Mais um dia comum escrita por Jotagê


Capítulo 10
No amor, na matemática e na guerra, vale tudo


Notas iniciais do capítulo

Depois de um tempinho, mais um capítulo saindo do forno! Tô começando a me empolgar e escrever capítulos um pouco mais longos, espero que gostem! XD



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Não preciso dizer que foi broxante ser pego aos amassos com o João pela dona Marisa e sua neta Charlotte — literalmente broxante. Isso tinha que acontecer logo depois de deixarmos o Lucas em casa, que não se contentou em ser só meu ex e ficar lokão com milk-shakes, precisava também ser o melhor amigo do João.

É tão surreal que parece uma fanfic, mas foi só minha noite estranha. Deu pra notar que o João também se sentia assim, já que nós não trocamos uma palavra pelo resto da viagem. Como poderíamos fazer alguma coisa se as duas moças sentadas à nossa frente pareciam esperar qualquer movimento shippável?

Não é por nada, mas essa família parece meio estranha...

Preferimos ficar só de mãos dadas, acariciando os dedos um do outro e esperando que elas achassem outra coisa pra prestar atenção — o trânsito, talvez? Talvez algum de nós quisesse arrancar os cintos de segurança e voltar pra sessão boca-a-boca, mas pra que citar nomes?

Minha mente ainda lutava pra processar tudo o que aconteceu em um só dia, enquanto eu esperava o carro virar uma abóbora e a Charlotte e a dona Marisa virarem ratinhos. Mas nada mais podia dar errado dali em diante — as merdas que tinham que acontecer, já aconteceram. Sim, eu tô falando do pombo.

Foi a noite mais estranha da minha vida, mas eu não trocaria aquilo por nada.

— É aqui que eu desço — quebrei o silêncio quando reconheci o poste sem lâmpada ao lado da minha casa, pela janela do carro, o que me tirou dos meus devaneios. Precisei afastar minha mão de João para tirar o cinto de segurança ao sentir o carro parar, e abri a porta ao meu lado.

— Espera, eu te acompanho! — quase caí na calçada quando João exclamou com exagero, como se botasse pra fora tudo o que não falou durante a viagem, mas me segurei na porta.

— Ok! — respondi com animação por poder ter mais um momento de privacidade com ele. Fui até a janela da frente, onde dona Marisa e Charlotte se entreolhavam e riam baixinho, mas decidi relevar — Obrigado pela carona!

João e eu andamos um pouco pela calçada até o portão branco e descascado, com o muro azul da minha casa ao redor. Eu estava torcendo pra não fazer barulho, já que eu não costumo chegar tão tarde em casa e não queria chamar a atenção dos meus pais. Com sorte, eles sairiam antes de eu acordar na manhã seguinte e eu escaparia do assunto.

— Então... — tentei quebrar o climão, já que eu não sabia como começar a conversa e ele deixava claro o nervosismo ao olhar pros lados a cada segundo —Noite meio doida, né? Mandem essa noite pro hospício!

Eu dei uma risada para acompanhar a piada, mas só estava rindo de nervoso, mesmo. Preciso parar de usar humor nessas situações, urgente. Agora ele está nervoso e eu estou nervoso para acalmar o nervosismo dele!

Ele se surpreendeu e parou o olhar no meu rosto... E acabou gargalhando, o que me fez relaxar e rir mais um pouco com ele. Pois é, parece que minhas piadas ruins acalmam paqueras nervosos. Quem diria?

— Então, o que você achou do b--... — ele se interrompeu, engasgando em pânico, como se tivesse se arrependido do que ia falar no último segundo, e logo se corrigiu — Do encontro... Hã, da noite, não foi um encontro. Foi um encontro?

— Foi um encontro, e eu gostei muito — respondi, o que o fez suspirar de alívio. Fui a sua direção com os braços abertos e demos um abraço de despedida. Quando nos separamos, olhei em seus olhos e aproximei nossos lábios de leve em um selinho rápido — Vamos nos ver de novo, outro dia! Boa noite!

— É gol! — Charlotte e dona Marisa deram um grito alto e animado do carro, seguido por um som alto e barulhento que parecia uma vuvuzela, o que me fez notar que elas estavam observando tudo. Não, a vergonha não é menor ao ser flagrado pela segunda vez.

...Por que elas levam uma vuvuzela no carro?

As luzes das casas ao redor se acenderam, e eu abri o portão com pressa, esperando não ter acordado meus pais também. Vi João acenando com um sorriso largo que eu queria passar a noite admirando, mas só pude acenar de volta e entrar em casa.

No escuro do terraço, eu precisava me preocupar em não fazer barulho e não tropeçar em nada. Não é fácil evitar as árvores e os vasos espalhados pelo caminho que a halmoni cuida — acho que ela gosta mais das plantas que da gente —, ainda mais andando na ponta dos pés.

Nunca pensei que bancar as Três Espiãs Demais seria tão difícil. Cheguei ofegante à porta, tirando com cuidado as chaves do bolso... Só pra encontrar meus pais e um dos Fantasmas de Scrooge me esperando, no fim das escadas.

— Finalmente! — minha vó comemorou, correndo o mais rápido que podia pra se jogar no sofá. Pois é, não era tão rápido assim. Mesmo a máscara branca de papel em seu rosto não escondia seu estresse, com bobes nos cabelos brancos e uma longa camisola verde cobrindo seu corpo robusto. A dona Florinda asiática pegou duas almofadas e atirou nos meus pais, berrando seu ódio em coreano — Eu não posso ficar tanto tempo em pé, eu tenho reumatismo!

— Meu bebê! — exclamou meu pai, que estava demorando um pouco pra reagir. Mais baixo e cheinho que eu, de pele parda e cabelos pretos curtos que se unem à barba, ele veio correndo em seus pijamas pra me abraçar — Você está bem?

— Eu só demorei um pouco mais, pai... — retruquei, sem entender toda a comoção, mas retribuí o abraço depois de hesitar um pouco.

— Licença, eu tô falando com o terno!

— Tá explicado — bufei decepcionado, jogando o terno no sofá, o que fez meu pai ir atrás — Vocês não estão chateados pela demora?

— Estamos — minha mãe respondeu, me encarando com seus olhos puxados — Mas esse showzinho foi mais pelo terno, culpa do seu pai e da umma.

— Você está acusando uma senhora de idade? — halmoni perguntou incrédula, fingindo estar ofendida pra se livrar da culpa. Logo, ela começou a dramatizar, dando bronca na mamãe com uma voz chorosa — Filha das minhas entranhas, sangue do meu sangue, respeite sua umma!

— Você tem 17 anos, Tomás. Nós confiamos em você — continuou, ignorando o drama da vovó. Nada atrapalhava sua seriedade, nem a bagunça nos cabelos pretos ou a camisa gritando “VEREADOR TICO DA PADARIA” cobrindo até seus joelhos. Eu estava preocupado, até sua expressão suavizar — E você nunca nos deu problema! Só tente avisar que vai chegar tarde da próxima vez, ok?

— Obrigado, mãe...

— Mas é claro que ainda vamos cortar sua mesada, né? Boa noite, querido! — ela deu uma risada fraca e lançou um beijo no ar, e logo depois saiu correndo escada acima com meu pai e halmoni pra que eu não reclamasse da situação na hora de dormir. Do andar de cima, ela gritou — Vai tomar um banho, você tá com cheiro de pombo!

...

Fiquei esperando alguma reação do rosto de Laisa — limpo e natural, pois ela não usa maquiagem pra escola —, que nem parecia a cara inchada de quando ela estava com dengue há alguns dias. Os volumosos cachos castanhos descansavam nos ombros do suéter preto de pescoço-alto que ela traz pra encarar o frio da sala, com uma calça jeans cinza e tênis preto acompanhando.

— O que falar desse Jota que eu mal conheço, mas já considero pacas? Se ele te respeita e te faz tão bem, eu já amo! — ela sussurrou, mas seus olhos castanho-escuros gritavam animação. Claro que o instinto de “amiga coruja” não se segurou, e ela precisou adicionar — Mas já conhece o ditado!

— Se a gente não corre atrás do caminhão de lixo querendo as sacolas pra coleção, não é pra correr atrás de boy-lixo por migalha de atenção — respirei fundo e repeti com um sorriso o provérbio da vida dela, o que fez seu rosto negro brilhar de orgulho.

Ela se segurava pra não me chacoalhar, pois não queria que o Aristóteles saísse do quadro e trouxesse sua voz anasalada pra nos dar bronca. A felicidade dela me deixou dividido — aliviado porque a enxurrada de informações a distraiu do fato de eu não ter dado explicação nenhuma pra ter passado o dia ignorando suas mensagens, mas culpado por esconder algo dela e fingir na cara-de-pau que não é nada.

Mas eu preciso passar mais tempo lidando com meus problemas, e menos os levando pra Laisa resolver. É o último ano do ensino médio, com tantas provas, simulados e coisas pra se preocupar. Ela tem a família e a vida dela, e eu não quero envolve-la em mais uma do Lucas.

Eu consegui lidar com tudo sozinho, sem incomodá-la nem madrugar contando meus problemas. Se eu falasse agora, aposto que ela ficaria chateada por eu ter escondido o que aconteceu, mesmo que por só um dia. Então pra que, né? Né?

— Espera, isso até explica suas olheiras e porque você veio de pijama pra escola — ela divagou em voz alta, com um olhar desconfiado — Mas você por que ignorou as minhas mensagens! A gente conversa todo dia, Tom!

— Então, ahn... — comecei a tentar me explicar, balbuciando sem parar nas palavras e esperando que o universo mandasse algo que me salvasse — É que quando, por exemplo, um elefante...

— Posso saber o que esse elefante tem a ver com a aula de equações binomiais, senhor Park e senhorita Valente? — salvo pelo gongo... Não, espera, salvo pelo tonto! Eu vi Aristóteles se aproximar de relance, mas já era tarde demais quando ele reclamou com seu sotaque petulante outra vez. Precisava mandar logo o Aristóteles, universo? Que tipo de salvamento é esse?

Sua careca brilhava, e as sobrancelhas eram o único indício de cabelo em todo o rosto quadrado e agressivo. A luz da sua cabeça lisa quase me cegou, mas não me impediu de notar a camisa social azul, acompanhada por calça e sapatos pretos e gravata azul listrada. Ou ele lava a roupa sempre, ou é um personagem da Turma da Mônica, porque ele usa a mesma roupa todo dia!

— Devem saber bastante do assunto — ele debochou ao apoiar as mãos em nossas mesas — Então respondam as duas questões do quadro. Laisa fica com a primeira e Tomás com a segunda.

Toda a sala desviou a atenção dos celulares escondidos pra nos encarar em silêncio, como se não bastasse o olhar maligno do Aristóteles. Mas o bonde desse Park é Valente. Já enfrentamos a Mansão Assombrada do Mirabilândia, estamos prontos pra tudo.

Matemática não é minha praia nem de longe, mas eu consigo me virar — é só parar de refletir tanto e descobrir o coeficiente do desenvolvimento de 2x +... Hein?

Laisa se inclinou pra frente, apoiando o cotovelo na mesa azul de plástico e o queixo em sua mão, descansando o outro braço. Ela bateu com as unhas na mesa, duas vezes, como quem não quer nada. Depois de uma pausa, continuou com mais três batidas seguidas e então eu entendi seu esquema.

— Letra... B! — ela fingiu hesitação antes de responder pra zoar com a cara dele, mas já sabia que estava certa. As duas coisas que ela mais adora na escola, além de mim, são responder questões matemáticas e ensinar o Aristóteles a não subestimá-la. CalcuLaisa em ação! — A soma dos coeficientes é 1.

— Eu acho que é a letra C, aquele 243 — provoquei, confiante de que hoje o Aritonto sairia da sala derrotado. Afinal, eu não achava, eu tinha certeza pelo código que a Laisa passou. Ele só queria um deslize pra nos humilhar e nos mandar pra guilhotina, mas hoje não, tinhoso! Hoje não!

— ...Depois da aula, eu quero os dois na diretoria! — ele berrou para mostrar uma autoridade que nunca teve de verdade, mas até a sua voz anasalada sabotava o coitado. Mas valeu a pena!

Nossos colegas começaram a cochichar ao redor. Eu mal conseguia entender, já que estava muito ocupado segurando a gargalhada ao ver a cara de desgosto do Aristóteles voltando pra frente da sala de aula. Por fim, Laisa e eu demos um “toca aqui” satisfeito, com os sorrisos mais cínicos do mundo. É aquele velho ditado: mexeu com o bonde, a gente passa por cima!


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Notas finais do capítulo

Se quiserem comentar, estou aberto a críticas e respondo com carinho e com carinhas cada comentário que recebo, porque emojis são os pilares dessa sociedade!

Até o próximo capítulo, kisu! ~ /o/



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