Vollfeit - Diellors e ihenes escrita por Kaonashi


Capítulo 20
Capítulo 20




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Capítulo 20

Merlin

 

— Então se entendi direito… Você não se lembra de nada, nada mesmo…?

Merlin, encostado na mesa repleta de frascos e ervas, encarava-a ainda descrente.

— E você, vocês - apontou para Kyprios e Eslin, sentados ali perto e conversando em tom baixo com Gaius, o tutor do rapaz. - São espiões de Vollfeit?

Neri concordou com a cabeça, sorrindo fracamente. Contara sobre quase tudo ao jovem, de suas memórias perdidas à situação intensa de Vollfeit. Segundo Kyprios, Merlin não fazia ideia de que ela estava em missão na primeira vez em que visitara o reino. Como se conheceram? Ou por que Merlin era tão amigável com ela? Sofria para conter toda aquela curiosidade dentro de seu peito.

— Isso explica muita coisa - desviou os olhos, agora pensativos, para a parede e sorriu satisfeito. - Acho que já li sobre a magia em memórias antes - ele disse pensativo. - Vou pesquisar nos livros da biblioteca, e se não achar… Tenho acesso a do castelo - deu um sorriso maroto.

— Obrigada - disse um tanto aliviada, mas com certa apreensão causada pela segunda frase.

O jovem era mais simples do que Neri havia imaginado. Com tanto poder - que era ocultado -, ainda se mostrava uma pessoa sem grandes ambições. Era mais simpático e engraçado que o garoto que criara em sua mente antes. E tinha o fato de que ele também conhecia a magia que Neri presenciara na rua, com o jovem das flores. Ele sabia usá-la e poderia ensiná-la - provavelmente pela segunda vez, já que… Balançou levemente a cabeça, afastando o pensamento incômodo. Não deveria se importar mais com aquilo; suas memórias foram perdidas, deixadas no passado. Agora, no presente, ela tinha uma magia desconhecida e aparentemente incrível ao seu redor para ser estudada. Uma extremamente incrível.

Olhou para Merlin mais uma vez e tentou adivinhar como o havia conhecido - e como descobrira sobre seus magníficos poderes. Era verdade que, através dos olhos azuis do garoto, Neri conseguia sentir algo muito mais profundo, cheio de força e poder. Ela passara sua adolescência observando, das sombras, as pessoas, criando uma habilidade útil de quase sempre prever - ou entender - as ações de alguém. E como acontecia quando olhava para Eslin, sentia a magia lá no fundo de Merlin. Talvez ela tivesse descoberto só por observá-lo?

— Que pena, foi uma tarde divertida quando enganamos o Arthur com um rato falante… - o garoto a despertou.

— O príncipe? - questionou apreensiva; ainda não tinha memorizado todos os nomes importantes de Camelot que Merlin citara.

— Sim. Você quis invadir o castelo pra ver se era realmente habilidosa. Então quando conseguiu, fomos pregar uma… Brincadeira nele - cantarolou.

As sobrancelhas femininas se arquearam em surpresa e receio. Podia não respeitar mais os reis de Vollfeit, mas agora estavam falando das majestades de Camelot. Merlin riu, divertindo-se.

— Nada aconteceu, não se preocupe. Arthur achou que estava sonhando e voltou a dormir.

Suspirou, não sabia se de alívio ou decepção. O que mais teria causado em Camelot? Mas, no fundo, não deixava de se animar ao pensar nas chances que ganhara ali, em contato com pessoas mais fortes que as de Vollfeit.

— Ainda não jantaram, né? - Merlin se ajeitou, apontando para a porta. - Vamos, levarei vocês pra comerem, por minha conta!

Como dito, o rapaz os levou até um pouco antes do centro do vilarejo, numa taberna tranquila no meio de casas de madeira. Pediu jarras de suco, vinho e panelas cheias de carne, com molhos encorpados e cheiro adocicado. O vinho ficou parado - nem mesmo Gaius, já com cabelos brancos, parecera interessado na bebida -, porém as carnes, acompanhadas por pães crocantes e pimenta, foram lentamente devoradas pelo grupo.

Neri estava doida para questionar Merlin sobre a magia de Camelot, mas não queria soar inconveniente ou interesseira. Ela deveria aguardar por uma oportunidade.

— Já provei isso antes? - Neri perguntou. Estava encantada pela maciez e bom tempero do frango.

— Você disse que nunca mais pararia de comer - Merlin respondeu com um sorriso. - Também tem um bolinho que vendem de tardezinha, de creme… Ganhou uma fã devota.

Neri sorriu, realmente se imaginava gastando seu saco inteiro de moedas nos ditos bolinhos. Depois voltou sua atenção ao jantar, acabando com o conteúdo de uma pequena tigela com sopa. Terminou sua refeição primeiro e aguardou os outros, que finalizaram após mais um prato de arroz temperado. Era desafiador manter o silêncio enquanto um mundo novo, repleto de magia, existia ao mesmo tempo que ela.

Merlin então os guiou até uma casa de hospedagem quando questionado; não queriam ocupar o pouco espaço livre na casa do garoto, embora tivessem sido convidados com teimosia. Afinal, tinham ouro suficiente para um mês de aluguel, evitando qualquer problema para o rapaz e seu tutor.

— Vocês ficarão realmente bem aqui? - Merlin proferiu um tanto magoado. - Sério, não me importo de dormir na poltrona - e sorriu.

— Ficaremos bem - Neri respondeu amigavelmente. - Obrigada pelo jantar, Merlin.

— Sabem onde moro caso qualquer coisa aconteça - piscou o olho e acenou, afastando-se. - Adeus, senhores!

Esperaram ele e Gaius sumirem antes de entrarem no edifício de janelas enfileiradas em suas frentes. Dentro algumas pessoas aproveitavam o calor da lareira, larga e cinza, estiradas em poltronas magras espalhadas no grande salão. Num canto, ao lado de uma escada de madeira, uma senhora de cabelos presos num coque lia um jornal atrás de sua bancada.

— Boa noite - Kyprios se aproximou. - Tem dois quartos vagos?

— Pra quanto tempo? - disse sem tirar os olhos do papel.

— Um mês - respondeu após encarar Neri sem certeza.

A mulher se virou para trás, onde várias garrinhas de metal seguravam chaves, e pegou as marcadas pelos números dez e onze.

— Trinta moedas por dia, almoço pago e um banho por dia - entregou-os. - Tenham uma boa estadia - e voltou a ler.

Kyprios deu uma chave à Neri e, juntos, subiram para o primeiro andar, e depois para o segundo. Lá encontraram seus quartos no final do corredor. Poderiam ter escolhido um quarto para Eslin também, mas inúmeros fatores - como maiores despesas e um inimigo sozinho - não os aconselhavam a isso.

— Até amanhã, boa noite - o espião se despediu, girando sua chave na porta e entrando.

Neri retribuiu a frase e o imitou, destrancando seu novo dormitório. Queria conversar com Eslin como na outra noite, mas não tinha nenhum motivo real para isso - não que comer bolinhos de queijo fosse um.

— Até amanhã - fitou-o sorrindo antes de entrar.

A resposta do garoto a alcançou antes de fechar a porta e ouvir a do lado fazer o mesmo. O cômodo não era muito espaçoso, mas parecia confortável para os dias - esperava que só alguns dias - que passariam em Camelot. Por mais que se sentisse eufórica por estar ali, precisava voltar a Vollfeit. Precisava dar um jeito na bagunça que se instalara lá.

O quarto possuía uma cama média, cortinas azul marinho e uma mesa, que pegava toda a parede da direita, com uma bacia e uma jarra. Neri depositou sua bolsa nela e se jogou na cama, surpreendendo-se por ser mais macia do que aparentava.

Pensou em Destrier e nos cavalos de Kyprios e Eslin, deixados num estábulo para os visitantes da cidade. Se não os tratassem bem, ela não invadiria o castelo dessa vez, e sim a casa dos donos do estabelecimento. Depois Vollfeit retornou a sua mente, fazendo-a questionar, outra vez, o que poderia estar acontecendo lá. Temia pelo povo, por Aldith, Belchior, e até pelos reis, mesmo que estes tivessem mexido tanto em sua vida…

Antes de pegar no sono repassou alguns dos nomes que Merlin citara mais cedo para se virar, sozinha, no reino. Arthur, Uther e Lancelot foram algumas das palavras que ecoaram em sua mente até finalmente adormecer.

 

De manhã Merlin os encontrou na porta da hospedaria. As ruas já contavam com um bom número de transeuntes, formando uma atmosfera sonora intensa. No entanto, o céu estava limpo e a temperatura era muito mais agradável que em Melandra ou Vollfeit. E, mesmo que Kyprios tenha confirmado a teoria de Neri sobre suas memórias alteradas, a espiã se sentia bem. Aquilo significava que Vollfeit - pelo menos os reis e os mestres dos elementos - já conhecia a magia presente em Camelot, dando um pouco mais de esperança à espiã; além disso, seu esforço em ignorar mais informações negativas estava dando resultados.

— Ontem à noite reli alguns dos livros que Gaius tem e não encontrei nada. Ainda— Merlin contou confiante. - Mas Gaius disse que existem algumas coisas que podemos tentar pra tentar estimular a recuperação, já que vocês perderam a memória por um dano cerebral e não por magia. Bom, quase. Chá de rosemary, alecrim e sementes de cominho podem ajudar… - seus olhos se apertaram; parecia ter entrado num outro mundo agora - no mundo da medicina.

Eslin sorriu e Neri agradeceu, escondendo um riso. Ela não perguntara a Kyprios como ele havia modificado suas memórias. Sabia que, para apagá-las, ela sofria uma lesão cerebral de tamanho suficiente para sumir apenas com as lembranças recentes - provavelmente desmaiava por falta de oxigênio, assim como Eslin naquela noite... Mas prometeu a si mesma que aquilo não importava naquele momento. Imaginar ter todas as suas memórias de volta, além das do mensageiro, só a animava mais e, embora Merlin ainda não tivesse achado um meio para aquilo, confiava no rapaz.

— Preciso visitar algumas casas agora, ver como alguns pacientes estão - Merlin bateu de leve na bolsa volumosa que carregava. - Se quiserem vir, são bem-vindos.

— Tudo bem, eu não ajudaria em nada e ainda atrapalharia - Neri sorriu. - Acho que vou procurar um lugar pra treinar - era uma meia verdade, já que queria descobrir mais sobre a magia de Camelot e, depois, treiná-la.

— Ah, sim - falou com uma alegria repentina, puxando do saco um livro de capa dourada. - Você costumava ir num bosque ao oeste… E ler isso. Como na primeira vez, ficará confusa, mas você aprenderá tudo em pouco tempo - piscou com diversão.

Neri aceitou e folheou um pouco, olhando de relance desenhos que se assemelhavam a pessoas falando com animais e redemoinhos de fogo. Parecia um guia de habilidades avançadas - mas avançadas em quê? Não pareciam possíveis usando somente os elementos. Neri mal conseguia se conter de ansiedade e ânimo. Será que aquela nova magia era difícil? Realmente confusa como Merlin dissera? Ela precisava logo de um canto sossegado para ler.

— Acho que farei isso - deu um sorriso de gratidão.

— Vejo vocês no jantar!

Merlin os ultrapassou, andando em direção ao centro da vila. Neri ainda olhava o livro quando Kyprios pigarreou.

— Irei procurar Gaius e ver se ele precisa de algo… Nos encontramos depois.

Neri se perguntou internamente por que o espião sairia em busca de Gaius, mas desistiu pouco depois de achar uma resposta e olhou para o único que ainda estava ali.

— O que acha de treinarmos um pouco? - sugeriu feliz.

— Você treina e eu observo debaixo de uma sombra fresca em meio a esquilos e flores? Parece ótimo - Eslin sorriu.

Rindo, andou lado a lado do jovem, avançando por ruas escolhidas quase aleatoriamente - mas sempre tentando se manter na direção que Merlin falara - até chegarem numa esquina vazia, com o fim da rua tomado por arbustos e troncos finos. Neri guiou Eslin até a mata, que se abriu após alguns metros, formando uma clareira bem iluminada e sonorizada por, talvez, araras.

Sentou-se próxima a um ramo de flores brancas e as acariciou; adorava aquelas plantas coloridas e perfumadas. Eslin observava o céu com um sorriso no rosto.

— Se tivesse framboesas aqui, acho que nunca mais iria querer ir pra outro lugar - imitou-a, sentando-se e logo se espreguiçando na grama fofa.

— Ou morangos - acrescentou descontraída.

— Ou morangos.

Neri colocou o livro que ganhara em seu colo e se focou nele, folheando-o lentamente para tentar absorver todos os assuntos que ele abordava. Continha alguns trechos de histórias - talvez verídicas, usadas como inspiração -, enormes ilustrações que serviam como guia para os diversos tipos de magia e uma espécie de dicionário, com palavras que Neri mal conseguia pronunciar; apesar das runas do alfabeto serem iguais aos que usavam atualmente em Aganon, o continente deles, era uma língua totalmente diferente das que já conhecera.

Depois de olhar tudo, voltou para a primeira página. A primeira seção era sobre a origem da magia. Neri já havia ouvido e lido sobre algumas possibilidades, de um casal de velhos que não queria morrer até um grupo de amigos, há milhares de anos atrás, que nascera com os poderes, sendo os pioneiros da magia elemental. Mas naquele livro… A magia não era denominada daquele modo. O autor a chamava de ordre. Segundo ele, a palavra vinha de uma língua antiga, a língua de Satya, e podia ser traduzida como “ordem”, um símbolo para a magia que existia - nos sortudos - num recipiente especial dentro de qualquer ser vivo, como um órgão específico. Ele também citava a magia elemental, mas como um complemento para o ordre. O mais estranho era que, aparentemente, ela era dada como presente pela rainha que governava todas as terras no início dos tempos. Uma raposa rainha.

— Então temos o ordre… Que foi espalhado por uma raposa Eslin murmurou com uma leve ironia, seus olhos agora fixos no texto. Era o mínimo que Neri poderia esperar como reação. Como assim a rainha era uma raposa? Aquela possibilidade era a mais bizarra que já ouvira.

— Parece que sim… - deu um sorriso de diversão. - “As terras eram dominadas por criaturas puras, originais e diversas. Afinal, existiu muito antes dos humanos. A sociedade era diferente. Composta por uma cadeia que ia muito além de predadores e presas” - leu atentamente em tom que Eslin pudesse ouvi-la. - “Os gazkefop’, os castores, eram os responsáveis por ensinarem ao resto a lógica por trás da natureza e como usá-la adequadamente. As lipaja’, girafas, usavam seu dom sensível em compreender os outros animais e ajudava-os em desavenças. Os amge’, os alces, sabiam como manter uma atmosfera descontraída e feliz. Os gopewo’, os corvos, compartilhavam sua observação rígida e racional sobre tudo quando necessário”.

Mais parágrafos contando sobre os papéis dos animais naquela antiga sociedade se seguiram. Ela e o mensageiro se alternaram para ler até finalizarem duas páginas - ainda havia muito para descobrir.

— “E as raposas, donas de uma sabedoria e sagacidade implausíveis, receberam a confiança dos companheiros para guiá-los. Assim, aqueles de espírito livre e coração ambicioso preparavam o corpo para mudar o seu ambiente, escolhidos pela grande rainha de Koreon, Tnazilli Pafetza, a incólume raposa, para transformar o mundo em algo tão livre quanto sua palavra” - Eslin foi o último a falar, dando um suspiro no fim. - Uma história tocante, de fato.

Neri o encarou. Seus olhos estavam neutros, mas não sabia se ele estava sendo irônico de novo. Talvez realmente tivesse achado tudo aquilo bonito, ao invés de doido e confuso… Uma raposa governando um mundo só com animais mágicos, pensou perplexa - mas de um jeito bom; todas aquelas informações… Eram incríveis.

Sorriu sozinha, passando para a próxima página. Lá o autor falava sobre as borboletas, símbolos da evolução e crescimento, sobre os cavalos, que eram ótimos em questões espirituais entre os animais, e mais de dez outros seres só naquela parte. Um dos últimos chamou mais a atenção da garota, que voltou a ler em voz alta.

— Os mooco’, os lobos, eram um exemplo de trabalho em equipe, família e lealdade. Aqueles que ensinavam aos outros a necessidade da estratégia e da união.

— Foi uma boa escolha, a sua - Eslin disse, lembrando-a de quando contou sobre o animal que mais gostava.

— São fantásticos - respondeu com um sorriso, mas internamente se perguntou se ela combinava com aqueles caçadores.

Neri avançou mais, deixando a parte dos animais para depois, até chegar à seção de magia ordre; eram tantos nomes naquela língua diferente que ela precisava de uma pequena pausa ou se confundiria para sempre.

Aleatoriamente parou numa página com uma pintura de dois garotos parados em frente um ao outro, com as mãos esticadas até tocarem os ombros opostos a eles. A página ao lado mostrava um segundo desenho, dessa vez com a dupla masculina com as posições invertidas. Era uma habilidade complexa para trocar de aparência.

Neri continuou lendo, interessada na magia que nunca vira antes. “Pronuncie a frase conhecendo a língua de Satya. Visualize mentalmente a aparência desejada e sinta-se no lugar do alvo. Quanto mais preciso, mais forte e duradoura a magia será“. Era só falar aquilo e a magia faria o resto sozinha? Goko ukao oufepo, recitou mentalmente. Ela demoraria até se acostumar com aquela língua estranha, mesmo já tendo visto-a antes, segundo Merlin, há três anos. Suas memórias apagadas cairiam extremamente bem naquela situação. Torceu outra vez para que o amigo conseguisse achar logo um modo de ajudá-la.

— Quer tentar? - a voz de Eslin a despertou do mundo distante em que havia entrado.

— Hm?

— Essa magia. Posso servir como cobaia - encarava-a decidido.

— Ah... Não acho que eu vá acertar a pronúncia disso - apontou para o pequeno texto. - É uma língua nova pra mim - deu de ombros descontraída.

— Gokoo ukau oufepo - franziu o cenho, mas depois riu. - É divertido. Vamos tentar, Neri.

A garota o fitou por um tempo antes de ceder; quando alguém entrava em contato com a magia, nunca mais pararia de sentir sede por mais dela - e Eslin a conhecia muito bem, mesmo que de forma inconsciente. Colocou-se de pé junto com o jovem e, ao mesmo tempo, esticaram os braços como na imagem.

— Diz que precisamos pensar na aparência da outra pessoa e se sentir como ela... - explicou, embora o garoto também já tivesse lido.

— Como é ser você? - questionou, olhando-a diretamente nos olhos. Sua voz não continha provocação ou sarcasmo, mas de certa forma a incomodou.

— Talvez você devesse pensar em ser um esquilo.

— Talvez eu nunca volte a ser eu mesmo - respondeu com um sorriso torto.

Neri sorriu, concordando com a ideia simpática de se tornar aquele pequeno animal para sempre.

— Bem… Não sou alguém admirável - começou, tentando escolher o que falar; não podia se expor daquele jeito, embora, perto dele, parecesse não existir aquela obrigação que carregava como espiã. - Não sou forte como deveria ser e preciso melhorar. Não sou uma pessoa legal, simpática ou… Coisas do tipo.

Eslin a assistiu durante todo o tempo, um brilho misterioso tomando seus olhos.

— Você deve saber como me sinto então. Vamos conseguir acertar essa magia - sorriu, embora não parecesse estar realmente feliz.

Os dois ficaram lá, parados enquanto sustentavam um olhar longo. Era diferente da primeira vez em que se viram, mas ainda havia emoção e energia naqueles olhos claros em sua frente. E eles eram tão profundos que não pareciam carregar menos de, talvez, seis lembranças. Deveriam ser vazios, tristes e perdidos, e não firmes e intensos como se vissem tudo sobre ela naquele momento. Ele havia se recuperado rapidamente das coisas negativas em sua mente, enquanto ela ainda sentia remorso por acreditar em uma Vollfeit inócua. Se achava que estavam passando por situações parecidas, ele estava equivocado. Ele era muito melhor que ela.

— Goko ukao oufepo - recitou após um tempo, mas nada aconteceu. - Espero que você seja perseverante também - disse com leve tom de ironia.

— Posso ficar aqui, em pé, até que consiga - falou satisfeito.

— Pena que não há recompensas pra isso.

— Sério? Certo, acho que está na hora de irmos embora e… - começou a andar, apontando para a direção da qual vieram antes, mas parou logo depois, voltando-se e sorrindo.

Neri riu, levando-o a soltar um riso baixo em seguida. O garoto se aproximou outra vez, colocando-se de frente para ela.

— Domesticarei um lobo se isso te ajudar. Preciso retribuir o que está fazendo desde que saí de Vollfeit.

— Sempre quis um lobo… - respondeu, um sorriso começando a brotar em seus lábios.

— A ideia parece agradável - concordou com a cabeça pensativamente.

Ficaram quase a tarde toda ali, sem nem se lembrarem de comer. Desistiram da prática de magias após falharem em mais de quinze tentativas e explorarem as outras seções do livro, passando por mais algumas histórias exóticas. Depois andaram pelo bosque, seguindo um riacho barulhento até encontrarem uma cachoeira, aproveitando toda a paz que aquele cenário propiciava. As falhas não eram algo a se orgulhar, mas Neri não estava se sentindo pesada como costumava após cometer erros. Talvez a beleza e o ar novo de Camelot a ajudassem com isso.

Retornaram para a casa de Merlin um pouco antes de o sol se pôr, vendo algumas tochas e candeeiros nas portas das construções serem acesas - alguns sem ninguém aparente inflamando-os. Encontraram um grupo de guardas marchando em direção oposta ao chegarem numa estrutura de quatro andares, onde sabiam que, em cada um deles, quatro famílias moravam em casas diferentes. Subiram até o primeiro andar e Neri bateu na segunda porta de madeira.

— Boa tarde, jovens - Gaius abriu um sorriso leve ao vê-los. - Merlin deve estar voltando também. Comam um pão que ganhei hoje enquanto isso - acrescentou após a dupla entrar. - E Eslin, Neri, ponham isso no meio - ofereceu um vidrinho com líquido amarelado. - É alecrim.

Sentado na mesa de refeições feita por uma tábua fina, Kyprios acenou discretamente para eles. Engolia pequenos pedaços do pão no prato à frente em intervalos grandes, como se usasse o alimento como uma forma de passar o tempo. Sentaram-se ao lado de Gaius, provando um pedaço do pão esbranquiçado - apesar da fome acumulada Neri, e aparentemente Eslin, achavam o pão pequeno demais para que o comessem sem os outros.

Pouco depois Merlin chegou, quebrando o silêncio importuno que se instalara na curta refeição.

— Arthur estava indisposto hoje e não precisei limpar seu quarto - o jovem contou alegremente. - Consegui sair mais cedo, pois livros fantasticamente velhos me esperam.

Depositou com cuidado sua bolsa na mesa de poções e se sentou ao lado de Kyprios.

— Merlin, tenha modos - Gaius o encarou com uma sobrancelha arqueada. - Vá lavar as mãos para pegarmos o jantar.

— Sim, senhor - colocou-se de pé, sorrindo ironicamente como se reclamasse por ter que se levantar outra vez.

O trio de Vollfeit o assistiu se lavar numa pia simples atrás da parede da sala e, depois, recolher potes e vidraças e trazê-los até a mesa com a ajuda de seu tutor. Sentou-se e, de sua bolsa, dois retângulos embalados em tecidos azuis vieram flutuando até eles.

— Hoje teremos o incrível mingau de cenoura do Gaius…

— E que Kyprios me ajudou a fazer - o senhor de idade acrescentou, deixando o garoto um tanto sem graça.

— Sardinhas assadas no mel e torta de amêndoas - Merlin continuou, apontando para os embrulhos que se abriam sozinhos. - Comprei essa torta da Kathelyn. É uma cozinheira do castelo. Mas só vende pra mim - disse satisfeito.

Neri riu, lembrando-se do tanto de comida que deveria pagar, se seguisse a situação de Merlin, para Aldith.

— Como Aldith e Belchior estão? - como uma coincidência, o garoto questionou após começar a se servir, escolhendo o mingau.

— Estão como sempre. Dependendo do que contei - respondeu um pouco confusa; o que ela teria revelado para ele? Mesmo não tendo contado que era uma espiã, não costumava comentar facilmente sobre sua vida pessoal.

— Aldith continua sendo legal e te dando doces? - sorriu. Neri entendeu que ele estava sendo irônico.

— Ela não consegue evitar - deu de ombros com diversão.

— Depois que você voltou para Vollfeit, ele ficou me perguntando por que não faço doces para ele como Aldith - Gaius o encarou com afronto.

— Ele ficou com ciúmes - Merlin se defendeu, dando de ombros como Neri.

O grupo riu, distraído pela refeição e a atmosfera leve que Merlin conseguia criar instantaneamente. Poderia ser devido aquela característica que tinha se dado tão bem com ele no passado? Até tinha falado sobre Aldith e Belch… Coisa que nunca faria durante uma missão. Mas perguntaria um dia como se conheceram. Naquela noite, deixaria suas confusões e problemas de lado. Deixaria tudo como estava. Uma normal e divertida noite.


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