O mundo tá vazio escrita por Juliiet


Capítulo 1
e eu queria me transformar em água


Notas iniciais do capítulo

to nervosa~~



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         Eu podia ver nos olhos dela que ela estava cansada. Podia ver que seu sorriso era um pouco forçado, um pouco difícil de manter. Seu rosto era preocupação e derrota. Seu lindo rosto que aos poucos ia se desfazendo.

         E ela nunca dizia que era minha culpa.

         – Volte direto para casa depois da escola hoje – mamãe me pediu, tocando meu ombro, forçando o sorriso um pouco mais. – Por favor.

         Eu assenti, sem saber se conseguiria atender ao pedido. Já quebrara muitas promessas, já a machucara demais. Às vezes de propósito, muitas vezes sem querer.

         E ela continuava forçando sorrisos.

         Peguei minha mochila, amarrei os sapatos e fiz meu ritual diário. Era apenas um mantra na minha cabeça dizendo que tudo bem, que nada de ruim iria acontecer se eu saísse de casa (precisava esfregar meu indicador na maçaneta treze vezes enquanto fazia isso). Eu me alimentava dessas mentiras só um pouquinho, só para conseguir acordar de manhã e sair da cama, do quarto, do apartamento. Cada passo um grama mais pesado, um tiquinho mais difícil de dar.

         O céu estava chorando. Suas lágrimas batiam em meu guarda-chuva e em minhas pernas e pés. Minha mãe não gostava da chuva, ela não gostava de como eu costumava sangrar com as gotas que batiam em nossa janela, em como eu queria me transformar em água e fluir, só fluir.

         Eu ainda queria virar água. Enquanto ela desejava que eu fosse rocha. E eu me sentia como areia. Areia rala e fina, áspera e fraca. Onde nada nunca cresce.

         Fui fazendo o caminho de sempre, que tudo tinha de familiar e nada tinha de confortante. Cinza, cinza, cinza. O mundo não tem cores. A essa altura eu já sabia que minha mãe ficaria triste como o dia. Não fui para a escola, não consegui. Não voltei para casa. Como em muitos dias, eu não sabia se iria voltar.

         A chuva ficava mais forte e depois mais fraca. Meus pés percorriam as calçadas molhadas, poças manchavam meus tênis e as barras da minha calça. Eu ansiava por olhar para cima e ver as gotas descendo por meu guarda-chuva, mas ele agora era preto e não transparente. Eu não podia ver as gotas, não podia querer escorrer como elas.

         Eu não sabia para onde ir, não queria ir para lugar nenhum nem havia lugar nenhum para mim. Não queria ver a tristeza da minha mãe, não queria ser o garoto estranho na escola que nunca falava, não queria andar sem rumo pela cidade. Eu só queria desaparecer.

         Acabei desaparecendo numa velha estação de trem. Sentei-me no chão, apoiando as costas na parede úmida, desejando nada, desesperado por vazio. Vazio. Vazio.

         A garota surgiu pouco tempo depois, correndo com a mochila cobrindo a cabeça, já que não tinha guarda-chuva. Seus longos cabelos escuros grudavam em sua pele e ela sorriu para mim. Eu não a conhecia, mas já a vira algumas vezes. Estudávamos na mesma escola e ela devia estar uma série acima da mim. Sem dizer nada, ela se sentou também, com uma grande distância entre nós, o sorriso parecendo permanecer em seus lábios sem que ela percebesse, só um cantinho meio levantado enquanto ela tirava um caderno da mochila.

         Eu me senti afundando em mim mesmo, nervoso e irritado com sua presença, mas ela não parecia interessada em mim. Mal parecia perceber que eu estava ali. Parecia perdida em seu próprio mundinho e o único barulho que fazia era o da caneta correndo o papel do seu caderno surrado. Seu cabelo úmido caía em seus olhos vez ou outra, cobrindo a visão que eu tinha do seu rosto por alguns segundos, até ela colocar a mecha inconveniente atrás da orelha.

         Quando a chuva passou, algumas horas depois, ela guardou seu caderno e caneta e olhou rapidamente para mim, tímida, e foi embora com um pequeno aceno.

         Peguei-me querendo poder observá-la um pouco mais.

         Consegui voltar para casa.

...

         No dia seguinte choveu de novo. Mamãe estava chorando baixinho no banheiro quando saí de casa, suas lágrimas diluindo meu sangue até fazê-lo desaparecer, fazendo com que parte de mim também desaparecesse.

         Eu nunca chorava. Nem por mim nem por ela.

         Dessa vez, quando voltei à velha estação de trem, a garota já estava lá. Ela voltou a sorrir ao me ver, mesmo que eu não correspondesse. Sentei-me no mesmo lugar do dia anterior e não pude evitar observá-la mais uma vez enquanto ela escrevia. Fui reparando aos poucos em como era bonita. Não à primeira vista, não num único olhar. Ela era bonita depois que você passava uma manhã inteira observando-a escrever em seu caderninho, colocando mechas de cabelo inconvenientes atrás da orelha, mordendo discretamente o interior das bochechas. Seus olhos eram grandes, fundos, escuros. Não combinavam com seu sorriso. Era como se tivesse olhos que choravam e lábios que estavam sempre sorrindo. Depois daquela manhã, percebi que sempre seria capaz de perceber sua beleza delicada.

         A chuva ainda estava forte quando ela se levantou para ir embora. Estava ficando escuro. Dessa vez ela tinha lembrado de trazer um guarda-chuva e tinha acabado de abri-lo quando se virou para mim e falou pela primeira vez:

         – Qual o seu nome?

         Eu desviei meus olhos, focando nas manchas escuras de água nas barras de sua calça.

         – Eu sou Isabella – ela tentou e eu podia ver como era difícil para ela falar comigo. Sua timidez aparecia em cada uma de suas palavras.

         Respirei fundo duas vezes e perguntei, quando ela já estava de costas para mim, a alguns passos fora da cobertura:

         – Isa ou Bella?

         Seu sorriso voltou a aparecer quando ela respondeu “Bella”.

...

         Eu tive uma semana boa e um dia ruim. Era engraçado como um único dia ruim parecia destruir tudo de bom, todos os dias em que funcionei como uma pessoa de verdade, em que ri, em que fiz minhas tarefas, em que fiz minha mãe feliz. Em que consegui respirar sem sentir dor, sem sentir um peso apertando cada um dos meus órgãos, matando-os um a um até me fazer sentir como uma casca vazia, funcionando de pó, vento e sombra.

         Um dia ruim e todos os bons nunca tinham existido.

         Foram oito dias sem chuva.

         Cheguei a ir à escola e a fazer boa parte dos meus deveres de casa, o que sempre fazia minha mãe sorrir um pouquinho de verdade. Não procurei por Bella nos corredores, não queria vê-la, não ali.

         Eu queria vê-la.

         Mas não parecia certo.

         Voltei para casa cedo e ajudei minha mãe com a louça durante aquela semana. Até assistimos um filme juntos. E nesse dia pensei que talvez...apenas talvez eu devesse procurar por Bella na escola. Só para lhe dizer meu nome.

         No dia seguinte, havia um monstro prendendo-me a cama. Havia areia em meus olhos, grãos que pareciam perfurar meus globos oculares cada vez que eu tentava levantar as pálpebras. Havia minha mãe tocando meu ombro e falando comigo, mas eu não a sentia nem a ouvia. Era como se eu estivesse sozinho. Desesperadamente sozinho.

         O mundo tá vazio.

         E eu também queria ir embora.

         Não saí da cama o dia inteiro. Não comi nada. Eu dormia e acordava, às vezes assustado, às vezes, resignado. E o vazio era uma pessoa. Só ele me tocava, só ele falava comigo, e me machucava e me matava.

         No dia seguinte, eu levantei da cama e o vazio me seguiu como uma sombra. Não vi nada enquanto saía de casa, exceto o céu cinza que me prometia vê-la de novo.

         A chuva lá fora me chamava e eu queria vê-la. Eu não era nada, não era ninguém, não era um ser humano. Eu era feito de dor e solidão e coisas que nunca ninguém conseguiu pôr em palavras. Mas mesmo assim queria que Bella soubesse meu nome. Talvez assim...talvez eu me tornasse real.

         Meu mundo estava vazio e, ao cair das primeiras gotas, o rosto dela estava lá.

Eu tinha esperanças, eu queria que ela pudesse, com seu sorriso tímido e olhos profundos, afastar o vazio. Gostaria que ela pudesse ser minha cura, mesmo tendo-a visto tão poucas vezes. Algo sobre ela era...era quase confortante.

Mas não o bastante.

         Bella sorriu para mim e fechou seu guarda-chuva, murmurando um “olá” doce e baixo. Dessa vez, ela se sentou bem ao meu lado e não tirou o caderno da mochila. Encarou-me como eu fazia com ela. Tão real que eu queria tocá-la, mas tinha medo de me desfazer ao finalmente sentir sua pele sob meus dedos.

         Eu queria um sol. O céu claro, o ar quente, os raios de luz em minha pele. E Bella era um sol. Eu sabia que era. Eu sentia.

         Mas tudo ao meu redor continuava escuro.

         E eu entendi que não importava. Não importava o quanto ela fosse cálida e brilhante e o quanto seu rosto e suas mãos e seu caderno afrouxassem a corda no pescoço da minha alma por um segundo. As nuvens ao meu redor eram feitas de concreto. Eram pesadas e escuras e intransponíveis.

         Seu calor e seu brilho estariam sempre fora do meu alcance.

         Dessa vez, eu fui o primeiro a ir embora. Antes que eu pudesse sair na chuva, no entanto, Bella se levantou e perguntou:

         – Você não vai realmente me dizer seu nome?

         Fitei seus olhos misteriosos, seus cabelos úmidos, os pelos de gato em seu uniforme, suas mãos sujas de tinta de caneta. E apenas essa visão dela me doeu como olhar a chuva nos olhos da minha mãe aquela manhã.

         – Quem sabe outro dia – consegui falar através da faca em minha garganta. – Quando chover de novo.

         Não sabia se conseguiria fazer aquilo se tornar verdade, eu nunca sabia. Não abri o guarda-chuva, ao invés disso, deixei as gotas me tocarem, permiti-me querer ser uma delas e fluir. Só fluir.

         O mundo continua vazio.


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Notas finais do capítulo

Sei que não foi EXATAMENTE como você esperava, Isa, mas a história acabou criando vida sozinha. Espero que você tenha gostado, porque escrever pra você foi e sempre será uma honra.



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