Vollfeit - Diellors e ihenes escrita por Kaonashi


Capítulo 15
Capítulo 15




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Capítulo 15

Terra contra terra

 

Sua esperança em dormir bem naquela noite, após mais de uma semana acordando durante toda a madrugada, fora em vão. Mesmo com uma cama confortável e ambiente aconchegante, seu cérebro parecia querer se manter desperto para sempre, sem uma pausa saudável para descansar. Virou o corpo no colchão macio outra vez e, mesmo sentindo o peso do cansaço em seu corpo, sua mente não o acompanhou. Cenas com espadas, vidros estilhaçados e corpos em todos os cantos das ruas inundavam o cenário escuro ao fechar os olhos, fazendo seu coração disparar.

Era como se ele estivesse no meio daquela memória, assistindo a tudo sem tentar impedir os homens sem rostos de invadir as casas e destruir famílias. Sentiu o desespero dos inocentes e o toque quente do sangue escorrendo até seus pés.

Instintivamente abriu os olhos e levou a mão até a face de trás do bíceps direito. Sentiu um volume baixo, mas relativamente extenso, como se tivesse cortado a região há muito tempo. Era ruim não se lembrar de como ganhara a cicatriz, queria saber o que aconteceu. Estava cada vez mais curioso. Pensou como aquelas cenas que vinham atormentando-o foram formadas, depois se Neri já o conhecia antes de tudo aquilo. A garota lhe despertava uma curiosidade diferente, como se ele fosse ganhar um imenso prêmio caso conseguisse desvendá-la. Dela vinha poder ao mesmo tempo em que sentia fragilidade. E ela parecia ser a responsável por sua saída daquela prisão tão segura de Vollfeit… Desde o dia em que abandonaram o reino, nada sabia sobre o feito além das palavras rasas de Kyprios. “Iremos para uma missão”.

Colocou-se sentado, aceitando a torrente de pensamentos constante, e deu mais uma olhada no quarto, tentando sugar todos os detalhes possíveis para nunca mais se esquecer dali - não queria se esquecer de mais nada agora. Era grande, tanto para a horizontal quanto vertical, com um lustre luxuoso pendendo no centro do cômodo e um tapete de mais de três metros, felpudo e cinza. Perto da entrada duas poltronas largas faziam companhia a lareira, além de dois vasos altos com algum tipo de planta verde. Levantou-se e andou pelo tapete, sentindo o toque reconfortante do tecido. Ficou lá, indo e vindo por toda aquela extensão até o quarto começar a ser iluminado pelo sol nascente.

Quando a luz solar já estava forte a ponto de clarear todos os móveis, alguém bateu em sua porta como na manhã anterior. Uma garota de cabelos longos e pretos entrou, trazendo frutas e lanches com uma expressão sonolenta. Agradeceu e engoliu a refeição, ainda maravilhado pelas bandejas contendo mais de uma sopa rala e pães - embora não se mostrassem tão apetitosas quanto os bolos que Neri lhe trouxera na prisão. Mais tarde, ao sair, encontrou-se com a garota no corredor. Antes que ela o notasse, deixou seus olhos se focarem nos cabelos soltos, que ondulavam levemente da metade para as pontas, e depois para a pele branca, tão pálida quanto a dele. Do fundo de si uma vontade de sorrir veio à tona, movendo seus lábios involuntariamente. Desviou os olhos quando a garota se virou e a esperou se aproximar.

— Bom dia - Neri o cumprimentou.

— Bom dia - disse, ainda tentando suprimir o sorriso.

— Você está bem?

Concordou com a cabeça enquanto andavam para as escadas do corredor. A garota, no entanto, não parecia convencida.

— O que farão hoje? - mudou de assunto.

— Quem? Ah - sorriu. - Nós somos um trio. Você também é parte do grupo.

— Sou o símbolo do apoio moral. Tem razão - respondeu um tanto irônico.

A garota deu outro sorriso, divertindo-se. Após um tempo, já no térreo, retomou.

— O rei nos convidou para o treinamento deles hoje. Querem que sirvamos como tutores, já que eles nunca investiram muito em defesa.

— Parece interessante - queria perguntar se isso não levantaria suspeitas em relação a ele, visto que era um prisioneiro sem lembrança alguma sobre como lutar, mas estavam acompanhados pelas criadas de Melandra.

— Acho que é - falou com um tom estranho, como se visse naquilo uma piada fraca, e acenou com a cabeça quando se depararam com Kyprios na saída para os jardins.

Naquele momento percebeu um olhar misterioso entre o garoto e Neri. Era como se conversassem através dos olhos. A criada que cuidava da jovem durante sua estadia no reino dispensou a outra, que voltou na direção em que vieram. A moça restante estendeu os braços para frente, sinalizando que continuassem o caminho em linha reta, e os guiou verbalmente até encontrarem os jardins. Viraram num corredor, numa trilha de pedras douradas, e caminharam pelo local repleto de arbustos finos até um arco de mesmo tom amarelado em seu fim, expondo parte de um pátio tão grande quanto três quartos juntos. Paredes baixas, que mais pareciam servir como cercas, foram construídas ao redor da área, naquele momento com dezenas de pessoas presentes. Algumas estavam sentadas e rapidamente se colocaram de pé ao ver os novos visitantes. Aalix era uma das pessoas, parecendo impaciente num canto do pátio.

— Espero que tenham um bom treinamento, senhores - a servente de antes disse calorosamente antes de se retirar.

— O rei agradece a boa vontade de vocês em nos ensinarem um pouco da tamanha habilidade que possuem - Aalix proferiu, sua voz sem interesse e vontade, mas com o rosto emanando sarcasmo. - A ordem de treinamento de hoje será baseada no nível de nossos soldados - continuou, aproximando-se de uma caixa grande, mas arcaica, no centro do local. - Dividiremos em três grupos e vocês poderão, cada um, liderar um por um.

— Só eu e Neri lutamos - Kyprios logo disse. - Somos acompanhados por um de nossos rastreadores - olhou para ele.

Ficou estático, pensando se concordava com a cabeça antes de dizer:

— Espero estar sendo útil - e fez uma reverência, contendo-se para não devolver o sarcasmo da mulher. Não gostava dela.

Para o seu alívio, Aalix o ignorou e continuou falando.

— Bem, dividiremos em dois grupos e você e a garota farão como achar melhor - apontou para o amontoado de homens e mulheres a sua volta e mexeu as mãos rapidamente. - Você e você, escolham seus esquadrões e façam uma fila para começar.

As pessoas fizeram como ordenado, criando dois grupos de sete lutadores cada. Então se colocaram de frente para Kyprios e Neri.

— Certo, então… - o garoto pareceu um tanto perdido. - Neri, vamos nos separar para termos espaço suficiente.

A garota se distanciou, levando seu novo grupo de alunos para um canto mais afastado. Ele também se afastou de ambos, não queria ficar tão perto de homens e mulheres sem, aparentemente, qualquer coordenação motora. Voltou alguns passos para trás e observou Kyprios chamar o primeiro da fila para lutar. Aalix também se retirou, ficando parada debaixo do arco. O homem que fora convocado se posicionou preguiçosamente em frente a Kyprios, que não esboçava emoção - desde a primeira vez que o vira, nos calabouços, achava difícil ler o rosto do rapaz. No lado oposto Neri ensinava a um homem, talvez nos seus trinta anos, as melhores posições para iniciar uma luta.

Ficaram revezando as lições entre as pessoas até que um serviçal do castelo os alcançasse, dizendo já passar das duas horas da tarde. Então deram uma pausa para voltarem até seus quartos, recebendo o almoço morno. Comeu com certa rapidez como se aquilo fosse acelerar a volta deles para o pátio. Até agora não havia assistido uma luta de verdade e, por algum motivo, seu coração clamava por uma ao mesmo tempo em que seu cérebro ainda tentava ignorar suas novas memórias. Ele só poderia estar perdendo a razão - ou, quem sabe, já tivesse nascido louco.

Ficou esperando avidamente no corredor até que seus companheiros de viagem aparecessem, prontos para voltar ao pátio de treinamento. Enquanto recriavam o caminho, notou que Kyprios estava com o olhar distante, como se pensasse em algo longe de Melandra, e Neri parecia apresentar a mesma concentração. De certa forma ficou chateado; queria ouvir a voz fina da jovem.

— Uma pena você ser apenas um rastreador, perderá a alegria de ser um professor de técnicas mortais - ela falou após algum tempo, fazendo-o comemorar internamente. - Digo, de arte da defesa.

— Acho que preciso aprender técnicas mortais. Ou melhor, de defesa - arqueou a sobrancelha, divertindo-se.

A garota riu, soltando um ruído leve e sonoramente confortável. Era uma voz fina, mas não a ponto de se tornar estridente, e levemente rouca, sem soar provocativa ou muito áspera. Era um som realmente agradável.

Ao chegarem no pátio, os outros alunos ainda voltavam de seus almoços - teve a impressão de que quase ninguém ali queria realmente treinar. Aalix também apareceu pouco depois, dando as ordens para o prosseguimento do treino. Após todos passarem por suas sessões individuais de análise com Kyprios e Neri, iniciaram as lutas de um contra um. Enquanto Kyprios lutava com um rapaz mais novo, a jovem de Vollfeit desviava sem dificuldade dos golpes tortos de uma mulher. Quanto mais assistia, mais atraído ficava pelos movimentos rápidos que Neri demonstrava. Eram fluídos, como se seu corpo se mexesse sem receber ordens da dona. Observando-a, almejou poder se juntar a eles mesmo que fosse passar por apuros como os outros alunos que, hora ou outra, sorriam satisfeitos pelas dicas que sua tutora dava. Talvez não estivessem odiando tanto o treinamento agora.

Ficou lá, tentando absorver cada passo e olhar da garota, brilhante de uma forma especial enquanto lutava; observou os sorrisos que ela dava, encorajando seus oponentes a explorar seus potenciais, os cabelos dançando no ar e os pés, que rodopiavam sem sair do lugar. Até que sua mente o levou de volta à aldeia destruída de suas memórias. Desviou os olhos para o lado, tentando se livrar daquilo. Aalix estava lá, assistindo às batalhas com uma expressão fechada, claramente descontente por estar ali. Mas a impressão que tivera dela logo se desfez, quando a mulher se ajeitou e se aproximou dos grupos.

— Vocês precisam de golpes reais se quiserem melhorar - olhou para Neri, que parara a luta. - Lute comigo, assim eles saberão como é uma batalha quando a hora chegar.

Kyprios também parou seu treino e olhou para Neri. A jovem não retornou o olhar, assentindo silenciosamente para Aalix. Esta pegou o lugar da moça anterior e esticou brevemente os braços, alongando-se antes de saltar para cima de Neri. Os golpes começaram de forma muito mais frenética e objetiva que antes, fazendo Neri desviar mais atentamente e sem espaço aparente para revidar. Pulava de um lado para o outro, no início sem demonstrar vontade - ou vantagem - de atacar. De repente sua velocidade caiu, como se sua energia estivesse sendo sugada aos poucos.  Defendia-se agora com os próprios braços e pernas, sentindo todos os socos da oponente. O barulho do contato violento era seco, tornando-se o único ruído no pátio além dos suspiros que os alunos emitiam de vez em quando. Estão achando que Aalix luta bem?, pensou decepcionado. Neri não deve estar lutando sério… A cada momento da luta que se passava, desejava que a garota começasse a atacar e vencesse logo. Toda a força que sentira ao redor dela não poderia ser uma ilusão - afinal, ela parecia ser mais capaz que aqueles cinco guardas da sela juntos. Ela era forte e ele sabia disso.

No entanto, continuava se defendendo com o próprio corpo, dando chances para Aalix intensificar seus ataques, que foi o que aconteceu. A mulher convocou o elemento terra do chão ao redor, fazendo flutuar dois blocos médios ao seu lado antes de jogá-los simultaneamente em Neri. A garota os recebeu sem mudar sua defesa, causando um estrondo quando os blocos a tocaram com violência. Os observadores suspiraram, como se acreditassem estar vendo ossos sendo quebrados. Neri não expressou nada, e ele se lembrou de quando ouvira, na prisão, que ela controlava o ar. Não sabia o que ela poderia fazer com o elemento, mas esperava que o tivesse usado agora para se proteger. É claro, pensou, agora decepcionado consigo mesmo. Se Aalix conseguia controlar grandes montes de terra, Neri era apta a usar o ar para construir muralhas. Muralhas invisíveis.

Encarou a jovem lutando, dessa vez com um olhar diferente. Procurava qualquer indício de que o ar estava ali, no meio dela e de Aalix. Era frustrante não conseguir enxergá-lo e não confiava em sua imaginação para criá-lo. Todavia, começou a sentir algo enquanto a luta avançava, com Neri recebendo mais e mais aglomerados de terra dura. Conseguiu visualizar - talvez sua criatividade finalmente tivesse decidido trabalhar - uma camada mediana e de cor azul, que oscilava do tom claro para um escuro. Depois enxergou vermelho, amarelo e violeta, como numa bolha de sabão. Era uma imagem incrível, embora ainda não se sentisse totalmente confiante com a veracidade daquilo. Ao redor de todo o corpo da jovem, aquela camada se mostrava presente. Naquele momento sentiu um desejo enorme de poder controlar o ar.

A luta durou mais cinco minutos. Aalix já expressava irritação por não provocar nada em Neri, que continuava com o rosto calmo, e diminuiu os golpes físicos, tornando aquilo uma batalha entre terra e ar - ou força e resistência. Num golpe, quando a mensageira criou uma parede enorme e a espalhou ao redor de Neri, todos acharam que seria o fim. As camadas grossas de terra se levantaram para, em seguida, criar um casulo apertado na oponente, que ficou parada. Aalix relaxou, vendo aquilo como sua vitória, e começou a se retirar. Porém no primeiro passo o chão em seus pés tremeu e se ergueu em linha reta, quase imitando o golpe anterior e montando uma prisão ao redor de Aalix. A mulher estava boquiaberta, pega de surpresa. Ficou estática, encarando as barras de terra cada vez com mais raiva e indignação. Algumas pessoas bradaram alegres pelo espetáculo e, com o canto dos olhos, viu que Kyprios sustentava um olhar leve, quase sorridente.

Sem sucesso no que quer que Aalix estivesse tentando fazer, a mulher fez seu casulo desmoronar em cima de Neri, que sumiu em meio às rochas e poeira. O chão começou a tremer levemente e, depois de alguns segundos, um buraco começou a ser formado no centro do pátio, de frente para a cela. A jovem saiu de lá agitando seu manto a fim de retirar o pó e depois parou, fitando uma Aalix nervosa, sem parecer aquela mensageira fria e indiferente. Neri sorriu, mas não ele. Desde que saíra do túnel na terra percebera que a companheira não possuía mais a camada de ar em sua volta. Agora tinha apenas alguns pedaços protegidos por uma faixa fina de ar. Ela estava desprotegida.

Aalix finalmente retornou o sorriso, mas em uma versão perversa.

— Ora…

E viu a atmosfera de Neri começar a ser pressionada com grande esforço nas costas, perto do pulmão esquerdo. Uma pedra pequena tentava invadir a pele feminina silenciosamente, sem que os outros parecessem notar -  estavam animados demais com a luta que tinham acabado de ver. Neri colocou as mãos nas grades marrons, como se estivesse se esforçando para manter sua proteção ao mesmo tempo em que continuava de pé. Ela suspirou e, por um segundo, olhou descrente para Aalix.

— Está difícil? - sorriu amigavelmente.

— Está para você? - a outra disparou. Sua pele começou a ficar pálida, provavelmente pela energia que gastava tentando sair da prisão ao mesmo tempo em que atacava a oponente pelas costas.

— Ah, foi divertido, não diria difícil - sustentou o sorriso.

— Que incrível o que nossos vizinhos podem fazer! - um espectador interrompeu, batendo palmas. - Você controla a terra assim como nossa mensageira, Neri?

— É um segredo - a garota disse feliz ao mesmo tempo em que a cela de rochas se desfez e a pedra em sua pele caiu sem vida até o chão.

Aalix saiu do meio dos blocos de terra e Neri anulou sua proteção de ar. Todavia, antes que a jovem pudesse reagir, Aalix fez um movimento mínimo com as mãos que ele pôde reparar: mexendo os dedos indicadores para cima, algo nos pés de Neri se acionou. A terra vai perfurar… Sua lógica fez seu coração pesar. Ao mesmo tempo sua cabeça latejou e tudo o que ele pôde ver foi alguém, em seu passado, disparando uma pedra enorme em direção a uma criança, escondida atrás de um casa.

Neri!, exclamou internamente em meio a imagem embaçada na sua mente. Um estampido invadiu seus ouvidos e todos os murmúrios descontraídos pararam. Abriu os olhos quando a dor passou e viu a garota olhando para seus próprios pés, e depois para o chão. Nada estava diferente. As sobrancelhas femininas se franziram enquanto Aalix parecia ainda mais confusa. Depois seus olhos castanhos se voltaram em direção a ele, brilhantes como as estrelas que viram dias atrás. O rosto pequeno se abriu em um sorriso de satisfação por um instante antes de encarar Aalix e mexer os lábios, dizendo algo para a mulher em tom baixíssimo.

— Podemos voltar ao treinamento, pessoal? - falou para o resto, ignorando os olhos raivosos de sua adversária.

O grupo de pessoas, embora confusas, assentiram e retomaram o sistema de treino rapidamente. Aalix saiu a passos pesados sem ninguém falar nada e Kyprios também deu sequência às aulas. Ele, no entanto, continuava no mesmo canto, ainda tentando entender o que tinha acontecido, estagnado.

Talvez os outros tivessem ignorado o que acabara de acontecer, mas ele não conseguia guardar mais algumas dúvidas - ou sua curiosidade. Pelo menos isso preciso entender.


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