Black Annis: A Coisa que Nos Uniu escrita por Van Vet


Capítulo 20
A Mão da Glória


Notas iniciais do capítulo

Olá, gente!

Mais um capítulo daqueles tensos chegando para vocês, desta vez com um personagem inédito na narrativa.

Espero que gostem e ótima leitura!



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O delegado Dumbledore avaliou as expressões do garoto pálido a sua frente e pareceu considerar com atenção sobre as omissões que o menino estava fazendo acerca do desaparecido Goyle. Com a mão protetora, uma mão de dedos longos e excessivamente brancos, a mão de um homem acostumado a controlar e comandar pessoas, a mão que mais parecia controlar as frases do filho do que apoiá-lo, apoiada sobre o ombro de Draco, Lúcio Malfoy questionou o oficial:

─ Então é tudo, delegado? ─ seu tom deixava mais do que claro que ele queria que o interrogatório terminasse. Não que fosse uma entrevista policial formal ou que Dumbledore estivesse sendo incisivo demais com o menino, mas o olhar desconfiado do delegado era algo difícil de não notar… e estava incomodando o patriarca daquela casa cara e ostensivamente mobiliada.

─ É tudo, Sr. Malfoy ─ o velho ergueu-se da cadeira na cozinha e colocou o seu chapéu de vaqueiro predileto na cabeça grisalha ─ Se Gregory entrar em contato com você, Draco, gostaria que avisasse a polícia o quanto antes. Sua família está preocupada e não posso admitir crianças desaparecendo na minha cidade sem explicações.

─ Sim ─ Draco confirmou acenando com um meneio insignificante de cabeça, mas encarando a mesa o tempo todo. Por que esse menino me esconde algo? o velho pensou.

─ Um bom dia para todos ─ Dumbledore tocou na aba do seu chapéu ─ Sr e Sra. Malfoy, Draco… Eu sei o caminho da saída, Lúcio, não precisa me acompanhar ─ respondeu fazendo uma voz divertida, embora Lúcio Malfoy não tenha arredado o pé do lado do filho ou demonstrado sinais de que faria a gentileza de encaminhar a visita até a porta.

De volta aos jardins da casa, Dumbledore avistou seu fiel escudeiro, o oficial Rúbeo Hagrid, esperar com impaciência ao lado da viatura o retorno de seu superior.

─ O senhor demorou ─ disse o grandalhão abrindo a porta do passageiro para o delegado.

─ Eles são osso duro de roer, esses Malfoy ─ o mais velho reclamou acomodando-se no banco.

Hagrid contornou a viatura e sentou-se sobre o lado do motorista, seu peso fazendo a suspensão do veículo arriar até quase beijar o asfalto.

─ Nunca gostei desses Malfoy, se quer saber, senhor. Lúcio era um grandessíssimo de um mal caráter no tempo da escola. Quanto a Narcisa, sempre me encarava como se eu fosse uma massa de lixo toda vez que passava pelo corredor dos armários. E esse filho deles vai pelo mesmo caminho. Só esse ano já recebi duas queixas contra as arruaças que ele apronta com os outros pelas vizinhanças.

─ Infelizmente, salvo exceções, o fruto nunca cai longe da árvore, Hagrid ─ observou.

─ Mas conseguiu alguma informação importante sobre o menino desaparecido, senhor? ─ perguntou policial não entendendo exatamente a expressão que Dumbledore utilizara. Com um ronco pesado, os carros da polícia estavam para lá de velhos, eles deixaram a frente da casa dos Malfoy e começaram o percurso de volta para a residência dos Goyle com notícias infelizes.

─ Nada relevante, apenas mentiras. Ele disse que viu Gregory Goyle no mesmo dia em que a mãe deu queixa do seu desaparecimento, porém eles não saíram para brincar como a Sra. Goyle deixou a entender. Segundo Draco, a última vez que viu o amigo foi na saída do último dia de aula, na escola.

─ E o senhor acha que ele está mentindo?

─ Ele está, já que o outro, o filho dos Crabbe, foi um pouco lento na sagacidade e disse que eles brincaram próximo a floresta até o fim da tarde daquele dia e depois cada um partiu para a sua casa. Draco estava com eles.

─ Humm… entendo ─ Hagrid ponderou enquanto paravam no semáforo da prefeitura ─ Acha que pode ter acontecido algo que os meninos sabem, mas estão escondendo?

─ Não sei ─ Dumbledore respondeu encarando a rua, seus olhos azuis não focando em nada em específico, apenas distantes em reflexões ─ Eles podem ter visto algo que os assustou, podem não querer se encrencar porque estavam fazendo alguma coisa que não deviam ou simplesmente podem não ser tão amigos assim como presumíamos.

─ O senhor quer dizer que podem ter… machucado o menino Gregory de algum modo? ─ o grandalhão indagou com espanto.

─ Não isso, mas se sabem de algo que pode ajudar a encontrar o amigo deveriam nos contar de uma vez e não de ficar inventando desculpas para se isentarem de encrencas.

O semáforo interminável que o prefeito mandara instalar na esquina da prefeitura, finalmente abriu. O carro deslizou pelas ruas pouco movimentadas do fim de semana em Twinbrook e tomou uma das muitas estradas estreitas, construídas no meio daquela floresta misteriosa de pinheiros selvagens, que levava aos bairros retirados do centro. Era num desses bairros que os Goyle moravam.

─ Então voltamos à estaca zero? ─ quis saber Hagrid.

─ Voltamos ao primeiro plano, ao que eu queria evitar… Sondar essa floresta maldita ─ Dumbledore respondeu sombriamente e Hagrid espantou-se porque o delegado não era de praguejar ou parecer pessimista ─ Primeiro Adam Fuller e agora isso… ─ o delegado estava cansado ─ Enfim, preciso me concentrar e pensar em como dizer a Sra. Goyle que não temos nenhuma pista sobre seu menino.

***

Quando a mão do pai parou de pesar no ombro de Draco, ele sentiu como se pudesse respirar livremente de novo. Toda a carga tensa instalada com visita do delegado riponga e cowboy, como se esses dois gêneros pudessem coexistir numa única pessoa sem parecer desastroso, diluiu-se um pouco e Draco pôde se esgueirar para o quarto e para longe da presença inquisidora de Lúcio Malfoy. Enquanto subia as escadas para o segundo andar, podia escutar o pai reclamando para a mãe sobre a esquisitice e a ousadia de Dumbledore em vir interrogar o filho na sua casa. Na sua casa!

No seu quarto, o garoto loiro e de pele eternamente pálida, debruçou-se a escrivaninha e puxou o porta-retratos com a foto da turma da escola do período anterior. Ele não tinha fotos pessoais com os amigos, de forma que aquela imagem era a única que uma câmera captou dele e de Gregory Goyle juntos. E seria a única para sempre se a sua intuição estivesse no caminho certo.

Claro que nunca comentaria para o delegado, muito menos debaixo do olhar severo do pai, mas ele tinha certeza de que algo ruim, ruim tipo morte, havia acontecido com Goyle. Fora naquele dia na floresta, enquanto tentavam encurralar o patético Neville Longbottom, que seu amigo desaparecera. Neste mesmo dia, que ele escutara o grito mais horripilante de pavor jamais escutado, ecoando entre aquelas árvores enormes e ancestrais.

Goyle podia ser um pouco atrasado para o raciocínio de Draco, mas ele era muito mais esperto que Crabbe, por exemplo. Eles poderiam ter várias diferentes também, econômicas a maior delas, já que o Sr. Goyle era o faxineiro no templo de Lúcio Malfoy, mas, mesmo assim, os dois garotos se davam bem. Se davam… no passado.

Eu só acho que não vai ajudar em nada você ficar olhando feio para o delegado da cidade enquanto ele faz perguntas ao nosso filho ─ Narcisa gritava furiosa no andar debaixo.

Eles estão discutindo de novo… Draco suspirou. Os pais discutiam para tudo e qualquer situação atípica no dia dia morno dos Malfoy era um motivo a mais para discussões. Essa era uma das razões que faziam filho do casal gostar de ficar com os amigos pela cidade do que em casa ouvindo o pai querer dominar todos os aspectos da vida dele e da mãe, e a mãe rebater aos berros a autoridade abusiva do marido.

Ele voltou a concentrar-se na fotografia da escola num exercício corriqueiro de isolar os barulhos dos adultos para o fundo da mente. Na foto, Goyle estava ao lado de Draco, mais de uma cabeça mais alto, e tinha um sorriso presunçoso no rosto. Se lembrava porque o amigo sorria daquele modo, eles haviam acabado de grudar papel mastigado no topo da cabeça de Meg Smith, a estudante na frente deles, e esperavam que a goma de celulose aparecesse na fotografia da turma. Bem… ela não apareceu, mas a imagem de Meg fazendo cara de nojo quando notara o papel babado repousando no cabelo, depois da foto, continuava vivida na mente de Draco. Ele deu um sorrisinho frouxo para aquela lembrança.

E decidiu.

Tentaria encontrar Goyle por seus próprios meios, mas também se vingaria por ele caso não o encontrasse, afinal o motivo de seu desaparecimento era óbvio. Era Neville Longbottom.

─ Crabbe está lá no jardim ─ o pai abriu a porta subitamente e disse quase como em um rosnado.

─ Certo ─ Draco engoliu o bolo de raiva que havia se formado em sua garganta ao recordar Longbottom, e passou pelo pai que segurava a porta do quarto entreaberta.

─ Dispense logo esse menino porque hoje você vai para o templo comigo ─ avisou ao filho.

─ Tudo bem ─ concordou, sentindo seu estômago despencar. Lúcio o chamava para aquele lugar opressor toda vez que achava que Draco merecia um bom castigo. Era óbvio ao pai o quanto o seu rebente detestava estar lá.

O adolescente loiro desceu as escadas rapidamente e saiu para o jardim para encontrar Crabbe. O menino gordo e forte estava montado na bicicleta e tinha uma expressão ansiosa no olhar.

─ Tudo bem, por aí? ─ perguntou observando a casa, por cima do ombro do outro ─ Acho que ouvi seus pais gritando…

─ O de sempre ─ Draco revirou os olhos ─ Dumbledore esteve aqui me perguntando sobre o Goyle.

─ Ah é? ─ o rosto de Crabbe ficou muito vermelho ─ E o que você disse?

─ Que eu não o via desde a saída da escola no último dia de aula, obviamente ─ retorquiu ─ Por que? ─ tentou ler as expressões inquietas que Crabbe lhe fazia ─ O que aconteceu? A polícia te procurou também? Crabbe, o que disse para eles?

─ Draco, eu… Eu só disse que a gente ficou de bobeira perto da floresta por um tempo naquele dia e depois… Então todos nos despedimos e foi cada um pro seu lado.

─ Você disse que eu estava junto? ─ perguntou mortificado.

─ Humrum…

─ Seu idiota! ─ exclamou soltando os braços no ar ─ Seu grande monte de idiotice! ─ agora ele estava encrencado. Se ele achava que Dumbledore desconfiava dele, já não restava mais dúvidas de sua mentira com a versão acéfala de Crabbe para competir com a sua.

─ Desculpe, Draco. Eu, eu…

─ Cale a boca ─ o outro ordenou, imaginando o que aconteceria caso o delegado fosse inquirir sua versão dos fatos diante do pai outra vez.

─ Será que devemos avisar o Blaise? ─ o menino perguntou, após respeitar a ordem do garoto loiro e calar-se por alguns instantes.

─ Por que isso? Você por um acaso fez o favor de dizer que aquele doente estava conosco naquele dia? ─ cuspiu, raivoso.

─ Não, não ─ Crabbe balançou sua cabeçorra ─ Calma, Draco. Só estou pensando para o caso do delegado ir falar como ele para nós combinarmos uma história.

─ Mais uma? Esquece! E Blaise não é da nossa turma, ele ficou conosco por puro acaso no dia em que Goyle sumiu, portanto vamos fingir que nem nos encontramos.

─ Tá…

─ E não chama mais esse Zabini para nada, escutou? Eu não gosto dele.

─ Você acha que… ─ começou a murmurar ─ Acha que ele fez algum mal para o Goyle?

A pergunta surpreendeu Draco. Era como se Crabbe tivesse um ato de lucidez e inteligência inédito em sua vida. Como ele próprio nunca pensara nisso? Blaise Zabini, ele era estranho mesmo… e se tivesse alguém com capacidade suficiente para machucar outra pessoa a ponto dela desaparecer, este alguém poderia ser Zabini.

Draco não gostava da sua companhia. Ele era um menino mais velho, quase um adulto considerando que dezesseis anos era a idade legal para começar a dirigir. Haviam se conhecido na escola mesmo, Zabini um repetente, e o tal decidira andar com eles algumas vezes.

De início, Draco achou aquela companhia muito proveitosa. Um menino mais velho na sua trupe daria um ar mais temido a eles. Gostava de ver os outros alunos se encolhendo e abaixando os olhos quando passavam pelos corredores da escola, algo que ele próprio fazia sob o olhar severo do pai, mas achava glorioso descontar em quem considerava mais fraco.

Então a coisa começou a ficar estranha quando ele próprio passou a se sentir intimidado por Zabini. O garoto não havia ameaçado bater nele ou coisa do tipo, ao menos não explicitamente. O que perturbava era sua aura delinquente. O modo como ele encarava as pessoas, incluindo Draco e seus amigos, como se tramasse coisas doentias e inimagináveis com seus corpos. As vezes, Malfoy quase podia escutar sua cabeça trabalhando e imaginando como seria cortá-los em algum beco escuro e ir tirando suas tripas somente para ver até onde iam.

Nunca esquecera também o dia em que presenciara Zabini pegando um gato na rua, o enfiando num latão vazio perto dos depósitos de lixo e tacando fogo lá dentro. O barulho do animal agonizando em chamas, em desespero, tentando sair de dentro daquele inferno e depois o cheiro de pêlo queimado que ficara no ar, voltava para aterrorizar Draco em algum dos seus pesadelos mais íntimos.

E no primeiro dia de férias, o fatídico dia, Zabini os encontrara em meio a perseguição a Longbottom – Draco desconfiava que o adolescente mais velho estava seguindo-os há um bom tempo, na verdade – e pedira para unir-se a brincadeira. Goyle e Zabini tiveram uma discussão do meio da mata, a caminho de encurralar Neville, estavam falando sobre futebol americano ou algo assim, e logo depois aquele demente tentara cortar Longbottom e encrencá-los a valer com os pais do garoto ou até com a polícia. Ou com seu pai, caso chegasse a ouvidos demais que o filho do pastor estava torturando retardados na rua.

Agora, de repente, após a especulação de Crabbe, Draco achava plausível que Zabini tivesse feito algo com Goyle enquanto eles se dividiam para caçar Neville.

─ Draco, eu disse para você terminar essa conversa logo ─ Lúcio gritou para o filho, entrando na garagem para pegar o carro ─ Vamos!

Com um suspiro resignado, Malfoy virou-se para o único amigo que lhe restara:

─ Não diga mais nada a ninguém, nem a polícia. E se encontrar Zabini não fique sozinho com ele ou puxe muita conversa.

─ Não tenho medo dele.

─ Eu sei.

─ É verdade, não tenho mesmo ─ Crabbe cerrou os punhos e estralou os dedos para mostrar que podia ser ameaçador.

─ Não importa…

─ VAMOS, DRACO! ─ Lúcio saiu da garagem e começou a buzinar.

─ Amanhã eu te procuro e nós vamos encontrar Goyle nós mesmo. Tchau!

─ Está bem e boa sorte ─ acrescentou o menino robusto vendo o rosto nada feliz do Sr. Malfoy aguardando pelo filho.

 


   Por mais que Draco estivesse tendo um dia ruim, nada o havia preparado para o que viria a seguir.

Lúcio estacionou na vaga aos fundos do prédio que funcionava como seu templo e pediu para filho o acompanhar no trabalho. Sim, este era o emprego de Lúcio Malfoy. Ele era uma espécie de pastor.

Ele “fora tocado por Deus” no ano de 1980 ao conhecer Narcisa Black, atual esposa, e descobrira que o Senhor não virava as costas para nenhum dos seus filhos não importava seus erros. Antes disso, Lúcio não passava de um jovem viciado em drogas, desempregado e revoltado, que só fazia dar trabalho aos próprios pais.

Era esta a versão que Lúcio contava aos seus discípulos quando tornou-se pastor. A versão de Draco era que o pai trocara um vício pelo outro. Ele mudara da dependência química para a dependência ególatra, pois nada parecia enchê-lo com mais alegria do que intimidar e ser vangloriado por seus “servos”. Sua família não escapava desta sina.

Pai e filho entraram no templo pela porta dos fundos e aquele ambiente escuro e opressor recaiu instantaneamente sobre o garoto. O imenso galpão reformado e transformado no local para os cultos estava silencioso. Sombras suspeitas recaíam por detrás de pilastras, embaixo dos bancos e atrás do púlpito em que o pai tomava as palavras sagradas. No teto, as janelas vazadas deixavam entrar um pouco da luz do cinzento que fazia e pareciam servir para transformar as sombras em espectros disfarçados pelo salão.

A noite, o ambiente ficaria iluminado e movimentado de fiéis, contudo continuaria sendo aterrador para Draco, com seu pai concentrando-se nas passagens ameaçadoras do Velho Testamento e rogando pragas para quem não fosse virtuoso e puro suficiente para alcançar o reino dos céus.

Uma escada de ferro em espiral fora construída entre duas pilastras dos fundos com a intenção de ficarem ocultas do público. Por ali, os dois subiram para uma espécie de mezanino que acessava a vista de toda a nave do templo e levava para a porta destinada ao escritório de Lúcio. Os dois entraram por lá, Draco fazendo muito esforço para não ter a visão panorâmica do lugar. Ela era ainda mais assustadora do alto.

─ Hoje você vai separar esses documentos ─ Lúcio foi até a escrivaninha e começou a apontar para uma papelada em cima dela ─ Quero que os separe por data e ordem alfabética, exatamente nessa ordem.

─ Tudo isso? ─ ele não se conteve ao ver a pilha.

─ É Draco, tudo isso. Algum problema? ─ os olhos do homem o perfuraram.

─ Não ─ o filho respondeu carrancudo.

─ Ótimo. Eu vou precisar ir ao centro pagar algumas contas e comprar o que falta para o nosso culto desta noite, mas quando voltar acho que você já terá terminado tudo.

─ O senhor vai me deixar aqui sozinho? ─ não conseguiu esconder o pânico na voz. Odiava estar ali, sobretudo, sem mais ninguém por perto, mesmo que fosse o pai.

─ Eu não estou com paciência hoje, sabia? Aquele delegado de araque me levou um pouco dela e depois foi sua mãe com os exageros de sempre ─ ele bufou ─ Quer mesmo me provocar?

─ Eu posso fazer isso ─ ele respondeu, crispando os lábios, entre a vontade de xingar e chorar.

─ Ótimo, ótimo! Sei que pode! Se concentre na tarefa e volto logo ─ e bateu a porta ao sair.

Draco então se viu só naquele ambiente odioso. Se Deus existisse, ele, com certeza, não estava por lá. Era como se uma névoa densa e negra cobrisse todo o local e o tornasse irrespirável. Cada recôndito do templo e da sala particular de Lúcio dominado pelo mesmo pessimismo invisível. Como se olhos perversos e cheios de más intenções, observassem o adolescente para onde quer que ele fosse ali dentro.

Frustrado, ele tratou logo de iniciar sua tarefa. Quanto antes ficasse com a cabeça ocupada e, mesmo naquele serviço estúpido, maiores as chances de abstrair dali e fazer a hora passar.

Sentando na poltrona atrás da escrivaninha, pegou o primeiro fardo de documentos e as folheou casualmente. Datas e Alfabeto. Separar em datas e em ordem alfabética e, claro, nunca olhar para a estante de madeira ao seu lado esquerdo, onde um pedaço de cadáver secular repousava.

Como que atraído por aquele medo sinistro, o garoto fez justamente isto e encarou o objeto mais perturbador da sala do pai: a Mão da Glória.

Aquilo que Lúcio chamava de “seu amuleto da sorte e prosperidade” tratava-se de uma redoma de vidro fortemente selada no suporte de madeira onde ali guardado encerrava-se uma mão humana mumificada.

A história sobre aquela Mão da Glória era tão misteriosa quanto ela própria, mas segundo o vendedor que passou-a ao seu pai, ela pertencera a um ladrão inglês bastante ousado e sagaz, que roubara pertences valiosos da Coroa inglesa em meados do século XVI.

O mais absurdo ainda era o simbolismo por trás do souvenir macabro… Segundo a lenda, ele servia como uma espécie de amuleto para ladrões e trambiqueiros em geral.

Draco ficou olhando para a mão morta, sem piscar, e imaginando se a alma de uma pessoa poderia ficar presa numa parte ínfima de seu corpo conservado. Ele tinha medo daquela coisa desde que se entendia por gente, que era mais ou menos o tempo em que ela veio parar na posse de Lúcio, e ao mesmo tempo um fascínio bizarro por seus mistérios.

E se os dedos mexessem? Aquelas longas falanges recheadas de tecido enrugado e amarelado? Dedos tão cumpridos que não pareciam pertencer a um ser humano…

E quanto as unhas? As vezes ele tinha a impressão que elas cresciam com a rapidez de uma pessoa quando viva e então o pai retirava-a de seu invólucro envidraçado, pegava um cortador na gaveta da escrivaninha, apoiava-a sobre seu colo e as aparava para não levantar suspeitas.

Como se desgrudar os olhos daquilo fosse um grande esforço, o menino resolveu concentrar-se na tarefa designada. Datas e Alfabeto. Em data e ordem alfabética.

Elisabeth Gibson…. Arthur Melvelli… Anne Gordon… todos assinando contratos e recebendo suas quantias para abdicarem as residências que a represa Twinbrook passaria assinados em 18/04… 21/02… 7/06…

Mas que porcaria era aquela que ele vinha separando? Contratos? Residências? Represa de Twinbrook? Relacionado aos assuntos do templo que não era…

Draco bufou. O pai enfiara qualquer coisa em sua mão somente para castigá-lo pela visita inoportuna do delegado. Olhando casualmente na direção da Mão da Glória, aquilo era um ímã, seu coração praticamente parou.

A mão não estava lá dentro.

Em choque e com a respiração suspensa, Draco tentou encontrar na mente todos os motivos racionais para o que estava vendo… ou achando que não estava vendo. Um calafrio subiu vagarosamente por sua espinha ao mesmo tempo que as pernas ficavam moles.

Não havia razão para buscar a sanidade naquilo, apenas a atitude sábia de olhar para porta e pensar em quantos segundos ele conseguiria alcançá-la com as duas pernas bambas.

Mal teve tempo de levantar da poltrona do pai quando a mão morta pulou por cima da prateleira de livros ao seu lado e lançou-se sobre o rosto dele como uma aranha branca e traiçoeira. Como o facehugger sorrateiro que invadiu a nave Nostromo em Alien 1 e iniciou o caos xenomorfo.

A sanidade do adolescente custou a acreditar enquanto os dedos borrachudos e gelados, pertencentes a um infrator enforcado quatrocentos anos antes, desciam para a parte mais frágil de sua anatomia e fechavam-se sobre a garganta com a força de um homem adulto e bem vivo.

Mais do que medo, Draco estava empenhado em lutar por sua vida. Os dedos mortos fechavam-se ao redor do pescoço, estavam fazendo a volta em sua nuca – como grandes e anômalos que eram – e ele agarrava-se ao pulso cortado, tentando puxá-lo para longe de si.

A Mão assassina apertou mais.

Os músculos de seu pescoço ardiam de dor e a traqueia começava a perder diâmetro para o peso contra si. Draco tentou enfiar os próprios dedos, vivos e bem quentes, na palma daquela mão nojenta e tirá-la de cima dele. Aquilo ficou ofendido pela ousadia do jovem e apertou-o ainda mais.

Zonzo, o menino apoiou-se no tampo da escrivaninha, mas tombou para trás levando meia dúzia de acessórios apoiados sobre a mesa, consigo. Uma vez no chão, ele esperneava por ar, escoiceava o assoalho e via todas suas chances de pedir socorro interrompidas por um grito que nunca conseguia dar.

Poucos segundos antes de perder a consciência e entregar-se a Mão da Glória, veio-lhe uma última ideia. Agarrou o grampeador que caíra no chão com ele e, com a parte achatada de ferro, começou a bater e bater e bater naquilo até onde seu desejo de sobreviver ordenava.

Após o oitavo golpe, a Mão retraiu seus dedos e correu subjugada para as sombras de um armário. Draco tomou dois goles de ar, mas sabia que, a despeito da fraqueza no corpo, precisava fugir.

Ficando em pé um pouco cambaleante, o menino correu para porta e tocou na maçaneta. Ela estava lisa, ou seus dedos débeis, e precisou de mais duas tentativas para ceder a determinação dele de abri-la. De volta a mezanino e a escada em espiral, desceu os degraus de dois em dois, nunca fitando o salão por saber, ou sentir, que mais coisas estranhas o aguardavam de lá, e correu para porta dos fundos.

Foi um alívio descobrir que seu pai não o havia trancado, mas não alívio ao constatar que, mesmo depois de tomar todo o ar necessário e estar seguro na claridade e na movimentação da rua, uma mão morta o havia quase matado.


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