Viajantes - O Príncipe de Âmbar escrita por Kath Gray


Capítulo 2
Capítulo I




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/723184/chapter/2

 

Vozes.

Vozes radiantes. O som de pés descalços correndo sobre a grama.

E risos. Risos pueris melodiosos como sinos.

.

Do lado de fora, o sol refletia no asfalto e nas calçadas. O dia brilhava.

Era fim de manhã e começo de tarde, quase hora do almoço. Dean sabia que em pouco tempo as mesas agora quase vazias começariam a preencher-se rapidamente, até que os novos clientes seriam obrigados a ficar em pé. Não que se importassem; afinal, com o sol do verão em seu ápice, o sorvete de sr. e sra. Marx tornava-se ainda mais atraente.

A sorveteria Icy Cloud era de longe uma das mais frequentadas da cidade, assim como um ponto de encontro bastante popular. Talvez fosse pelo ambiente - as mesas e cadeiras brancas, juntamente com o piso e paredes de tons igualmente claros e as extensas janelas e portas de vidro davam ao local um aspecto claro, refrescante e arejado. Talvez fosse por sua localidade, imediatamente ao lado de um dos maiores colégios da cidade e a uma faixa de pedestres de distância da Grande Lagoa, o que lhe dava uma visão privilegiada através das vidraças. Ou talvez fosse apenas pela qualidade excepcional do sorvete caseiro de seus donos.

Apesar disso, naquele momento, Dean e Will eram os únicos ali. Cinco minutos - essa era a fração de tempo que separava o momento quente e perfeito para um sorvete do período escolar. Àquela hora do dia, ninguém era louco de estar ali.

Ninguém, exceto Will, é claro.

— Nós não devíamos estar aqui! É sério - insistiu Dean. - O Cabeça vai nos fazer cheirar as meias sujas dele de novo! E a Castor vai nos fazer recitar todos os hinos dos países da Europa Oriental... - o mero pensamento fez o garoto estremecer. - Se eu tiver que decorar tudo aquilo outra vez...!

— Relaxa, Dean! - riu Will. - Olha, pensa pelo lado positivo: você acabou de perder uma aula de educação física e uma de gramática! Podia ser melhor que isso?

Will era, de longe e sem margem para dúvidas, a pessoa mais desencanada que Dean já conhecera. Percebendo que de nada adiantaria continuar argumentando, Dean deu um suspiro resignado e apoiou o rosto na mão, cotovelos sobre a mesa. Não conseguiu conter um discreto sorriso que torceu os cantos de sua boca.

— Por que foi que eu te deixei me convencer a vir, mesmo? - perguntou, vencido.

Will abriu um largo sorriso torto.

— É porque você é meu melhor amigo, é claro! É o que amigos fazem!

— Se dão mal juntos?

— Exatamente! - seu sorriso alargou-se.

Ainda sorrindo, ele baixou os olhos para a taça de sorvete. Sua expressão atenuou-se numa velocidade assustadora.

— Hmm... acho que vou pegar mais um. Eu volto já! - e levantou-se.

A reação de Dean pairava entre a risada e um som rouco um tanto indefinível. Ele não tinha o mesmo amor que o amigo por doces e comidas frias; colocou seu sorvete de lado ainda pela metade. Enquanto esperava Will voltar, ele puxou um caderno e seu estojo básico da mochila e pôs-se a esboçar um pouco.

Ele nunca tinha realmente gostado de desenhar, e tampouco tinha qualquer talento para arte. Porém, as dicas de seu irmão pareciam ter surtido efeito, pois aos poucos ele conseguia enxergar as sombras das formas em sua mente ganhando contorno em meio à confusão de linhas, curvas e rabiscos esboçados no papel - todos claros, para que a composição final se destacasse contra o fundo poluído. Primeiro a ideia. Depois, o esboço. E por fim, o contorno, hora acentuado e preciso, hora sutil, deixando espaço para que a imaginação preenchesse com detalhes o que ele não podia preencher.

— Ah! Você ainda está tendo aqueles sonhos?

Perto da entrada, uma garota acabava de fechar a porta às suas costas.

— Júlia! Que surpresa! - disse Will, apoiando a nova taça sobre a mesa e puxando a cadeira para sentar-se. Olhando por cima do ombro, ele indicou a cadeira ao seu lado. - Senta aí!

— O que você está fazendo aqui? - perguntou Dean, enquanto ela se ajeitava.

— Pois é! Não devia estar na sua aula de matemática avançada?— perguntou Will, provocativamente. - Olha que você vai pegar recuperação, hein!

— Minhas notas estão todas acima de nove - respondeu ela, sorrindo também em provocação.

— E as minhas, acima de oito - observou Dean, divertido.

— Mesmo que eu faltasse em todas as aulas até o fim do ano, ainda estaria três pontos acima da média.

— Além disso, a gente não está com um exército de professores na nossa cola.

— Como vocês são cruéis! - choramingou Will. Os outros dois caíram na gargalhada.

Dean ainda se lembrava vagamente do dia em que conhecera Will. Fora em seu primeiro dia na primeira série, quando seu irmão mais velho o levara para conhecer a nova escola. Os novos alunos haviam sido convidados a chegar um pouco mais cedo para que pudessem explorar o prédio e os corredores antes do horário escolar. Will e seu pai chegaram mais ou menos ao mesmo tempo que eles, e os quatro acabaram se vendo rapidamente na porta de entrada. Depois, quando as aulas começaram, os dois meninos acabaram na mesma sala, e não demorou muito para que ficassem amigos. Poucos meses depois, se iniciava o longo histórico de Dean de más influências, quando começou a se deixar arrastar por Will para uma enorme variedade de enrascadas.

Júlia entrou na terceira série. Era uma estudante exemplar, atenta às aulas e querida pelos professores. Um dia Will resolvera pregar uma peça nela, enchendo seu tubo de cola com glitter. Porém, ao invés de irritar-se e dedurá-los para os professores, Júlia respondera colocando um pote inteiro de glitter da mesma cor em seus potes de tinta na aula de artes. Depois disso, os três se tornaram grandes amigos. Muitos anos já haviam se passado desde então.

Will, antes de pele clara, agora tinha o ligeiro bronzeado de um surfista ocasional - ele e seus dois primos adoravam passar os fins de semana nas praias da cidade vizinha. Seus cabelos loiros claros não haviam mudado nada, sempre meio desleixados, assim como seus olhos perigosamente enérgicos, manchados de castanho e verde. O exercício lhe fazia bem; embora não fosse muito musculoso - provavelmente por causa de seu enorme amor por chocolate - já havia vários anos que abandonara o corpo esguio e magrelo de pré-adolescente. Os contornos de seus bíceps já se faziam visíveis mesmo com os braços relaxados, e se continuasse assim logo as camisas começariam a apertar-lhe o peito. Não era surpresa que as garotas o olhassem de longe enquanto surfava.

Já Júlia sempre fora muito bonita. Sua pele era alva, uma coisa não muito comum naquela região normalmente ensolarada. Seus cabelos marrom-acinzentados caíam sobre os ombros em ondas perfeitas, e faziam Dean questionar o porquê de tantas pessoas retratarem deusas da beleza com cabelos claros. Aquela cor era facilmente mais bela do que qualquer liga metálica, incluindo o ouro. Seus olhos azuis como cristais não poderiam combinar mais com a imagem completa. Suas notas também não ficavam atrás; estava claro que, em dois anos, ela entraria na faculdade que quisesse.

Dean sabia que, para qualquer um que olhasse de fora, ele seria o "coadjuvante". Sua pele naturalmente amorenada não tinha a palidez vítrea de Júlia nem o bronze de Will. Seus olhos castanho-escuros não se destacavam contra o cabelo quase da mesma cor. Nunca tivera a menor afinidade com atividades físicas, então não era especialmente forte, mas não era sedentário. Não tinha notas brilhantes, como as de Jú, nem brilhantemente ruins, como as de Will.

Mas ele não se importava. Na verdade, às vezes até se surpreendia com o fato, mas ele se sentia tão intrinsecamente próximo aos dois que qualquer comentário murmurado em provocação parecia rebater nele como ondas desviando-se ao chocar-se com uma pedra semi-emersa.

— Mas, e então - disse Jú, virando-se para Dean e indicando seu caderno com o dedo. - Essa é aquela garota com quem você vive sonhando?

— É - Dean confirmou. - Uma das, na verdade, mas... é.

— Que legal. Você ainda não tinha conseguido desenhá-la, né? - disse ela.

— Não. Essa é a primeira vez.

Realmente, Dean sempre tinha tido dificuldade para desenhá-la. Ele nunca entendera o porquê de ter problemas com ela, em especial.

Porém, algo ainda estava meio estranho. Júlia dissera "ainda", como se agora ele tivesse conseguido, mas... ainda havia algo faltando na imagem. O que poderia ser...?

Nesse momento, um som penetrante começou a apitar. Will pegou o celular do bolso da calça e verificou a tela, mais por hábito do que por necessidade.

— O sinal do fim das aulas vai tocar em dois minutos - disse ele, guardando de volta o aparelho, sua outra mão sem soltar a colher. - Querem ir esperar na frente da...

— ESPERA, JÁ É UMA HORA? - exclamou Dean, de súbito, pondo-se de pé num salto.

— É, duas para uma. Por quê? - perguntou Will.

— DROGA! - Dean pôs-se a juntar as coisas apressadamente e enfiou-as na mochila, jogando-a sobre o ombro. - Eu prometi a Simon que sairia mais cedo e o levaria para comer pastel na feira!

A feira do parque fechava uma e meia.

— Eu te dou carona - disse Júlia, ficando de pé também. Não tirara nada da mochila, então estava pronta para sair.

— Valeu! - agradeceu Dean. Os dois apressaram-se em direção à porta. Enquanto Júlia pegava a bicicleta, ele acenou rapidamente para Will. - Até mais tarde!

— Divirta-se! - respondeu o amigo, acenando de volta ao mesmo tranquila e divertidamente.

Silêncio.

Outra colherada de sorvete.

.

— Cheguei!

Dean deixou a mochila cair ao lado da porta, imediatamente sentindo o alívio da mudança de peso em seus ombros.

O primeiro andar da casa englobava tudo o que não era os quartos. Havia poucas paredes ou divisões entre os aposentos, e apenas uma fileira de bancadas dividia a cozinha à direita da sala de estar à esquerda, cada cômodo ocupando quase metade do espaço.

O piso era de uma madeira que ia do âmbar ao castanho, e, de maneira geral, o ambiente todo era bastante espaçoso num sentido horizontal e tendia para os tons neutros, como branco, creme ou alaranjado. Também era bem iluminado, graças às janelas - uma grande na sala, iluminando o sofá, a poltrona e a mesinha de centro, duas mais estreitas dos lados da porta e outra bem ampla logo acima da pia da cozinha, dando para a mesa de jantar.

Dean ouviu uma agitação no cômodo ao lado. Pouco depois, Dan surgiu na abertura entre as bancadas que dava passagem entre um lado e outro, segurando uma tigela branca e batendo claras em neve, com um sorriso tão natural que poderia ser parte permanente de seu rosto.

— Ah, bom dia, Dean! - cumprimentou, alegremente. - Como foi a escola?

Daniel era o irmão mais velho de Dean. Ele era mais velho por pouco mais de seis anos, o que era mais ou menos a mesma diferença que separava Dean e o caçula, Simon.

Dan tinha a pele um pouco mais clara que a dos dois irmãos, mas ainda um pouco mais morena do que a média. Se Dean tinha os olhos da mãe, Dan e Simon haviam puxado os olhos esverdeados do pai, e o cabelo do mais velho também era um pouco mais claro que o de Dean. A despeito da diferença de idade, Dan também era mais de uma cabeça mais alto e tinha o porte mais próximo de Will do que dos irmãos. Simon ainda tinha aquele jeito mais esguio que era característico a muitas crianças de sua idade.

Os pais dos irmãos eram professores. Embora geralmente passassem muito tempo em casa, de tempos em tempos acabavam viajando para cobrir um ou outro colega em outra unidade da academia, acompanhar os alunos em uma excursão ou ainda para assistir a palestras ou participar de projetos. A Academia Rosa Branca era não só uma das maiores da cidade, mas também de toda a região; às vezes ficavam alguns dias fora, outras vezes um ou outro fim de semana, mas havia casos em que tinham que se distanciar por mais tempo. Duas semanas, três, um mês. Houve até uma vez em que o pai dos garotos tivera que substituir uma colega que estava em licença maternidade. E, é claro, havia vezes em que os dois tinham que sair ao mesmo tempo.

Quando isso acontecia, era Dan que assumia o papel de "responsável". Cuidava da casa e dos irmãos, organizava os horários, atentava-se aos gastos, resolvia contratempos e ainda separava uma parte de cada dia para passar um tempo com os caçulas, isso sem contar seu trabalho de meio período na lanchonete perto de casa. Ele assumira o papel bem cedo, talvez até antes de Simon nascer, embora na época eles ficassem ao cuidado de tios ou de conhecidos de seus pais, já que as viagens eram caras e eles eram novos demais para serem arrastados de um lado para o outro se surgisse alguma coisa.

Algumas pessoas eram muito apegadas aos tios, quase tanto quanto aos próprios pais, mas como Dan havia crescido sozinho por alguns anos de sua vida, quando ganhou um irmão mais novo eles se tornaram próximos rapidamente, tal como sucedeu com Simon seis anos mais tarde. Como depois disso estavam sempre em três, Dean e Simon vendo no primogênito sua inspiração na vida e Dan vendo nos mais novos sua responsabilidade como irmão mais velho, era como se fossem uma família completa. Eles se bastavam; poderiam estar sozinhos juntos e já seria o suficiente.

Depois que Dan se tornou adulto, a presença de outra pessoa na casa já não era mais necessária, de forma que agora eles ficavam sozinhos quando os pais estavam fora.

Desde que Dean se entendia por gente, sempre sentira uma admiração pelo irmão mais velho.

— Foi normal - respondeu Dean.

Ele era péssimo em mentir, e sempre que o fazia tinha cem por cento de certeza de que seria pego. Mas se Dan percebia alguma coisa, não dizia - o que não o deixava menos nervoso, contudo.

O mais velho divertiu-se com a resposta sucinta. Era bem a cara do irmão.

— Simon! - gritou, olhando por cima do ombro. - O Dean chegou!

Virou-se novamente para Dean.

— Estou fazendo bolo para o lanche - disse, indicando a tigela nos braços. - Quer mesclado ou formigueiro?

— Mesclado - disse Dean, instantaneamente.

Dan sorriu.

— Imaginei.

Alguns momentos depois, eles ouviram passos apressados no andar de cima, e os pés de Simon surgiram no topo da escada em L encostada na parede oposta.

— Já tô indo, já tô indo! - gritou o menino, pulando os degraus de dois em dois. - Oi, Dee!

— Oi, esquilinho! - respondeu Dean, abrindo um sorriso e virando de costas bem a tempo do pequeno saltar sobre ele e envolver seu pescoço firmemente com os braços. - Vamos indo?

— Vamos! - concordou Simon, balançando as pernas.

Dean conseguia pensar em várias pessoas que diriam que Simon era grande demais para brincadeiras desse tipo, mas ele tinha dois irmãos mais velhos. Por que deveria ter pressa para crescer?

Dean olhou para Dan.

— A gente já volta - disse.

— Não precisam ter pressa! - respondeu Dan, rindo. - Divirtam-se!

Dean riu.

— Ok! Até mais tarde!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Hey. Eu de novo.
Como disse na minha outra fic, esse é o primeiro capítulo original dessa versão da Viajantes. Estou testando um método de escrever tudo o que me dá na telha e depois polir, apagando as partes desnecessárias. É meio trágico ter que cortar frases bonitas, mas algumas realmente não dão certo.
Estou coçando para dar explicações sobre minha história, mas acho que histórias deveriam ser auto-explicativas ^^'
Espero que tenham gostado.