Eu, Kindred escrita por MaurraseC


Capítulo 5
Nunca um sem o outro.


Notas iniciais do capítulo

Kindred é um campeão que gosto muito, sua criação e filosofia de existência é algo que me trouxe admiração desde o dia que o conheci.
Essa é uma homenagem para esse campeão.

Espero que goste.

—Diga-me de novo, Ovelhinha, que coisas posso tomar?
—Tudo o que existir, caro Lobo.



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Conseguiram.

Uma vacina que traria imortalidade foi desenvolvida com sucesso... ou quase.

Depois de anos estudando um determinado vírus que destruía células do corpo humano, os cientistas modificaram tal propriedade para uma ação oposta, isso é, ao invés de destruir iria regenerar as células de qualquer ser vivo.

O agente destrutivo viral foi isolado e foi introduzida uma propriedade criada em laboratório para poder servir como fonte benéfica aos seres humanos.

Nas primeiras horas o individuo sentia fortes náuseas e tontura. Após isso seria necessário tomar um forte analgésico, pois as dores em seguida são indescritíveis; causa são as células antigas se destruindo continuamente para a renovação.

Então o vírus começa a entrar na corrente sanguínea percorrendo todo o corpo.

Quando as células antigas morriam imediatamente novas células eram criadas para a regeneração. Tornando-se um ciclo que durariam algumas semanas até a fase final que seria o rejuvenescimento completo.

Os órgãos danificados eram regenerados em questão de horas. A pele enrugada e velha voltava à aparência mais jovem em minutos. O metabolismo, os neurônios e a aparência física eram todas restauradas em poucos dias.

Caso possuísse alguma enfermidade, graças à regeneração celular rápida qualquer patologia em poucos dias era destruída. Assim surgiu a cura do AIDS, Alzheimer e, finalmente, a cura do câncer.

Era o milagre do século em que ninguém morria de causas naturais, até mesmo por fatores de violência a morte era apenas uma palavra para poesia. Os ferimentos eram cicatrizados em altas horas.

Contudo casos brutais de esmagamento dos órgãos nobres como coração, pulmão e cérebro não havia como reverter à estrutura sendo essa a única decepção dos cientistas que ainda buscavam um meio de preservar o órgão e o corpo para depois reconstruir e ressuscitar a pessoa.

Entretanto apenas isso não era o suficiente para mudar a exaltação que a humanidade tinha pela falsa imortalidade obtida... E Isso nos irritou muito.

— Já se esqueceram de nós, Ovelhinha?

— Todos ainda nos conhecem embora tentem esquecer... logo o lembraremos.

10 anos depois.

O milagre de Deus tornasse a maldição do demônio.

O vírus da imortalidade mexia diretamente com as células do corpo humano de forma abrupta. Sendo algo novo para o organismo e de forma tão antinatural demorou muito para que começasse a surgir os efeitos colaterais.

Só era preciso uma dose e toda sua vida estava condenada.

A manifestação repentina de células em demasia no corpo aumentava exponencialmente as células mutantes, mesmas causadoras do câncer. Aonde surgisse uma célula mutante é provável que formasse uma neoplasia.

E a vacina aumentava esse risco em níveis anormais. Assim, todos os indivíduos que usaram da medicação foram expostos.

A neoplasia destruía as células humanas de forma violenta causando dor e angustia na pessoa. Seu corpo autodestruía por dentro podendo deformar a fisionomia por completo. Mas graças ao vírus da ‘imortalidade’ tais células era regenerada reiniciando ao estágio inicial onde a neoplasia voltava a destruir as células e a vacina continuava a reconstruí-las.

Tornava-se um ciclo vicioso e torturante pela... eternidade.

Os humanos já não envelheciam mais e nem mesmo adoeciam com moléstias do cotidiano. Entretanto o que selou seus destinos foram, ironicamente, as próprias células.

Mesmo sem adoecerem ainda sentiam intensa dor e aqueles que não mais sentiam é por causa da destruição continua das células cerebrais causando estado de estupor, onde o indivíduo não consegue mais responder aos incentivos com o mundo exterior.

A catástrofe piorou por uma ingenuidade dos cientistas; ficaram tão cegos com a imortalidade esquecendo assim que ainda se tratava de um vírus que, agora, se propagava por todo o mundo.

Mesmo não tendo sido vacinado, o contato com qualquer um que o tenha feito já era suficiente para se tornar um hospedeiro suscetível. E dentro do corpo o vírus se multiplicava e trazia a imortalidade, tempo depois o câncer incurável.

O foco da humanidade foi na cura da ‘imortalidade’ e destruição do vírus, tudo em vão.

No desespero, não tiveram outra opção se não buscar a morte.

E assim fizeram, porém... a morte não os buscou.

No último momento que empurravam a cadeira e seus corpos ficava suspensos no ar por uma corda no pescoço, a consciência não se esvaia. Sentiam a dor da corda lhes enforcando, mas a morte não os buscou. Cortavam os pulsos permitindo que todo o chão manchasse em vermelho, mas a morte não os buscou.

O rosto do homem com um orifício provocado por uma arma de fogo ainda se mexia estranhamente. As lâminas cravadas no coração e os corpos convulsionando por causa de overdose lhes trazia a morte como desejo... exceto dessa vez.

Por mais que tentassem a morte não os buscava.

Os corpos expostos no chão logo após uma queda de vinte andares, a mulher que andava normalmente mesmo tendo o crânio esmagado por um caminhão ou o corpo da criança decapitada como andarilho buscando aquilo que mais ansiavam... Mas ela não vinha.

Eles queriam a imortalidade, pois bem agora a tinham.

Essa foi à maldição que eles infligiram a si mesmos.

Nós, Kindred, por longos anos não caçavam os humanos em demasia, vez ou outra apenas para entreter o Lobo. Decidimos ignorar a existência do sofrimento deles e apreciamos como bons observadores. Mas agora a brincadeira acabou.

— Todas as coisas jazem — eu dizia observando a humanidade.

— Em nossa sombra — concluiu o Lobo sorridente. — É chegada a hora, ovelhinha?

— Sim, Lobo. É chegada a hora.

— Mal posso esperar para que fujam!

— Claro — eu disse serenamente. — Nossas marcas chamam por nós. Vamos, Lobo?

— Eu vou primeiro! — respondeu seguindo em frente, em direção as nossas presas.

Podíamos sentir nossas marcas por todos os lados. Brilhantes e vivas.

Nos aproximamos de uma família deitado no chão sentindo as fortes dores causadas pelo câncer. Os olhos deles não tinham brilho nem mesmo vida. Estavam apenas ali deitados no chão.

Empunhei meu arco e o Lobo mostrou seus dentes, eles não tinham medo de nós. E assim disparei minhas flechas em seus corações lhes proporcionando uma morte indolor e tranquila, como prometido.

Instantes depois, o Lobo caçava um homem que, amedrontado, fugia de nós.

— Todos os que correm são meus! — ele ameaçava.

Enquanto perseguia o homem, outros que ali passavam corriam com medo, tornando-se novas presas para ele. Quanto a mim? Eu continuava colhendo as marcas daqueles que me aceitavam gentilmente.

Podia ver o sorriso sincero em seus rostos.

— Obrigado — disse a mulher enquanto caia devagar no chão para seu sono eterno.

Sentia-me estranha, pela primeira vez alguém me agradecia. Compreendo sobre não me temer, mas agradecer? Por que faziam isso? Não consigo entender dos sentimentos humanos.

— A morte às vezes é uma benção — sussurrei enquanto ia de encontro ao Lobo que se divertia vividamente com suas presas.

 Tínhamos muito que caçar. Muito que buscar. Muito que nos... divertir.

O Lobo em sua empolgação deu um forte uivo avisando a todos sobre nossa chegada.

Os medrosos se esconderam, fugiram para as sombras. Enquanto aqueles que, finalmente, nos esperavam vinham em nosso encontro implorando pelo fim daquele sofrimento.

— Escolham entre minhas flechas...

— Ou meus dentes — O Lobo tentava intimida-lo, buscando medo.

Nenhum deles nos temia, então como prometido lhes ofereci uma morte rápida com minhas flechas perfurantes.

No mais tardar avistamos um grupo que estava em volto da fogueira; no centro onde as chamas brilhavam intensamente, um homem dançava enquanto sua carne era queimada. A insanidade lhes tomara toda a razão.

— Eles riem — Me aproximei.

— E gritam — Eles nos avistavam.

— E dançam — A insanidade os consumia.

— E fogem — O Lobo sorria como há muito não o fazia.

Nesse grupo foram poucos que aceitaram minhas flechas, enquanto muitos se tornaram presas dos dentes afiados.

— Vá, Lobo! — eu disse enquanto o seguia contra uma mulher que assustada correu de nós.

Ela corria com todas as forças que ainda sobrava, inutilmente. A mulher tropeçou ao chão torcendo o tornozelo. Ao virar-se sua visão foi coberta pela escuridão do Lobo.

Os dentes tão afiados quanto uma espada. Olhos brilhantes como o infinito que tanto hipnotizavam aqueles que se perdiam em sua existência. A escuridão mais negra que a próprias trevas. O Lobo sorria sadicamente.

Inutilmente a mulher tentou reagir, mas rapidamente teve o pescoço rasgado numa única investida do Lobo. O som dos ossos quebrando como música para seus ouvidos.

— Isso foi divertido. Quero mais — ele riu lambendo os beiços. — Muito mais!

Eu sorria gentilmente pela empolgação o Lobo mostrava. Logo fomos à procura de nossa próxima presa.

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Foi mais demorado do que eu esperava, mas finalmente nossas marcas haviam sido removidas. Todas elas, exceto pelo principal que preferi deixar por último.

Chegamos numa mansão sem os mínimos cuidados quase para desabar. As teias de aranha, a poeira e o cheiro de mofo caracterizavam o abandono do lugar. Entretanto o homem que ali morava se negava de ir embora, que outro lugar ele poderia ir se não tinha aonde? Muito menos forças para tal. Todo seu corpo estava comprometido com o vírus impossibilitando-o de movimentos bruscos.

E lá estava ele, sentado na poltrona olhando para a lareira com as chamas dançantes pouco iluminando a sala.

— Por muito tempo temos acompanhado seus feitos — eu disse lhe revelando minha presença.

— Agora vire-se e nos enfrente — a voz rouca do Lobo ecoou pelos corredores da mansão.

O homem nada disse. Girou sua poltrona em nossa direção. Seus olhos não tinham brilho, sem vida, sem esperança... Não podendo acreditar que toda sua pesquisa havia resultado na extinção da humanidade.

Tudo o que o homem queria era a imortalidade para poder viver com a pessoa que amava, para nunca mais chorar quando perdesse alguém. Para que todo o sempre as pessoas não precisassem temer a vida para a morte.

E agora, toda a humanidade havia sido dizimada com esperança apenas que nós, Kindred, fechasse as cortinas finais para aquela tragédia científica.

— São vocês — ele balbuciou. — Vieram me buscar... finalmente?

— Ansioso por nos ver novamente... percebo — falei calmamente sem me mover do lugar.

— Sei que fui um tolo. E vocês me avisaram disso. Eu não devia ter...

— A vida é nossa — eu o interrompi abruptamente.

— Para encerrar — da escuridão surgia o rosto do Lobo iluminado pela lareira.

— Não era nada disso que eu queria — continuou ele. — Eu juro, apenas queria... — sua voz vacilou deixando-o em silêncio por alguns segundos. — Como eu poderia saber que isso iria acontecer?

— Toda fagulha alumia novas chamas — eu disse lhe deixando em silêncio novamente.

— Tentei ser o Deus que salvava a todos, mas me tornei o Demônio que condenara a humanidade, irônico — tentou dar um sorriso de conformidade, mas não tinha emoção para isso. — Por anos fugi da morte e agora aqui estão na minha frente como se fossemos velhos amigos. Diga-me, ainda posso eu receber...

— Shhh... Descanse — me aproximei de seu peito empunhando meu arco prateado. — Parta em paz.

O homem nos encarou lembrando-se de dez anos atrás, nosso primeiro contato no escritório. Ele, jovial e orgulhoso, foi o primeiro que disse que iria nos vencer. Arrogante o suficiente para desafiar a própria morte. Humilde o suficiente para aceitar que... perdeu.

Minha flecha foi de encontro ao seu coração.

A imagem alva da Ovelha e a escuridão do Lobo foram à última visão que o homem pôde ter.

— Aproveite o ato final da vida — eu disse enquanto me afastava, lhe deixando sozinho.

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Finalmente havia acabado... Não havia mais nada, Não sobrara mais nada.

— Não foi páreo para nós.

— Poucos são, caro Lobo.

— Vencemos — ele disse orgulhoso.

— Sempre, caro Lobo — concordei serenamente.

— E agora, Ovelha, onde iremos caçar?

— Não há mais marcas para buscar, Lobo. Todos se foram.

— Sem presas? — ele me olhava triste. — Eu quero caçar mais, ovelhinha.

— Temo que não haja mais ninguém para entretê-lo, caro Lobo.

Meu amigo, o Lobo, estava visivelmente triste. Não tínhamos um lugar para ir nem quem caçar. Talvez eu sentisse o mesmo que ele. Mas eu não me sentia sozinha, sempre tinha o Lobo do meu lado.

— Ovelha?

— Sim, Lobo.

— Faltou uma pessoa — ele dançava em meu corpo alegremente. — Pode sentir?

— Realmente, sinto que há uma marca para remover.

— Posso sentir o medo.

— Olá minha criança, prevejo que ainda esteja aí mesmo depois de tanto tempo.

— Sim... olá — o Lobo sorria.

— Estaremos esperando pelo dia de nosso derradeiro encontro.

— Iremos buscar nossa marca e brincar... muito — o Lobo descansava sobre meu ombro. — Mal posso esperar para que fuja — os dentes a mostra lhe oferecendo um sincero sorriso.

— Ou pode escolher minhas flechas. De qualquer jeito, cedo ou tarde, iremos nos encontrar... Tudo na hora certa. Aproveite antes do suspiro final.

— Estarei ansioso para nos conhecermos.

— Sim, Lobo. Logo nos encontraremos. Minha criança hei de me despedir e lembre-se: Não se assuste quando a vida se esgotar.

— Todos os que correm são meus!

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— Ovelha, conte uma história.

— Houve noutra hora um homem pálido com cabelos negros que estava muito sozinho.

— Por que estava sozinho?

— Tudo que existe precisava encontrar esse homem, então afastarem dele.

— Ele perseguiu tudo?

— Ele dividiu-se em dois com um machado... bem ao meio.

— Para que ele sempre tivesse um amigo?

— Para que ele sempre tivesse... um amigo.


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Notas finais do capítulo

Então pessoal, pelo jeito é isso.
Aqui encerro os contos de Eu, Kindred. E sim, são apenas cinco capítulos curtinhos, mas bem interessantes de se escrever. Mais uma vez, essa é uma homenagem para esse personagem que tanto admiro, e em níveis mais extremos, que eu amo.
Obrigado por todos que leram essa história até aqui, sério pessoal muito obrigado mesmo.

Aproveitando o momento, quero lhes convidar para ler minha outra história chamada Equilíbrio, é uma aventura com superpoderes e tragédia apocalíptica. Espero que possam dar aquela força lá também.
(Link: https://fanfiction.com.br/historia/726046/Equilibrio_Arco_dos_alados/ )

Enfim, mais uma vez obrigado por acompanharem a história da Ovelha e do Lobo.
Vocês tem algo para falar?
— Para a Ovelha ele é sempre o Lobo.
— E para o Lobo ela é sempre a Ovelha.
O que querem dizer com isso?
— Que para a Ovelha ele é sempre o Lobo.
— E que para o Lobo ela é sempre a Ovelha.
Certo, mas significa algo para nossos leitores?
— Não quero mais palavras! Quero caçar.
Tá entendi, é melhor irmos então.
— Narrador, você parece que corre muito.
Nem venha.
— Vamos brincar um pouco.
Sai daqui.
— Vai me negar? Ovelhinha está vendo o que ele está fazendo?
— Estou, Lobo. E logo ele terá que fazer a escolha final...
Não. Ah droga no que foi que me meti, socorro. O Lobo tá sorrindo e Ovelha, pra que esse arco? Espera aí, deixa eu me despedir aqui.
— Tarde demais!
— Nosso narrador foi brincar um pouco com o Lobo, mas não se preocupe. Logo você também irá. Ou não. Até logo minha criança — eu, a Ovelha, me despeço serenamente.
— Até logo — o Lobo sorria sempre se divertindo.

A trama e o tecer do destino guiam... Os sábios que abraçam a morte e os tolos que dela extraviam, sentirão a dor mais forte.



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