sue, mas esperava, de coração, que ela fosse feliz, mesmo sem ele.

─ De coração, ele disse?

─ Isso, de coração… E parecia sincero.

O Manco poderia protestar nesse ponto, pouco importava o que Margaret Thomas achasse da honestidade de Jason, mas ele apenas aguardou o fim do testemunho, querendo guardar suas energias para os momentos mais cruciais.

─ Obrigado, Margaret ─ Brian piscou ─ Sem mais perguntas, Meritíssimo.

─ A acusação tem alguma pergunta? ─ O’Mara perguntou, olhando para a mesa da promotoria.

─ Apenas uma, Meritíssimo ─ o Manco pediu, mas não se abalou a sair do seu assento. Olhando dentro dos olhos de Margaret, os olhos de uma mentirosa, ele questionou ─ Numa escala de 1 a 10, sendo 1 o homem mais horroroso que você já viu na vida, e 10 o tipo de beleza masculina dos seus sonhos, Srta. Margaret, qual nota você daria para Jason?

A sala caiu em silêncio por alguns segundos, então Brian Welsh se levantou, ensandecido:

─ Protesto, Meritíssimo! O que esse tipo de pergunta tem a ver com o caso?

O juiz obeso fitou o advogado exasperado e respondeu:

─ Protesto, negado. Responda a pergunta, Srta. Thomas.

A moça olhou aparvalhada, dos advogados para o réu, e depois para o juiz. A seguir, abaixou a cabeça e ficou encarando as mãos, unidas sobre o apoio de madeira aonde ficava a bíblia.

─ Hã…

─ Responda logo, Srta. Thomas ─ o juiz exigiu.

─ Um oito, eu acho.

─ Você acha? ─ o Manco ergueu uma das sobrancelhas, especulativo.

─ É, oito ─ ela confirmou, embora não erguesse o rosto nenhuma vez ao afirmar.

─ É só isso, Meritíssimo. Obrigado ─ o promotor agradeceu, não ficou explícito a quem exatamente.

Brian Welsh encarou o promotor e fumaça parecia sair de suas orelhas.

A próxima testemunha, a testemunha final, era da promotoria, e encerraria o julgamento mais contraditório de Illinois nos últimos cinco anos. A mídia e a população estavam divididas entre condenar ou absolver Jason. Os temas de feminicídio e agressão contra a mulher eram discutidos nos programas de rádio e nas rodas de conversa mais progressistas, ao passo que a questão da mulher perigosa e aproveitadora, que tenta tirar proveito de um rapaz de família rica para se dar bem na vida, estava na boca dos reacionários tradicionalistas.

O quadro pintado contra a vítima, uma garota que não tinha medo de se vestir com roupas ousadas e rir alto em público quando encontrava uma boa piada, era de que ela rejeitara o amor sincero de Jason porque não conseguia se limitar a uma única relação. Quando descobriu que estava grávida, e suspeitando, pelo tempo em que terminara com o rapaz, que o filho era seu, decidiu se separar de seu novo amante – o desconhecido que a polícia nunca soube quem era – e reatar com Jason. Uma semana depois, Sue estava morta em seu apartamento, ostentando seu crânio amassado por um objeto rombudo, condizente com o seu secador de cabelo, encontrado há poucos centímetros do corpo dela. Já que ninguém sabia quem era o Sr. Desconhecido apontado por Margaret Thomas, a culpa automaticamente recaiu sobre Jason, que insistiu até o momento de sua prisão, dizendo que estava fora da cidade na época. Como nenhuma prova concreta fora apresentada para corroborar com seus dois álibis, o filho do empresário foi preso até o dia do julgamento.

─ Juiz O’Mara, gostaria de chamar a minha testemunha, o senhor Jason Hopkins ─ o Manco anunciou, erguendo-se de seu assento de madeira e abotoando o paletó na altura da cintura.

O burburinho na Corte se tornou intenso. Enquanto as pessoas cochichavam sobre o testemunho do próprio réu, até então um agente passivo e silencioso em seu julgamento, o rapaz de aparência agradável se encaminhava para o tablado das testemunhas, contando a mesma piada que Margaret Thomas. Dizer a verdade, somente a verdade, nada além da verdade.

“Ele diria a verdade”, o Manco pensou, se aproximando do homem acusado. “Diria a verdade sem nem saber como”.

─ Como vai, senhor Hopkins? ─ saudou o acusado exibindo um sorriso jovial para este.

─ Não muito bem, como pode ver ─ Jason ergueu os pulsos e as algemas tintilaram no ar.

─ Pois é… Mas acho que Sue Harven, sua ex-namorada, está pior.

─ Protesto, Meritíssimo! ─ Brian Welsh gritou.

─ Aceito. Vá logo ao assunto, Promotor ─ o juiz incentivou.

─ Tudo bem, Meritíssimo. Sr. Hopkins, poderia nos contar qual o seu envolvimento com os movimentos extremistas e reacionários de nosso país, conhecido como KKK ou Ku Klux Klan?

Jason arregalou os olhos, confuso. O Manco soube na hora que os advogados não o haviam lhe informado daquilo, certamente porque não queriam que o réu se mostrasse nervoso e inseguro durante a primeira parte da audiência.

─ Como? ─ perguntou para ganhar tempo. As engrenagens de seu cérebro perverso trabalhando ferozmente.

─ Ku Klux Klan ─ o promotor repetiu alto e pausadamente ─ Impossível você não saber do que se trata. Homens brancos em roupas brancas e chapéus pontudos, seguram tochas na mão…

─ Eu sei o que é! ─ Jason exclamou, irritado.

─ Protesto, Meritíssimo. A acusação está debochando do réu.

─ Protesto aceito. Mas apenas responda de uma vez, Sr.Hopkins.

O acusado se acomodou melhor na cadeira e falou para o microfone, a voz empostada e segura.

─ Nenhum. Não conheço nada sobre esse movimento.

─ Muito bem ─ o promotor coçou o queixo, pensativo. Então caminhou para sua mesa e resgatou a prova das mãos da sua assistente ─ Acontece que eu tenho uma fotografia muito curiosa em minhas mãos, Sr. Hopkins. Ela mostra o senhor, que pelo aspecto não deveria ser muito mais velho do que hoje em dia, abraçado e sorrindo de um modo muito amigável, com Earl Henderson. Sabe quem é Earl Henderson? ─ colocou a fotografia diante do acusado, que a estudou superficialmente.

─ Era um colega dos tempos de faculdade. Nunca fomos realmente próximos.

─ Isso é bom, Jason. Não ser muito amigo do Sr. Henderson, digo, porque ele poderia te levar para um péssimo caminho. Henderson foi suspeito de matar uma mulher negra em 2009 e de atentar contra a vida de sua amante quando ela contou ao Sr. Earl que estava esperando um filho dele. Ele também foi comprovadamente ligado ao Ku Klux Khan de Illinois, causando uma série de atritos insólitos contra uma comunidade judia instalada em nosso estado.

─ Protesto, Meritíssimo! O que isso tem a ver com o caso? Não consigo entender.

─ Aceito. Realmente, Acusação… Aonde quer chegar?

─ Estou chegando lá, Meritíssimo. Me dê apenas um minuto ─ o Manco pediu.

Enquanto isso, o réu começava a suar no banco das testemunhas. Algo nos trejeitos minuciosos do promotor de justiça o incomodavam muito. O homem voltou novamente para a mesa, claudicando da perna direita, pediu para que sua assistente passasse a foto para o juri avaliar. Então, voltou outra vez para o centro do tribunal e elaborou sua pergunta de um milhão de dólares:

─ Sr. Hopinks, o senhor alguma vez ligou para o serviço de emergência a polícia de Illinois para relatar um suspeito na sua vizinhança?

─ Não sei… Ta-talvez ─ gaguejou.

─ Faz um tempinho já, por isso o senhor não deve se lembrar ─ o promotor retornou mais uma vez para a mesa, pegando outro papel ─ Apresento ao júri a última prova da acusação, a transcrição de uma ligação realizada pelo Sr. Hopinks ao serviço de emergência da polícia de Illinois, em oito de fevereiro de 2015, as oito horas e cinco minutos da noite.

─ Protesto, Meritíssimo! Ainda não entendo aonde a promotoria quer ir…

─ Negado. Apenas continue e logo.

─ A ligação, que venho de um número de celular registrado no nome de Sr. Jason Hopinks através de uma pessoa com a voz do Sr. Hopinks, disse:

“JASON: Tem um criolo na minha rua e ele parece suspeito.

ATENDENTE: Repita devagar, senhor. Qual o seu nome, em que endereço está e qual a natureza da reclamação?

JASON: Ah porra! Me chamo Jason Hopinks e acabei de ir na mercearia para comprar uma cerveja e vi um preto de merda andando de modo suspeito próximo da minha casa. Ele tá com as duas mãos nos bolsos.

ATENDENTE: Senhor, ele está portando alguma faca ou arma? Pode ver? Ele teve alguma atitude suspeita?

JASON: Por enquanto não, droga, mas venham logo. Outro deles assaltou uma casa dia desses, no meu bairro. Esses filhos da puta, que deveriam ser todos queimados e açoitados pela KKK…

ATENDENTE: Fique calmo, senhor, e me diga qual o seu endereço…”.

Terminada a leitura da transcrição, que acabava antes de Jason dizer seu endereço aos berros, o Manco passou o documento para o júri analisar cada palavra transcrita:

─ A oficial que atendeu Jason naquele noite, era a policial Charlene Watson. Uma mulher afro-americana ─ jogou a informação no ar.

─ Protesto, Meritíssimo! A defesa não teve tempo suficiente de analisar a veracidade dessa ligação e, de toda a forma, ela nada tem a ver com a acusação atual.

O juiz O’Mara olhou detidamente para o advogado e depois falou:

─ Eu tive, Sr. Welsh. Tudo foi devidamente comprovado pela promotoria. Sobre a natureza dessas perguntas, qual o motivo, Promotor?

Mas o juiz Terrance sabia o motivo, assim como os advogados de Jason e o próprio Jason, que não parecia mais nenhum pouco confiante e presunçoso como no início da audiência, nove dias antes.

─ Apenas uma reflexão para o júri avaliar sobre o caráter do Sr. Hopkins. Me desculpe a volta toda, Meritíssimo. Eu já terminei por aqui.

O juiz perguntou se a defesa tinha alguma pergunta para o réu, mas os irmãos advogados negaram, expressões aturdidas consultando seus papéis. A sessão fez uma pequena pausa para as duas partes prepararem as alegações finais, o Manco indo tomar água no bebedouro do corredor apenas para ter o prazer de observar o pai de Jason, o dono da grana, esculhambando para cima dos advogados, com uma careta feroz. Retornando para a sala de audiências, a parte final do julgamento começou.

Os primeiros a falarem para o júri foram os advogados. Brian, que sempre fora melhor na oratória do que Bradley, disse sobre a integridade da família Hopinks na cidade e como um rapaz de bem, muito amoroso e ingênuo, acabou indo parar na prisão por amar uma garota que não estava interessada no seu amor. Segundo a alegação, ele nunca poderia fazer mal para Sue Harven porque nunca fora capaz de machucar ninguém, principalmente quem amava. E que, a desgraça da vítima fora procurar o afeto de uma pessoa completamente diferente de Jason, o homem que era seu verdadeiro assassino e que continuava a solta.

Terminado o discurso fajuto de Brian, o Manco sabia que precisava apenas cimentar o último bloco, colocar a cereja no bolo, porque tinha mais da metade do júri em sua mão quando trouxe dois fatos sórdidos do passado do acusado:

─ Senhoras e senhores, nesses dez dias de julgamento estivemos diante de um verdadeiro palco de atuações. Jason Hopinks entrou no papel do garoto de bem, do homem incapaz de ferir ao próximo, de ferir a uma mulher ou uma criança, porque sua criação incrível não o permite.

“Não estou falando mal da mãe de Jason, ela certamente fez o melhor que pôde, assim como seu pai… Mas alguma coisa saiu errada em algum momento e, hoje, deixar o assassino que Jason se tornou a solta, entre nós, tão novo, aos vinte e quatro anos de idade, dez anos mais novo que eu… Sei, eu sei que não aparento a idade que carrego ─ neste ponto da alegação, parte da plateia sorriu, contagiados pelo charme do enigmático promotor ─ … Pode resultar em novas vítimas no futuro. Vítimas das quais o sangue delas estarão também em suas mãos ─ e apontou para o júri.

“Há cerca de um ano, Sue Harven, uma jovem bonita e vivaz, de personalidade expansiva e autoestima inabalável, conheceu Jason Hopinks. Juntos, eles formaram um casal maravilhoso, afinal Jason é bonitão, como a Srta. Thomas muito bem nos disse, mas Sue não era exatamente o que Jason esperava dela. Ela era estonteante demais e… fácil demais. Ela não era para se casar.

“Acontece que em um ponto dessa relação, em que o acusado queria apenas uma diversão e Sue, talvez, tivesse esperanças de algo mais, ela engravidou. O réu então se enfureceu. Ora, ele não iria ter um filho daquela mulher volúvel, deve ter pensado. Imagino que deva ter sido até num acesso de fúria, sem premeditação, que ele acertou a cabeça da vítima com o secador de cabelo, o secador que Sue deveria usar para deixar os cabelos mais bonitos no seu próximo encontro com Jason, e amassou o crânio da namorada raptando para sempre sua vida e a vida do bebê, que se desenvolvia em seu ventre. O Hopinks da próxima geração.

“Após muitas horas de julgamento, peço aos senhores que não tornem tudo isso uma perda de tempo para a justiça. Não existem outros possíveis culpados por esse homicídio. Jason Hopinks é um homem rico, charmoso, sedutor e bem relacionado, por um lado… Por outro, coloco minha perna boa a prova de que esta seja sua verdadeira face, é um racista, um antissemita, um xenofóbico e um misógino com envolvimentos obscuros a um dos movimentos mais vergonhosos da nossa nação, o Ku Klux Khan, além de um psicopata que não teve nenhum remorso do seu crime.

“Por favor, pesem a morte de Sue Harvens, ceifada no auge dos seus vinte anos, e pesem a liberdade de um homem que não hesitará em matar de novo nunca próxima oportunidade, visto que a justiça será tão cega na primeira vez…”

Uma hora depois, na sala do juiz Terrance, o Manco e o advogado Bradley, tomavam o café servido pela secretária da Corte enquanto conversavam sobre outras banalidades, que não o julgamento daquele dia. Bradley, o mais velho dos Welsh, contava uma história engraçada sobre um figurão do governo que havia sido flagrado com suas duas amantes no mesmo dia, e o juiz e o Manco riam da tragi-comicidade do político. Não havia rancor entre o promotor e o advogado. Embora estivessem sempre em lados opostos no tribunal, os dois haviam se formado na mesma universidade e eram bons amigos. Brian, entretanto, o mais novo, e que não estava na sala, dizia-se não ir com a cara do promotor. “Paciência”, o Manco dava de ombros.

Dali a dois dias, a sentença para Jason Hopinks seria absoluta. Ele pegaria quarenta anos de prisão em regime fechado. Por mais que seu pai tentasse tirá-lo na cadeia nos anos seguintes, Jason mofaria por muito tempo dentro de uma cela até ter ver o mundo lá fora outra vez.

Bradley Welsh terminou seu café e sua história, despediu-se do magistrado e do promotor, e saiu da sala. O Manco deu o último gole em sua xícara e imitou o colega de profissão, pegando seu sobretudo na cadeira.

─ Harry, quando você vai me trazer os bolinhos da sua mãe de novo?

─ O juiz Terrance perguntou saudoso, vendo o rapaz vestir o casacão. O homem era o único da Corte que nunca o chamava pelo apelido, lembrando a Harry no trabalho, que ele tinha um nome de batismo além daquele apelido peculiar ─ As vezes me dá água na boca, só de pensar.

─ Vou visitá-la esse fim de semana, Meritíssimo, então aproveito para exigir a confecção dessa iguaria antes que ela possa ser intimada ─ brincou.

─ Ah, por favor, não deixe a Sra. Potter muito brava, ou ela pode colocar algo diferente na massa, somente para se vingar… ─ Terrance advertiu descontraído.

─ Lily Potter não seria capaz, Meritíssimo. Ela sabe que o senhor é o meu chefe ─ riu.

Caminhando pelo corredor vazio do tribunal, Harry Potter, o Manco, não se aguentava de felicidade. Havia feito mais um cretino pagar pelo seu crime. Ele amava o que fazia...

... E no fundo da sua alma ele continuava negando o fato de existirem formas do mal se apresentar que eram inalcançáveis a justiça dos homens comuns. 


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Notas finais do capítulo

*Figura pública americana, ex-mulher de Jim Carrey, que defende a ideia de que as vacinas causam autismo nas crianças. Nunca foi comprovado cientificamente que autismo e vacinação se correlacionam.



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