Amandil - A Senhora da Luz escrita por Elvish Song, LadyAristana


Capítulo 4
Momento de Crise


Notas iniciais do capítulo

Olá! Aqui estamos, com um capítulo grande, e um pouco mais dessa personagem nova e maravilhosa que Sherazade trouxe para a Terra-Média, Lynn Eredir!
Boa leitura!



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— NÃO!!! – Amandil deu um grito de puro desespero – Imrahil, não pode ser verdade!

— Eu a procurei em todos os lugares sobre e sob a terra, Senhora. – declarou o Elenië – O rastro dela é fraco, e conduz para um enorme escudo que bloqueia completamente minha visão. Um escudo extremamente sombrio.

— Não... – A Senhora da Luz dera lugar à mãe em desespero por sua garotinha. Legolas estava igualmente nervoso, mas tentava manter a liderança e não perder a cabeça:

— Imrahil, consegue nos levar ao lugar onde a sentiu pela última vez?

— Não é um lugar, Ada... Não sei explicar... É um lugar tão profundo, que trilha alguma poderia alcançar. Chega quase às... – a voz do imortal se tornou um sussurro – Fundações da Terra.

— Não pode ser! – Amandil se afastou do afilhado e do marido com passos largos, esquivando-se a todos que tentaram retê-la quando correu em direção às amplas portas-janelas do salão principal; saiu para uma das varandas e, antes que alguém pudesse impedi-la, desvaneceu-se em fios de luz que sumiram na noite. Alassë viu o pai dividido entre seguir a esposa ou tentar saber mais sobre o sumiço da filha, e o tranquilizou:

— Eu vou atrás de Nana! Fique com ele e tente saber tudo o que puder. – E assim como a mãe, desfez-se em névoa prateada que desapareceu como uma brisa.

O caos parecia instalado, pois não apenas os jovens Elenië, como todos os moradores da cidade e visitantes se agitavam, transformando o salão num vozerio insuportável; Legolas tentava reunir os jovens, mas sequer os conseguia encontrar, já que a agitação extrema das emoções de tantos Ainur fazia os cristais de luz acenderem e apagarem violentamente, em flashes de luz que cegavam todos; o barulho não permitia que se ouvisse distintamente voz alguma... Até que uma voz feminina se ergueu acima de todas as demais, tão clara e audível quanto se o salão estivesse vazio:

— Silêncio! – não foi um grito. Poderia até mesmo ser um sussurro, mas ecoou tão claramente quanto o mais alto brado. Todos silenciaram e se voltaram na direção da voz, surpresos ao encontrar a gentil Lynn Eredir postada no centro do aposento, sua postura tão autoritária que desencorajaria qualquer contestação – O pânico não ajudará em nada. Silenciem, todos, e que os Elenië se concentrem em controlar suas emoções, antes que a energia neste salão mate alguém. Ninguém vai entrar em pânico! Não temos certeza de nada que aconteceu, e enquanto não tivermos prova do contrário, todos vão agir como se o mundo pretendesse continuar girando porque é isso o que ele fará!

O silêncio reinou absoluto, e o soberano das Florestas Cinzentas lançou um olhar agradecido para a amiga, que lhe estendeu a mão e prosseguiu:

— A festa está encerrada. Os moradores estão dispensados, exceção feita aos Elenië e soldados: seu rei irá lhes falar. – ela sentia as emoções de Legolas como punhais afiados projetando-se para todos os lados, e não era para menos: até onde o elfo sabia, sua filha corria grande perigo, e sua esposa correra em busca-la no Mundo da Luz, expondo-se ao mesmo risco e deixando o esposo para controlar o caos causado pela espantosa notícia. Ainda assim, ele parecia totalmente controlado quando se dirigiu aos poucos que ficaram no salão:

— Pelas informações recebidas de Imrahil, Nerwen está em perigo; diz que ela está nas profundezas da Terra, e sabemos que coisas obscuras espreitam nos abismos do mundo. Contudo, ela é uma Filha das Estrelas, e há a possibilidade de que consiga escapar através do Mundo da Luz; se o fez, a Rainha Amandil e Alassë a encontrarão. Entretanto, se retornarem de mãos vazias, partiremos em busca da Senhora da Vida. – ele se voltou para Thorin III – Thorin, você é o príncipe da caça, nosso melhor guerreiro e rastreador. Liderará a missão junto a Imrahil, que poderá nos indicar a direção quando seus sentidos físicos se fortalecerem um pouco mais.

— Pai, eu tomarei parte nisso – declarou Aeriel.

— Você é muito jovem, filha... – mas a moça não o deixou terminar:

— Jovem é Anáirë! Minha irmã está em algum lugar perigoso, meu pai e noivo vão se arriscar, e eu ficarei aqui? Não mesmo. Sou uma maga habilidosa, e Thorin pode dizer que estou mais do que habilitada como guerreira. – o monarca arqueou as sobrancelhas e suspirou:

— Se desobedecer às ordens durante a busca, retornará imediatamente para casa. – ela ia dizer algo mais, mas o pai não permitiu. Agora não falava como pai, mas como seu rei – Tauriel, Kili, Lorde Thranduil e Lady Aireen, precisarei que mantenham a ordem aqui, enquanto tomo parte nesta procura. – o quarteto anuiu, nem pensando em discutir naquele momento – Melian, Thorin precisará de uma caçadora igualmente habilidosa para ajuda-lo.

— Posso buscar por sinais de Nerwen no reino das águas, meu senhor – ofereceu-se Celebrían – caso ela tenha escapado em forma física.

— Faça isso, e reporte os resultados. – a dama se desfez em luz azul-esverdeada, e o elfo continuou – Aos demais, peço que façam todo o possível para manter a ordem e a paz. Evitem que os boatos se espalhem, amenizem as eventuais consequências . – finalmente, dirigiu-se a Lynn – o que pretende fazer, minha dama? Não me atrevo a dar ordens à Peregrina.

— Irei com vocês. – declarou Eredir – já estive no Abismo, antes, e isso pode ser uma vantagem, se realmente precisarmos descer tão fundo para encontra-la.

— Assim será. – concordou Legolas – Jovens, estão dispensados. Descansem e se preparem: se alguém tiver algo a dizer, faça-o em particular. – e para seus pais, irmã e cunhado – Temos muito o que tratar.

O grupo se dispersou, restando apenas seis pessoas no salão; iam seguindo para o escritório de Legolas quando Lynn pousou a mão em seu ombro:

— Meu amigo, há algo que preciso fazer, antes de partirmos.

— Não sabemos se teremos de partir, sabemos? – o olhar da Trovadora foi tudo de que precisou para saber que sim, teriam de empreender aquela busca. – Boa sorte no que quer que tenha de fazer, minha dama, e que a luz a proteja.

— A você também, meu rei. – ela se despediu do quinteto e, como era usual à dama, de repente já não estava mais sequer na  cidade, cavalgando para longe enquanto o rei e seus familiares tomavam decisões importantes para a manutenção das Florestas durante a ausência de seus soberanos.

*

Quase uma semana se passara, e nenhum sinal de Nerwen, Amandil ou Alassë fora encontrado, em todo aquele tempo. Imrahil tornara a fazer buscas, tentando se familiarizar com direções e distâncias - coisas que perdiam o sentido quando estava simplesmente fundido a seu elemento – e traçara um mapa da região em que sentira a outra Elenië pela última vez. Celebrían buscara nas águas doces e salgadas, mas não obtivera sucesso algum... E o coração de Legolas apertava-se cada vez mais; por duas vezes, ao se ver finalmente sozinho em seu quarto, ele chorara debruçado sobre a mesa onde Amandil costumava se sentar para desenhar ou escrever cartas, ler e bordar... Onde estariam suas filhas e sua esposa? Teria ele as perdido?

Na sétima noite, batidas suaves ecoaram à porta, e Thranduil entrou no quarto do filho, que de imediato se levantou, mas foi tranquilizado pelo outro elfo:

— Não estou aqui como seu administrador, mas como seu pai. – abaixou-se ao lado do filho e o abraçou – Vejo o quão dilacerado está seu coração, meu filho.

— Foi assim que se sentiu quando perdeu minha mãe, Ada? – perguntou o moço, as lágrimas correndo contra sua vontade – Essa... Esse vazio, como se houvessem arrancado seu coração? Essa dor que me faz querer gritar incessantemente? – ele voltou os olhos para os céus – Procuro por ela, por qualquer sinal... E não há nada. Nunca deixei de senti-la, a não ser quando... Quando se jogou na Montanha da Perdição. – ele cerrou os olhos com força – Não, não! Não posso perdê-las! Não posso perder nenhuma delas!

— Legolas, escute. – Thranduil segurou o filho pelos ombros – Sei exatamente como está se sentindo, pois foi o que senti quando sua mãe foi morta. Mas Amandil NÃO está morta. Certamente desceu até os limites do Abismo para procurar Nerwen, e por isso você não a sente, mas se a Senhora da Luz houvesse morrido, acredite, nós sberíamos. Ela está viva. Viva, e voltará logo; você precisa estar forte para ampará-la, pois estará num estado lastimável, se não houver encontrado Nerwen.

— Nerwen é minha filha, pai! Como posso ficar forte quando...

— Precisa ser forte, exatamente porque ela é sua filha. Porque estar lúcido é a única chance de encontra-la.

O elfo mais jovem ainda chorou por algum tempo, mas o abraço do pai o confortava; Thranduil sabia exatamente o que dizer e fazer, pois passara pela mesma dor do filho. Ah, sim, ele daria a própria alma se isso poupasse Legolas de tamanha dor, mas não podia fazer nada além de ampará-lo e mantê-lo firme.

Ficaram sentados lado a lado por algum tempo, quando um grande clarão iluminou os céus, vindo do observatório; como um raio a dupla se colocou em pé, com uma exclamação em uníssono:

— Amandil! – Thranduil se virou e correu para fora, mas seu filho já se lançava escadaria acima, buscando os corredores superiores que o levariam direto à torre.

Ao abrir a porta para o lado externo do observatório, o elfo paralisou por um segundo ao ver sua esposa:  sentada no chão, tinha olheiras profundas e escuras, o rosto macilento de exaustão. A respiração parecia ofegante, mas ele logo compreendeu que ela soluçava em pranto; Alassë tinha o rosto tão cansado e abatido quanto o da mãe, os olhos injetados de sono, mas ainda assim ajoelhava-se ao lado de Amandil e tentava consolá-la.

— Amandil, Alassë! – ele envolveu ambas nos braços, mas a filha se esquivou:

— Pai, cuide de mamãe primeiro: ela está péssima!

— O que houve, menina, por Erú? – perguntou Aireen, que saiu logo em seguida, pelo visto também avisada pelo clarão.

— Nós vasculhamos TODO o Reino da Luz, tudo o que as estrelas tocam, e não havia sinal dela... – explicou Alassë, amparando-se nos avós para ficar em pé nas pernas trêmulas – Então tentamos onde a luz não chegava. Talvez Imrahil houvesse deixado passar algo, talvez o laço de sangue nos levasse até ela... Mas foi infrutífero. Não tínhamos parado por nada, e o rastro dela estava tão fraco que... Nana queria continuar, mas eu a trouxe de volta. Nerwen está num lugar mais profundo do que podemos alcançar, pelo menos em nossas formas incorpóreas.

— Meus Valar... – Thranduil sabia que isso significava um enorme perigo, não apenas para a neta, mas para toda a Terra-Média, que poderia ser lançada num inverno de décadas se a Herdeira de Yavanna fosse destruída! Porém, primeiro tinham de cuidar de Amandil, cuja debilidade física devido à exaustão era infinitamente menor do que as feridas emocionais. Legolas a erguera nos braços e sussurrava baixinho:

— Está tudo bem, meu amor: veja, o mundo ainda floresce, os animais e plantas agem normalmente. Não estariam assim se Nerwen estivesse ferida. Ela está bem. Ela ficará bem, e nós a encontraremos, eu lhe prometo. – sempre falando baixinho com sua amada, levou-a para a enfermaria, para Arwen e Varniel, que cuidariam de sua filha exausta e sua esposa emocionalmente destruída. E como culpar Amandil, quando ele próprio navegava em um oceano de dor, pela possível perda de Nerwen?

*

Segurar as rédeas de Arissan doía como o inferno, mas Lynn continuou. A égua baia se remexia em desconforto pela situação da dona, mas a Peregrina fez um afago doloroso no pescoço de sua companheira.

— Está tudo bem menina. Já estamos chegando. - Avistou aliviada um dos pináculos de cristal do Palácio das Luzes. Com toda a dor que sentia, não teve tempo de repreender a si mesma pela sensação de lar que a envolveu quando avistou o lugar onde estavam aqueles a quem amava.

Arissan relinchou desconfortável, mas Lynn sabia que não era por conta de si, e sim por outra pessoa.

— Nerwen ficará bem, Arissan. - falou a Peregrina. - Depois do que fizemos, tenho certeza de que ela logo estará... A salvo.

"A salvo". A expressão doía, pois dizer que a Senhora da Vida ficaria a salvo implicava que ela estivesse em perigo. E a Senhora do Norte passava mal só de pensar em qualquer um daqueles jovens Elenië em perigo.

Conhecia cada um deles desde o nascimento, sabia o nome e o rosto de cada um, e os amava como se fossem seus... Sobrinhos. Era o que poderia admitir. Aqueles a quem amara como filhos haviam-lhe sido tirados há várias Eras da forma mais cruel possível.

Mas não era hora de pensar naquilo. Não quando suas mãos doíam tanto. Poderia desmaiar com aquela dor. Mas deveria ser forte, pelo bem da afilhada, pelo bem da melhor amiga, pelo bem de toda Eä. Precisava chegar ao palácio o quanto antes e se curar o mais rapidamente possível.

Mas suas mãos doíam. E doíam tanto! A Peregrina das Montanhas poderia apenas parar um pouquinho, deitar naquela relva macia, fechar seus olhos só por um minutinho, só até que aquela dor terrível se amenizasse...

Um cavalo subitamente emparelhou com Arissan, e a moça percebeu que saíra completamente da estrada quando uma mão forte agarrou as rédeas de sua montaria e interrompeu o galope, a voz de Anárion parecendo vir de muito longe:

— Calma, calma! Arissan, quieta!

Lynn piscou confusa. Sentia-se muito leve. Muito distante. Talvez estivesse desmaiando. Com aquela dor excruciante, não seria surpresa.

— Anárion? - perguntou Eredir debilmente. Sentia tanto sono...

O trovador anuiu e, vendo a aparência esgotada da mulher, desmontou: para seu espanto viu que as mãos da moça estavam envoltas em faixas ensanguentadas que já começavam a pingar, encharcadas:

 – Pelos Valar, Eredir, o que você fez?! – ela gemeu baixinho e tentou descer do cavalo, quase caindo – Espere – com um salto hábil ele passou para a garupa de Arissan e tomou as rédeas das mãos da Trovadora – Vamos, temos de levá-la à enfermaria. Não quero tirar essas faixas sem algo para deter o sangue. – Ele bateu os calcanhares na barriga da égua e abraçou Lynn com força. Seu coração se apertava em sentir o cheiro do sangue dela, e quando a cabeça da moça pendeu contra seu ombro, percebeu que adormecera. Estava com um aspecto tão cansado e vulnerável! Ele nunca a vira daquele jeito, e tudo o que desejava era embalá-la em seus braços e protegê-la de tudo e de todos!

Desmontou nos estábulos, onde deixou os cavalos sob os cuidados de Thorin, e levou Eredir para a enfermaria, onde Arwen, Varniel e Alassë – já recuperada da viagem – cuidavam de Amandil. Ao verem o estado da Peregrina, a senhora da cura exclamou:

— Pelo Abismo, o que está havendo aqui?! Hoje é o dia dos elfos antigos tentarem se matar?

— O que quer dizer? - quetionou o menestrel.

— Amandil emocionalmente destruída, Tauriel e Thranduil tiveram uma discussão feia e quase mataram um ao outro com as espadas, e agora Lynn chega nessas condições! – respondeu Arwen – O que estão tentando fazer?!

— Lynn está exausta. – explicou o mago – Parece que a energia vital dela foi extremamente consumida por algo, e essas faixas... Não sei o que houve com as mãos dela.

— Consegue remover as faixas? – perguntou Alassë, reunindo material para ser esterilizado – Vou reunir material para cuidar dela, e levar isso aqui para ferver.  – ante a anuência do amigo, a elfa deixou o lugar, e o mago se dedicou a remover o tecido que se colara à pele...

Lynn sentiu algo a puxar de volta da escuridão, e quando acordou, aquela dor excruciante voltou com toda a força; apesar de sua personalidade contida, a Trovadora de Lugar Nenhum gritou de agonia.

— Shhh, estou aqui, Lynn. – sussurrou Anárion, passando um pano úmido na testa suja de terra da mulher – Dói, mas será breve. – ele molhou as faixas e procurou descola-las da pele esfolada, fazendo uma careta ao ver o modo como as belas mãos da dama estavam em carne-viva. Estremeceu ao sentir a mão de Varniel em seu ombro:

— Está branco como pergaminho, Anárion! Deixe-me terminar isso. – ela assumiu a tarefa, enquanto ele apenas ficava ao lado de Lynn, acariciando seus cabelos e confortando-a quando a moça gemia ou gritava de dor.

— Amandil! - chamou a Peregrina em desespero. - Onde está Amandil? Preciso ver Amandil!

A dor nublava seus pensamentos e era como se a carne de suas mãos estivesse sendo arrancada dos ossos.

Lágrimas deslizaram dos olhos cinzentos enquanto ela berrava novamente. Em algum lugar no fundo de sua mente, a Trovadora sabia que pessoas já haviam passado por coisas muito piores, mas a dor reprimia qualquer pensamento racional, ao ponto em que existiam apenas Lynn e a dor.

— Erú! - ela clamou em absoluto desespero. - Erú, veja graça em mim!

Soluços estrangularam o próximo grito enquanto mais lágrimas banhavam sua face em choro descontrolado.

Por que? perguntou-se. Porque me submeti a uma dor como essa?

A resposta veio fácil. Era a imagem de uma menininha inquieta, alegre e cheia de vida, com os cabelos da cor do outono desgrenhados e cheios de fragmentos de folhas secas, estendendo-lhe uma coroa trançada de margaridas e flores de verbena lilás a chamando de "tia Lynn". Nerwen. Por sua afilhada se submetera àquela dor.

Anárion deitava sua fronte contra a de Lynn, em desespero, murmurando canções para acalmá-la, dizendo-lhe que estava tudo bem, que tudo ficaria bem, usando do tom hipnótico de sua voz para reduzir a dor. Porém, reduzi-la era tudo o que podia fazer, já que a extensão das feridas não era apenas física.

Finalmente haviam terminado de limpar as feridas, cheias de terra e queimaduras feitas por artes mágicas – no que Eredir se metera?! – e Alassë pôde enfim iniciar o tratamento, ainda que seu coração se apertasse ao ver todo o sofrimento da tia. Céus, o que ela havia feito?! Como conseguira ferimentos tão terríveis?! Teve primeiro de atravessar camadas e mais camadas de bloqueios mágicos, como se a moça houvesse sido alvo de alguma maldição corrosiva, que continuava agredindo a carne e lutava contra a cura. Felizmente, a Elenië não teve grande dificuldade em vencer as barreiras, que pareciam ser minadas pela própria força da elfa trovadora. Mas quando começou a reconstituir os músculos e pele, os gritos de Lynn teriam sido suficientes para acordar os mortos, e Alassë exclamou:

— Anárion, hipnotize-a!

— O que acha que estou fazendo? – o mago praguejou - Mas ela luta contra a hipnose, e não tenho como ir mais fundo em sua mente sem ferir as barreiras de Lynn!

Apenas semiconsciente, parcialmente hipnotizada, a Peregrina sentia como se estivesse se afogando, desesperada pela consciência e, ao mesmo tempo, tentando fugir dela para escapar à dor lancinante. Os encantos de proteção que tivera de romper cobravam seu preço, o que provocava as dores lancinantes a qualquer tentativa de cura.

Debatia-se em desespero, perdida entre a luz e a sombra, a sanidade e a loucura, lançada de um lado para outro nas vagas da própria mente, quando sentiu um ponto firme no qual se apoiar, como uma mão firme a segurá-la. Agarrou-se a esse apoio com todas as suas forças, e ouviu a voz de Anárion:

— Lynn, por favor, eu posso isolar a dor, mas você precisa me deixar tocar mais fundo em sua mente. Erga as barreiras, Lynn, por favor, ou a dor acabará te matando!

Ela hesitou e recuou, fugindo do contato com o mago: não podia erguer suas barreiras e ter certeza de que todos os seus segredos seriam mantidos! Mas sabia, também, que estava no limite do que podia suportar... Precisaria confiar no mago... Confiar que ele não avançaria mais do que o estritamente necessário para protegê-la.

— Erguerei minhas barreiras... Mas não avance além do véu das lembranças, Anárion, por favor. – sentiu a confirmação do jovem, e então baixou os escudos mentais que mantinha tão bem cerrados. O toque profundo da mente do Elenië foi como água fria aplicada sobre uma queimadura, trazendo alívio e serenidade, aquietando o mar revolto que haviam sido as sensações e pensamentos da Trovadora até aquele momento. E como prometido, ele circundava a zona mais interna, que guardava memórias importantes, chegava a tangenciá-la, mas não a invadia; ao contrário, colocou ao redor dela um escudo próprio, definindo limites para si mesmo. Ah, como poderia agradecê-lo por isso? Por ser tão leal, tão digno? E, principalmente, por fazer algo que expunha a ela muito da mente do próprio mago: ao contrário do que aparentava externamente com seus risos e galanteios para toda jovem de bela aparência, o bardo era um homem sensato e sábio, de pensamentos profundos e alma bondosa, porém firme.

Alassë suspirou com alívio quando viu a paciente se acalmar e parar de gritar; Anárion tinha a fronte pousada contra a da Peregrina, cantando baixinho para manter o elo entre suas mentes e acalmá-la no processo de cura, que agora ia acelerado. Sob as mãos da Filha das Estrelas, as mãos esfoladas quase até os ossos já refaziam a camada de pele, a qual crescia depressa e se fechava sem cicatrizes.

Enquanto isso, a Peregrina vagava errante dentro da própria mente; podia sentir Anárion dentro da própria cabeça e, estranhamente, a sensação não a incomodava. Pelo contrário. De alguma forma parecia... Como se uma peça tivesse sido encaixada em um lugar vazio.

Um alívio espalhou-se aos poucos pela mente da Peregrina e conforme seu cérebro voltava a pensar racionalmente, ela sentiu a dúvida que não saia da mente do jovem mago.

O que aconteceu? Quem poderia cometer tamanha atrocidade a uma criatura tão doce?

Puxou um último fio de sua magia para criar um lugar onde pudesse conversar com ele. A criação daquele jardim foi quase inconsciente. Ela sabia que lugar era aquele. Era o lugar onde ela brincava com os pais quando era quase pequena demais para se lembrar.

 - Ninguém fez isso comigo, Anárion. - declarou Eredir, e a silhueta do mago virou-se para encará-la.

Ela estava mais linda do que ele jamais imaginara, vestindo um longo vestido dourado, um diadema de ramos e pela primeira vez, os lábios pintados de vermelho. O mago engasgou com a visão da dama e ela deu um sorriso leve.

— Menestrel bobo! Eu nunca deixaria alguém fazer isso comigo! - ela falou com um traço de deboche carinhoso na voz. - Eu fiz isso comigo mesma, Anárion. Eu... Eu causei as feridas em minhas mãos.

O mago não podia realmente acreditar no que ouvia.

— Fez isso consigo... Lynn, não estou entendendo! - ele falou agoniado. - O que seria importante o suficiente para te fazer... Lynn, você quase arrancou as próprias mãos!

Ela sentiu a verdadeira preocupação dele. Se ela fizera aquilo consigo mesma por alguém. Não qualquer alguém. Por um homem. Se amava algum homem o bastante para se ferir tão gravemente.

— Pelo bem de Nerwen e Amandil, eu arrancaria um braço ou uma perna sem pensar duas vezes. - declarou determinada. - Aquilo que fui buscar no Norte poderia ter me cobrado muito mais que minhas mãos. E eu não me importaria se o custo para que minha afilhada e sua família estivessem seguros fosse a minha vida. Eu a daria livremente.

Anárion piscou rápido para espantar algumas lágrimas inconvenientes que se acumularam em seus olhos, e deu um sorriso tímido:

— Bem, Alassë conseguiu deixar suas mãos em ordem... Mas vai precisar de repouso.

— É claro... - ela baixou os olhos, sem saber bem o que dizer - Obrigada.

— Pelo quê? - o mago não entendia: fora ELA quem quase perdera as mãos para ajudar Nerwen e Amandil, e era a ELE que a elfa agradecia?

— Por ficar ao meu lado... Por não desistir de me ajudar, mesmo quando meus escudos o mantinham fora de minha mente.

— Eu não poderia fazer de outro modo, Lynn.

A dama se sentiu enternecer, mas tratou de não alimentar esperanças: aquelaa palavras poderiam significar simplesmente que ele não deixaria pessoa alguma passar por algo assim sem ajuda.

"Não se iluda, Lynn. Ele é seu amigo, apenas isso."

Entretanto, um lado dela acreditava fortemente no contrário... Um lado que se apegava ao medo que o menestrel demonstrara de que ela amasse outro. E por que ele teria tal receio, se não... Ah, não, não e não, Lynn! Já estava velha demais para se entregar a devaneios amorosos como uma adolescente! Para ela, essas coisas já tinham passado! E Anárion era só um menino!! Bem, é claro que, com dois mil e seiscentos anos, já era plenamente adulto, mas ainda assim... Perto dela, era apenas um bebê! Mas que droga, por que ainda pensava nisso?

— Algum problema, minha dama? - perguntou o mago, aproximando-se um pouco da elfa, que saiu de seu devaneio. Sentaram-se lado a lado num banco do jardim - Que lugar é esse?

— Um santuário, guardado em minhas lembranças.

— É lindo. - ele sorriu e enrolou os dedos numa mecha de cabelos dela, ajeitando-a para trás - Dizem que os santuários da alma são o espelho desta... Mas eu não precisava vê-lo para saber que Lynn Eredir tem um coração cuja pureza faz o brilho das estrelas se envergonhar e sentir indigno de tocá-la.

Lynn corou como uma garotinha: não sabia como reagir a tamanha proximidade, especialmente porque o jovem, ao contrário do habitual, não a estava provocando, irritando, desafiando ou flertando. Estava sendo sincero... E isso a perturbava. Ele se expunha, mas ela não se sentia pronta para fazer o mesmo. Mesmo se quisesse, não era hora para isso.

— Por que tão quieta, senhora? - ele estava tão perto, agora!! Perto demais! Em um movimento rápido, e como se dançasse, Lynn rodopiou para longe e disfarçou seu desconforto com um sorriso.

— Mago bobinho! Venha! Vou lhe mostrar o jardim! - ela falou colhendo uma flor de verbena lilás, sua favorita. - Tem tantas flores aqui que eu mal posso contar. Mas a maioria é exótica. Flores normais não nascem no Norte pois é muito frio. Minhas preferidas são...

— Verbena e cerejeira. - respondeu Anárion na ponta da língua e a Peregrina não pode deixar de se enternecer. - E uma flor misteriosa, da qual nunca diz o nome, que nascia apenas no lugar de onde veio.

— Você se lembra! – sorriu a maga.

— Posso citar cada palavra que já me disse desde a primeira vez em que nos encontramos. – disse Anárion, com um leve sorriso divertido – Sua primeira frase para mim foi: 'com sua licença, tenho mais a fazer do que ouvir galanteios de um menino que mal deixou as fraldas'.

— Não me culpe – ela riu e corou mais ainda – Perguntar se eu havia me machucado ao cair dos céus, porque era bela como uma estrela? Uma dessas é quase um insulto!

— Certamente eu não perguntaria se arranhou os joelhos ao escalar do inferno. Essa reservo unicamente para Aeriel. - respondeu Anárion.

— Eu me pergunto como ainda tem alguma sensibilidade em suas partes baixas, depois daquele chute, meu caro! - falou Lynn erguendo uma sobrancelha e com um brilho travesso no olhar.

— Não se pergunte, minha senhora. Estou certo de que foi a primeira a não cair em meus encantos. - retrucou o menestrel voltando ao seu ar debochado de sempre.

— O olho roxo que recebeu da mais nova de minhas 'sobrinhas' diz o contrário! - devolveu a Peregrina das Montanhas. – ela riu de novo – Um esquecimento desses não é digno de sua memória prodigiosa de mago.

— Algumas coisas nós preferimos esquecer. – rebateu o bardo, e segurou delicadamente a mão de Lynn, beijando os dedos delicados – Outras, desejamos guardar para a eternidade.

— Mago bobinho! Está me fazendo corar! - reclamou a elfa, quase roxa de constrangimento.

— Não posso evitar, minha cara. Fica ainda mais bela corada. Faz vergonha a cada flor desse santuário." declarou galante. - É um desafio para a natureza equiparar-se à minha senhora. Jamais vi um lugar que pudesse ofuscá-la. - não havia deboche na voz dele, quando se inclinou suavemente em direção à moça, a mão apenas tocando levemente seu rosto, sem impedi-la de se afastar, se quisesse, mas desejando ardentemente que não o fizesse.

— Mago bobinho e abusado! Fico envergonhada! - sussurrou Lynn, adquirindo cor semelhante às flores de verbena rosa que coloriam uma treliça atrás da moça, mescladas a suas irmãs de cor lilás. Eredir não fez muita questão de afastar-se. Era um momento bom demais para ser perdido com suas preocupações bobas a respeito de amor. Ela já perdera momentos demais. Não perderia aquele. - Não se apaixone por mim, Anárion. Eu sempre acabarei sumindo como névoa ao sol em algum momento.

— Então, devo apreciar este momento comi o faço com a névoa de prata que recobre os campos, guardando-o bem fundo em meu coração - rebateu o bardo, passando um braço delicadamente pela cintura da moça, a outra mão empalmando seu rosto. Acariciou os lábios rubros com o polegar, gravando na memória cada detalhe do rosto adorado antes de, finalmente, unir seus lábios aos dela.

No começo um tímido toque de lábios, intensificou-se quando a elfa se segurou aos ombros do bardo, correspondendo com total entrega, aprofundando ainda mais o beijo pelo qual tanto ansiara e que, no segredo de suas mentes, podia acontecer sem receios.

Podia ter durado um segundo ou uma eternidade, e mesmo depois de separarem seus lábios continuaram abraçados, frontes unidas, apenas embalados pelo momento único. Finalmente, o dever chamou Eredir de volta ao controle se seus sentimentos:

— Anárion... Precisamos voltar. Amandil precisa de nós.

A compreensão logo encobriu o mínino momento de frustração quando ele concordou:

— Sim. Ela e Nerwen precisam de nós. - tudo começou a desvanecer enquanto o elo de suas mentes era rompido, mas Lynn quase tinha certeza de ter visto uma única lágrima rolar pelo rosto do trovador, antes de sua imagem desaparecer.

A luz inundou o campo de visão de Anárion, que piscou e percebeu estar acordado quandi a viz de Arwen chegou até seus ouvidos:

— Sente devagar. Entrar na mente de Lynn é uma pequena proeza, você deve estar tonto.

"Completamente." pensou o mago "Mas não pelo motivo que pensa, minha amiga".

Então ele fitou a Peregrina, que despertava e se sentava no leito... Lembrou-se das palavras dela: "não se apaixone por mim", e só conseguiu pensar que o aviso viera tarde demais. Talvez muitos séculos atrasado.

Foi arrancado de seus pensamentos por alguém passando ao seu lado como um tufão: Amandil se aproximou da amiga e a abraçou, ajudando-a a se colocar em pé.

— Lynn, como você está? Ah, perdoe-me não ter conseguido levantar antes, tive de lutar contra um dos sedativos de Alassë.

— Está tudo bem, Aman - respondeu a trovadora, rouca de tanto gritar - Agora estou bem. - ela olhou por um breve momento para Anárion, mas desviou o rosto antes que seu rubor a denunciasse. O fato não passou despercebido a Amandil que, contudo, não seria indiscreta de comentar o fato.

— Nana - bronqueou Alassë - O QUE está fazendo acordada?! Você tomou duas doses de Noite Profunda!! Derrubaria até um olifante!

— Nem que houvesse me dado dez doses eu deixaria de acordar ao sentir o sofrimento de Lynn. - declarou a rainha - Mesmo que tenha levado uns minutos para ficar em pé.

Eredir sorriu ante a demonstração de amor da amiga - conhecia bem os efeitos das poções da sobrinha - que ainda estava claramente trôpega. Cuidadosa, amparou a outra:

— Eu já estou bem, graças a nossos jovens habilidosos, mas você realmente devua sentar, antes de tropeçar em si mesma. Recomponha-se, e depois precisaremos conversar, está bem?

— Eu estou bem - insistiu Amandil, mas sua própria voz arrastada deixava claro que estava parcialmente dopada. Assim, Anárion e Arwen a fizeram se deitar, enquanto Alassë terminava de avaliar Lynn, constatando uma total recuperação.

— Tente não exagerar nos movimentos hoje, tia. A pele está intacta, mas talvez os nervos fiquem doloridos. - os olhos profundos da moça fitaram os da elfa mais velha - Vou querer saber que encantos eram aqueles?

— Não. - o tom de Eredir era levemente sombrio - não vai.

— Suspeitei. - a Elenië olhou para a mãe, que lutava contra o sono - Mãe, não lute. Durma, e quando acordar poderá falar com Tia Lynn. - mas ao final da frase a poção cumprira seu trabalho e enviara a rainha de volta ao mundo dos sonhos. Pois se Lynn estava bem, Amandil não tinha motivação forte o suficiente para superar os efeitos do medicamento, e agora dormia como um bebê.

Varniel se adiantou e segurou oa ombros de "Tia Lynn":

— Você precisa tirar o sangue e pó do corpo, colocar roupas limpas e dormir um pouco. Venha: vou cuidar de você.

A Trovadora, ainda exausta, acompanhou a sobrinha; antes de sair da enfermaria, porém, lançou um olhar breve para Anárion, e não precisaram de palavras. Talvez não houvesse nada a dizer.


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Notas finais do capítulo

É, as coisas estão feias. Alguém arrisca imaginar onde está Nerwen?

Deixem reviews!
Kisses



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