Black Annis: A Coisa que Nos Uniu escrita por Van Vet


Capítulo 12
A Coisa no Esgoto


Notas iniciais do capítulo

Olá, gente, tudo bem? o/

Black Annis atrasou um pouquinho essas semanas, mas continua firme e forte por aqui. Nesse capítulo temos mais perguntas levantadas, MAS também algumas respostas chegando. O ponto de vista é do nosso ruivo lindo e maravilhoso...

Ótima leitura!

Ps.: vou responder seus comentários anteriores em breve, fiquem tranquilos.



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Rony detestava as ruas daquela região de Twinbrook. Era o maldito do bairro inteiro cheirando a esgoto, montoeira de sacolas de lixo pelas calçadas, muitas vezes até cadáveres de pequenos animais domésticos jogados pelos canteiros de mato alto e, para ajudar, iluminação precária durante a noite. A cada meia dúzia de postes pelo qual passava, cinco estavam com a lâmpada queimada. Depois de pisar com a botina recém-lavada numa gosma cor de abóbora na calçada, ele resolveu sacar a lanterna de mão do cinto e trazer um pouco de claridade nos seus próximos passos.

Uma olhada rápida por cima do ombro e vislumbrou os vizinhos de Gina, enxeridos desgraçados que ficavam espiando a vida alheia na hora errada, era para vocês espicharem seus pescoços para o portão do lado, segundos antes de Alvo sumir, parados próximo a viatura de polícia, aos cochichos. A medida que andava, entrementes, tanto a casa de Gina quanto aqueles abutres começavam a se tornar distantes para os olhos do policial Weasley. No instante seguinte, ele virava a esquina para a outra via, tão decadente quanto a que sua amiga de infância morava. 

Enquanto caminhava, inspecionando as ruas a procura de algo, não sabia o que, que trouxesse alguma dica de onde Alvo poderia estar, ele questionou-se sobre a avaliação da colega, a Sargento Penninck, acerca de um assunto deveras espinhosa…

“Essa medicação é para controlar esquizofrenia, não é?”.

Sim, Meg, é a merda de uma medicação controlada para malucos. Só que Gina não é maluca. Gina era a mais sã de todos nós, a mais corajosa, a mais destemida. A que vivia na lama, mas se divertia ainda sim, quando conseguia folga do seu inferno particular. Ela teve um maldito pai, uma maldita mãe, um maldito marido. E sabe o que ela teve também? Um trauma mais maldito que tudo isso. Queria ver quem aguentaria, queria ver você aguentar, e não enlouquecer. 

Só que Gina não ficou doente devido aos acontecimentos daquele verão de 1996… Qualquer pessoa poderia, contudo ela era uma garota… diferente. Os problemas psicológicos da amiga, até onde ele sabia, porque agora Rony e Gina não eram mais aquelas pessoas chegadas de outrora, iniciaram na gravidez de Alvo. Um belo dia, tão belo e ensolarado que era até irônico, o policial Weasley tirou sua farda e foi visitar a amiga para conhecer seu filhinho recém-nascido.

“Ele é lindo e quero matá-lo a todo o instante” foi a declaração mais honesta que Rony já recebeu de alguém antes. A seguir os dois se sentaram no sofá daquela mesma sala e a ruiva lhe contou que o médico a havia diagnosticado com depressão e esquizofrenia pós-parto. Então ela pegou um cigarro do maço em cima da mesinha de centro e tragou longamente, os dedos trêmulos, dizendo “Acho que no fim das contas sou pirada como minha mãe”, e riu uma risada absurdamente aterradora.

Rony saiu daquela visita ligando para o irmão, Percy, a milhas de Twinbrook, e solicitando um bom médico psiquiátrico na região para que pudesse levar a amiga. Os dois anos seguintes de tratamento saíram diretamente do bolso do rapaz. Segundo o doutor que a atendia, Gina nunca estaria curada, ou sempre estaria, se tomasse os remédios regularmente. E ela vinha fazendo um ótimo trabalho, mesmo quase perdendo a vida nas mãos de um psicopata sanguinário, o pai de Alvo, nesse ínterim.

Logo, era claro para Rony, que a culpa não era dela. Outra coisa levou o menino… 

Estava flutuando em suas divagações ainda, o facho da lanterna passeando pelo meio-fio, e foi sobressaltado pelo toque de seu próprio celular:

─ Alô… Percy? ─ falando no diabo. 

O que você queria? o irmão perguntou cheio de má vontade, do outro lado da linha.

─ Como ‘o que eu queria’? ─ Rony parou de caminhar e indagou o Weasley mais velho com irritação ─ Faz dois dias que só consigo falar com suas caixas postais e os funcionários desse hospital de merda que você trabalha! Por um acaso você se importa com algo na sua família?

Estava em plantão, Rony. Vários seguidos! Simplesmente não posso largar meus pacientes no meio das consultas para saber qual as novas nesse buraco que você insiste em viver com papai…

─ Até onde eu me lembro da última vez que conferi, não estamos aqui porque queremos, mas sim porque não temos dinheiro para vender a casa.

Você ao menos se esforça? Estou juntando dinheiro para abrir meu próprio consultório e não posso cuidar do papai daí, eu já disse. Sou um cara só…

─ Que bom, Percy. Que bom. O mais interessante é que eu também sou um cara só do lado de cá. Trabalho e cuido de um senhor de setenta anos com dois derrames e nenhuma vontade de viver, todos os dias, enquanto o filho médico dele fica do outro lado do país ignorando as ligações do irmão mais novo sobre como cuidar da esclerose do pai, SEU IMBECIL DE UMA FIGA!

Sequer tendo tempo para raciocinar sobre sua ação, o celular voou da mão do policial direto para a sarjeta, uma arremesso tão carregado de raiva que partiu o aparelho em diversos pedacinhos inúteis pelo chão. 

─ Merda… ─ ele arfou passando a mão pelo cabelo com exasperação e lamentando a perda do seu celular antigo, mas muito mais funcional do que os modelos complicados do último ano.

Seu olhar carregado de ira galgou pela calçada, um bolo de frustração precisando ser digerido a meio caminho da garganta para não engasgá-lo, quando a atenção foi capturada para um detalhe peculiar naquele cenário. Rony posicionou a lanterna na direção almejada e iluminou o bueiro grotescamente grande naquela calçada irregular. Não era exatamente uma boca de lobo, era a boca de um dragão de tão grande. Um buraco daquele na via poderia causar algum tipo de acidente sério, já que conseguia passar o corpo de uma criança de onze anos tranquilamente…

Apesar do calafrio estranho que o bueiro lhe causava, aquilo parecia uma fenda para o outro mundo, o policial aproximou-se da valeta e, cauteloso, quase desconfiado, inclinou o corpo na direção do local, o facho da lanterna sempre iluminando tudo, e observou o que havia ali dentro. 

No fundo do bueiro, água escura e fétida caminhava brandamente por debaixo da rua, arrastando os dejetos subtraídos das descargas e ralos do bairro, além de um emaranhado de embalagens vazias de guloseimas, resto de papel, folhas mortas e pedaços podres de comida. Uma ratazana rotunda avançou sobre o que um dia deveria ter sido uma metade de pirulito sabor framboesa e o arrastou para as profundezas do esgoto, aonde a lanterna do oficial não alcançava. Até onde ele pôde ver, entretanto, algo muito atípico o fez hesitar.

Se agachando na rua, Rony esqueceu momentaneamente todo o asco, toda a aversão que o esgoto lhe causava, e esgueirou-se para frente, a cabeça quase adentrando no buraco. O braço direito passou devagar pela abertura fedorenta enquanto o esquerdo apoiava o restante do corpo, e com o facho enxergou um casaco vermelho de criança jogado bem no meio do percurso da água. Apenas um casaco.

De súbito, o tenente se levantou sentindo o coração pulsando loucamente no tórax e esmurrando seu pescoço. Precisou de um minuto inteiro para organizar seus pensamentos, que corriam ferozmente a duzentos quilômetros por hora em outro tempo, outra época. O garoto estava no esgoto… Ele também está lá. Ele e quem mais?

Tenente Weasley ─ A Sargento Penninck o chamou no rádio, assustando-o no meio da rua escura e deserta ─ Pode me ouvir?

Rony pegou o rádio com afobação e respondeu:

─ Alto e claro.

Houve um roubo à mão armada no centro e estão precisando de viatura. O Tenente… continua por aqui?

─ Sim, sim. Estou uma quadra abaixo daí, averiguando a rua em busca de pistas.

Ok… O Tenente quer ir para a chamada do centro ou vamos nós?

─ Vão vocês. Digam para Gina aguardar meu retorno e podem ir logo.

Tudo bem, Tenente… Tudo bem por aí, Ronald?

─ Tudo certo, Meg ─ ele respondeu com um tom de voz exageradamente calmo ─ Apenas… É que…

Sim? ─ ela perguntou em expectativa.

─ Será que você consegue me contatar daqui uns, digamos, quinze minutos… Somente por precaução? Se eu não responder… Hã, se eu não responder peça para vir alguém me procurar…

Como assim, Tenente? Está tudo bem mesmo? Procurar onde?

─ Nada Meg, besteira minha. Vão logo para a próxima ocorrência que eu encerro o chamado por aqui ─ e desligou o rádio antes que a Sargento Penninck fizesse mais perguntas que não poderiam ser respondidas adequadamente.

A sua frente havia uma crucial decisão a se tomar e ela urgia por ser rápida. Uma criança, o filho da sua amiga, estava em perigo debaixo daquelas ruas e ele era o único que poderia ajudar. Na pior, ou melhor, das hipóteses, uma outra criança travessa, irritada por sua mãe o ter vestido com um casaco quente demais, jogara aquela peça de roupa lá embaixo…

Mas ele precisava agir, tudo porque, infelizmente, sua intuição gritava ao contrário.

Sentindo todos os nervos e músculos do corpo gritarem contra aquela ação estúpida, Rony encaminhou-se para o meio da rua e retirou a pesada tampa do bueiro central dali. Com a lanterna na boca, nem poderia gritar caso algo pegasse seu pé, dedicou um breve olhar para o túnel vertical e estreito que o aguardava, e se pôs a descer os degraus de ferro chumbados contra a argamassa cor de piche.

Suas botinas, cada vez mais imundas – nunca mais se preocuparia em começar a semana lavando elas –, retiniram as barras enferrujadas ao passo que seu corpo se ajustava perfeitamente no buraco estreito disponível para os seus ombros largos. Ao fim daquela claustrofóbica descida, um cano colossal de concreto de mais de dois metros de altura era seu caminho tanto para a direita quanto para esquerda.

O cheiro podre de fezes, urina e todo tipo de dejetos produzido no andar de cima, acertou em cheio o nariz do oficial e embrulhou-lhe o estômago. Rony se esforçou para segurar a rosquinha que havia comido naquela tarde e, com uma mão tapando o nariz, arriscou seus primeiros passos na direção do casaco infantil. Ele era um cego em meio a escuridão daqueles canos, assim como a lanterna era sua bengala, norteando o caminho a frente. Tentou não pisar na água que corria abaixo de seus pés para não levantar mais fedor, mas o percurso estava todo molhado.

O casaco continuava como ele tinha testemunhado da rua… Afogado na sujeira, mas com uma aparência terrivelmente nova, como se tivesse ido parar ali naquela tarde. Por um segundo, ele estudou a possibilidade de pegar a peça e retornar para a casa de Gina. Confirmando com a mãe que a vestimenta pertencia ao filho desaparecido, solicitaria reforços e somente então se embrenharia naquele terror outra vez.

Não, Rony… Alvo pode já não ter muito tempo. Ele pode, inclusive, não ter mais tempo nenhum…

Suas pernas prosseguiram levando-o para os confins do esgoto úmido. Ele deixou o casaco vermelho para trás e rumou em direção a qualquer coisa desconhecida que tivesse esperando na próxima intersecção. A ratazana do pirulito, que deveria ter o tamanho de um gato adulto, olhou diretamente para o homem que invadia sua casa e virou-lhe as costas, pulando na água podre e nadando calmamente a favor da corrente. Rapidamente sumiu na escuridão.

Rony molhou os lábios com a ponta da língua, a lanterna oscilando em sua mão, e a mente oscilando em lembranças empolgantes, lembranças nostálgicas, lembranças aterradoras…

E, subitamente, ele se recordou daquilo que sua falecida mãe lhe contou vinte e um anos atrás. Ela estava sentada no sofá da sala, o rosto encovado e arrasado, como sempre fora depois daquilo que o Rony adulto se referia apenas como ‘o momento X’ em sua família, uma dúzia de roupas suas e dos seus irmãos no colo, para serem remendadas e costuradas. “Os esgotos?” ela perguntou desviando os olhos do bolso da calça furada de Charlie “Por que quer saber dos esgotos?”. Então Rony explicou (mentiu), dizendo se tratar de um trabalho de escola e como seu avô materno fora um funcionário público do saneamento básico de Twinbrook, ela poderia lembrar de alguma coisa.

“Eu não tinha nem completado treze anos quando seu avô morreu, Rony… Mas… Deixe-me ver… Ele sempre falava para os amigos que o trabalho dele não era mais fácil ou menos digno somente porque ficava a semana todo enfiado nos esgotos… Ah! Teve uma vez que ele disse para mim e seus tios sobre como as tubulações foram construídas na cidade. Foi muito antes do século passado, inclusive. O prefeito da cidade trouxe alguns asiáticos para o trabalho… Meu Deus, isso deveria já ser ilegal naquela época… Acho que eram chineses, não me lembro bem, mas eram muitos e foram eles, sob o comando de Rudolph Star que colocaram os esgotos em pé”.

A seguir Rony havia perguntado o que acontecera com os chineses, afinal não era muito fácil ver um asiático pelas ruas da cidade. Foi quando a mãe contou sobre o lado obscuro daquela história. Ninguém soube exatamente o que aconteceu a maioria dos trabalhadores. Num dia eles entravam nos canos para construir e não voltavam mais… O prefeito não tinha muito interesse no paradeiro daquela gente, apenas ‘importava’ mais, conforme a necessidade, e, de toda forma, após quinze anos, a rede ficara pronta.

Mas ainda havia mais um fato curioso que sua mãe, que não sabia muita coisa sobre o trabalho do avô no início daquela conversa, lhe disse:

“O grande problema com os canos dessa cidade é que a prefeitura nem ninguém sabe aonde vai dar. Rodolph Star foi o idealizar original do projeto, porém morreu antes do seu término. As plantas que estavam com ele eram igualmente inúteis, pois a obra precisou sofrer diversos replanejamentos quando foi efetivamente posta em prática debaixo da terra… E, toda vez, que algum prefeito novo tentava levar o pessoal para baixo para mapear o lugar uma pessoa sumia… Em outras palavras, Rony, não ouse descer naquele labirinto com seus amigos. Vocês podem não só ficarem perdidos para sempre… Há doenças, os ratos trazem…”

Molly Weasley não ficaria nada orgulhosa em ver seu filho entrando, e não pela primeira vez, naquelas catacumbas inóspitas, pensou o policial virando para a direita na próxima intersecção.

A circunferência dos canos se tornavam mais estreitas adiante, logo, se ele quisesse percorrer aquele caminho precisaria se abaixar quase a ponto de encostar os joelhos na água suja. Se houvesse a necessidade de correr de volta, tudo seria feito com mais dificuldade e lentidão.

Rony parou alguns segundos, ponderando seus próximos atos. Se ele sentia o medo corroer seus ossos, o que dirá uma criança de sete anos. Ainda poderia haver alguma chance para Alvo e ele jamais teria seu subconsciente em paz se não pudesse comprovar minimamente suas suspeitas.

Irritado consigo mesmo, ele sacou a arma do coldre com a mão direita e manteve a lanterna em riste com a esquerda. O odor de ovo podre acertou em cheio suas narinas, antes protegidas com a mão esquerda que agora ocupava-se do objeto luminoso, e curvou-se para dentro do túnel. Será que eu vou encontrar alguma família chinesa vivendo na próxima curva?

Não exatamente… mas havia algo sim, após outras duas intersecções, uma para direita e outra para a esquerda – não posso esquecer a ordem. Com a respiração suspensa, Rony jogou o facho de luz sobre uma silhueta volumoso a, mais ou menos, dez metros de distância. A coisa tinha pernas, braços, um tronco e estava vestida com calça jeans azul-escuro e camiseta branca. Seu corpo pequeno de criança permanecia inerte atravessando o meio do córrego.

─ Alvoo… ─ o policial chamou o garoto. No silêncio daquele lugar, apenas o gotejar dos canos e os passinhos diabólicos dos ratos responderam.

Rony se encolheu mais, os joelhos finalmente mergulhando na água, para alcançar o corpo do menino num buraco cada vez mais estreito. Um joelho na frente do outro, devagar e apertadamente, avançando, avançando…

─ Alvo ─ enfim ele conseguiu tocar o tornozelo dele ─ Alvo, amigo… É o tio policial, ei…

Por algum tempo ele teve medo de virar o garoto de frente e descobrir o pior. Na verdade, não estava nada preparado para ver o rosto sem vida daquele garotinho. Ele nem queria ser policial no fim das contas… Foram as circunstâncias que o levaram ali. Ele nem deveria morar em Twinbrook mais. Lilá o chamou para irem embora da cidade juntos, mas ele disse ‘não’, havia o pai para cuidar ainda, e ela se revelou sábia o suficiente para abandonar aquele lugar amaldiçoado mesmo que sem o marido.

Ao virar o menino de barriga para cima, Rony sentiu alívio e pânico ao mesmo tempo. Era Alvo sim, mas ele se encontrava terrivelmente pálido, como se todo o sangue tivesse sido drenado de suas veias. Apoiando a lanterna debaixo do braço, conferiu a pulsação no pescoço do pequeno e sentiu, muito superficialmente, sua carótida ejetando sangue para o cérebro.

─ Alvo, Alvo… Acorde rapazinho! ─ sacudiu a criança, que continuava teimosamente desmaiada. Em uma de suas bochechas existia um ferimento pequeno exatamente do tamanho da mordida de um roedor ─ Acorde, garoto.

Mais adiante, na escuridão, Rony achou escutar um ruído que não pertencia a cacofonia de sons corriqueiros do esgoto. Parou de tentar despertar Alvo e mirou a lanterna naquela direção. O barulho de algo raspando contra o concreto vinha viajando pelos canos, ecoando baixinho direto para os ouvidos do oficial.

─ Ah, droga… ─ ele murmurou, o rosto encharcado de suor, pegando o garoto pela cintura. Odeio o escuro, odeio o esgoto, odeio achar que estou ouvindo coisas!

Entretanto, ele não estava delirando. Ao se esgueirar para fora dali com Alvo nos braços, o som a suas costas apenas se tornou mais evidente e familiar.

Tekeli-li! Tekeli-li!”¹ era o que conseguia escutar agora. “Tekeli-li! Tekeli-li” como o barulho de Black Annis duas décadas atrás. O barulho que suas pernas de aracnídeo, cada uma das oito do tamanho de uma porta, produziam quando a caminho de aterrorizá-lo.

Rony começou a sentir a visão embaçar e os músculos da panturrilha fraquejarem. A parte de cima do uniforme de policial colava em suas costas, banhadas de suor, e os cabelos pareciam encharcados após um banho frio.

Tekeli-li! Tekeli-li!”

A arma escorregou da mão esquerda e caiu no córrego produzindo um estrépito angustiante. Ele não parou para pegar, apenas seguiu, as pernas de borracha, tentando se lembrar da ordem das intersecções. Esquerda. Direita. Direita… Lá estava o casaco vermelho.

E lá também estava o mal, exatamente a suas costas, galgando ferozmente pela via erigida por estrangeiros desaparecidos, curioso por reencontrar uma das crianças que quase o matou no passado. Mas esse aí era somente um adulto corpulento e falido, sonhos e esperanças minadas em algum ponto de sua dolorosa jornada rumo ao envelhecimento, a mortalidade pífia dos humanos.

Tekeli-li! Tekeli-li!”

Rony, praticamente correndo, conseguiu enxergar as escadas que o levariam para a rua outra vez. Há apenas poucos passos do primeiro degrau, o rádio preso ao cinto perfurou o vazio sufocante dali com a voz da Sargento Penninck dizendo:

Tenente, tudo bem? Já passou quinze minutos e… ─ Rony deixou Meg falando sozinha e se concentrou na sua subida para a rua. No seu mergulho decisivo para a vida.

Tekeli-li! Tekeli-li!” 

Se ele ousasse olhar para o lado, veria seu maior medo de infância cruzando a última curva para poder pegar ele e a criança fujona, juntos. Como Rony precisava seguir, e com coragem, preferiu não ousar olhar.

O Tenente está por aí…? Ronald, quer que eu mande algum reforço?

Tekeli-li! Tekeli-li! Tekeli-li! Tekeli-li! Tekeli-li! Tekeli-li! Tekeli-li! Tekeli-li! Tekeli-li! Tekeli-li!” 

Mais rápido, Rony! Ou Black Annis vai te alcançar e te matar, e te furar e te trucidar!!!

Ele jogou Alvo para fora primeiro. O corpo do menino caiu molemente de cara no asfalto e, mesmo assim, ele não acordou. O policial veio logo atrás e quando sua botina deixou de tocar o último degrau, pôde ainda sentir um leve roçar no tornozelo seguido de uma exasperação frustrada. 

Em pé, na rua, Rony finalmente encontrou coragem para olhar para baixo, no túnel, e congelou de pavor ao ver Aquilo acenando lá debaixo, alegremente, para ele. Estava muito escuro para definir qualquer forma e ele não se sentia nenhum pouco inclinado a incidir o facho da lanterna naquela direção. Mas ele sabia que era o Palhaço dando um “oi” novamente e anunciando que eles não haviam vencido no passado. Black Annis continuava viva.

Tenente? VOU MANDAR REFORÇOS AGORA…


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Notas finais do capítulo

Notas:

¹Referência extraída de Nas Montanhas da Loucura, 1931, H.P Lovecraft.



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