Kingdom Hearts: Motherland escrita por Kyra_Spring


Capítulo 15
Uma questão de sentimento




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            Depois que todos foram dormir, Sora decidiu ir falar com Lulu sobre a visão que havia tido mais cedo, no Claustro de Testes. Ela o ouviu impassível, sem se alterar em nenhum momento, e ele terminou com:

–...e eu não sei o que fazer. Como vou impedi-la de chegar até a Fonte? Como posso... derrotá-la? Ela é forte demais para mim. E eu não posso arrastar meus amigos comigo nessa luta. Não... não posso.

–Sora, eu sei que não é isso que você quer ouvir – ela disse por fim – Mas sim, você está sozinho nisso. Seus amigos poderão lhe dar suporte apenas até um certo ponto. Além dele, porém, estará tudo por sua conta. Sei que é responsabilidade demais para uma única pessoa. E sei que você está confuso, e com medo. Acredite, todos estamos. Mas... não vejo outra forma.

            Ele engoliu em seco. Sim, ele sabia disso. E era doloroso.

–Maldição... tem que haver outro jeito... – ela estava com a cabeça baixa, a voz sussurrada e rascante, como se lutasse contra si mesma – Tem que haver...

–O que a senhora sugere? – perguntou Sora. Se ela dizia que deveria haver outro jeito, então provavelmente já havia uma forma – O que... eu posso fazer?

–Bem... uma forma de você impedi-la é ir até a Fonte e selá-la com sua Keyblade – ela respondeu, com a voz baixa – Ela pode trancar qualquer coisa, então suponho que ela também seja capaz de trancá-la. Ainda mais agora, depois da sua passagem pelo Claustro. É provável que você tenha ficado mais forte, depois disso. Mas...

Mas o quê? – insistiu Sora, sentindo-se estremecer um pouco, como se previsse a resposta.

–Entenda, você está mais forte. E isso irá permitir que você sele algo poderoso como a Fonte – ela evitava encará-lo – Mas... isso o drenará quase completamente. E eu tenho certeza que Erinia irá detectar qualquer alteração na fonte. Ela sabe que você a encontrará, e a revelará. E, quando isso acontecer, ela irá ao seu encontro. Mas... – ela engoliu em seco – Você não terá condição nenhuma de lutar contra ela, depois de selar a Fonte. E... e...

–Eu entendi – Sora a interrompeu. A voz dela ia baixando, e os olhos dela continuavam fixos no chão, sem encará-lo – Está tudo bem. Eu faço isso. Só... preciso de alguém pronto para neutralizá-la, depois.

            Lulu o encarou, surpresa. Ele estava pálido, as mãos tremiam levemente, mas ele conservava o olhar determinado e decidido de antes.

–Todos devem estar prontos para quando eu encontrar a Fonte – ele continuou – Erinia pode ser forte, mas não é mais forte do que todos juntos. E, se ela não conseguir o poder da Fonte, poderá ser derrotada. Por favor... faça com que todos estejam prontos, quando a hora chegar.

            Ela hesitou por um instante. O garoto deveria ser mesmo muito valente, ou muito tolo, para aceitar aquilo tudo tão prontamente. Ou talvez os dois.

–Está bem – ela concordou, por fim – Todos estarão prontos.

            Ele deu um sorrisinho, e fez uma pequena mesura antes de se levantar e ir para o seu quarto. A feiticeira, porém, o impediu, dizendo:

–Espere um pouco – ele se virou, e a encarou – Não pense que vou simplesmente deixá-lo selar a Fonte e morrer depois disso. Não. Vou pensar numa forma de ajudá-lo. É uma promessa.

            Ele parou por um segundo, surpreso, e depois abriu um sorriso. Ela sorriu, também, e ele acenou e deu as costas outra vez. E ele esperou até ter sumido da vista dela para enxugar uma lágrima teimosa que insistia em cair.

            Ele estava mesmo muito grato a ela... mesmo que não acreditasse que ela pudesse salvá-lo.

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            Os dias passaram.

            Kairi treinava duramente. Sora e Riku a treinavam no uso da Keyblade, enquanto Leene e Lulu ajudavam-na a aprender magia. Ela estava diferente, isso era fato: depois da sua passagem pelo Claustro de Testes, ela parecia ter uma desenvoltura e força muito maiores. Isso tornava a tarefa deles bem mais fácil.

            Nenhum deles comentava sobre o que havia visto no Claustro. Cada um parecia ter seus próprios demônios silenciosos para enfrentar. Sora, porém, era o mais assustado de todos. Ele ainda temia pelo seu destino. E passava muito tempo pensando em formas de combatê-lo.

            Pensando bem... tantos estavam lutando, em tantos lugares... era obrigação dele manter a segurança deles, independente do custo. E a cada momento ficava mais e mais claro que o custo seria alto demais. Ele se lembrou do dia em que Erinia e Maleficent foram até Radiant Garden e atacaram Riku. A primeira havia dito a eles que o fim de todo mestre da Keyblade era triste, solitário e prematuro. Será que era àquilo que ela se referia? Sora nunca havia se sentido tão perdido e sozinho em sua vida.

            Em suas caminhadas pela cidade, ele descobriu um recanto encantador. Era um lago subterrâneo, batizado de Lago de Safira por causa da infinidade de pequenos cristais azuis que revestiam seu fundo. Havia uma queda d’água baixa e suava caindo constantemente no lago, e a luz da lua o tornava ainda mais encantador. Sora sempre buscava a tranquilidade das suas águas para pensar.

            E as noites iam ficando cada vez mais longas em Crystal Fortress.

            Mais uma vez, Sora não conseguia dormir. As visões que teve no Claustro de Testes ainda ressoavam em sua cabeça, cruéis, incansáveis, assustadoras. Elas, somadas ao que Lulu havia lhe dito naquela mesma noite, o perturbavam sem descanso.

            Ele não queria ser o responsável por tanta dor. Se ele libertasse o poder da Fonte das Eras, Erinia acabaria colocando as mãos nesse poder. E ele não conseguiria impedi-la. Se isso acontecesse, ela seria capaz de subjugar todos os mundos, recriando todo um universo à sua imagem e semelhança – um universo de escuridão, medo, ódio e maldade.

            E para impedi-la, apenas uns poucos sonhadores com muita teimosia e quase nenhum juízo. Yuffie, Leon, Cid, Yuna e Rikku mantinham vivo o Comitê de Restauração de Radiant Garden, e o transformavam num quartel-general que tentava reunir todas as forças possíveis. Eles mandavam relatórios sobre suas viagens. De acordo com eles, vários mundos mantinham suas próprias forças de luta – as fadas de Pixie Hollow, as tropas de Mulan em The Land of Dragons, até mesmo a guarda de Paris liderada por Febo. Todos tentavam lutar, todos tentavam fazer a diferença.

            Mas, por mais determinados que estivessem, que chances teriam contra alguém com um poder tão grande que era capaz de destruir e criar mundos com um estalar de dedos?

            Era por isso que ele precisava ir até o fim... independente das consequências.

            Sora resolveu sair e dar uma volta pelas ruas desertas. Pelo teto da fortaleza, era possível ver uma noite bonita e iluminada. Dirigiu seus passos para o Lago de Safira. Talvez a paz e a beleza daquele lugar acalmassem um pouco seus temores.

            Mas alguém mais havia tido a mesma idéia...

–Não está meio tarde para você ficar zanzando pelas ruas, Sora? – era Lulu, que observava a suave queda d’água no lado, e não se virou na direção dele.

–Eu não consigo dormir – disse ele, também observando o lago.

–Está pensando no que você viu no Claustro, e no que eu disse – não foi uma pergunta – Ver o futuro é perigoso e incerto, e sempre é possível mudá-lo. Lembre-se, estamos ao seu lado.

–Mas... e se eu não conseguir? – a voz dele saiu angustiada – E se eu acabar entregando a Fonte de bandeja para Erinia? Não quero que isso aconteça... mas não sei se posso impedir..

–Acalme-se – ela o encarou, e seus olhos faiscavam – Não pode puxar toda a responsabilidade para si. E não pode se desesperar, ou aí sim tudo estará perdido.

–Eu só não quero que mais pessoas se machuquem... – ele suspirou – Twilight Town... se acontecer de novo com outro mundo, eu não sei o que vou fazer...

–É exatamente por isso que estamos aqui – ela concluiu – Essa luta é de todos nós. E Erinia não vai fazer isso com outro mundo. Não conosco aqui para impedi-la. Eu prometo.

            Ele concordou com a cabeça, lutando para acreditar naquelas palavras.

–Bem, eu preciso ir – ela disse – Amanhã será um dia longo. Até mais, Keyboy – ela deu um sorrisinho sarcástico.

            Ele acenou, e depois voltou os olhos para o lago. O som era límpido como o de um sino-de-vento, e as flores aquáticas flutuavam gentilmente, sendo movimentadas apenas pelas pequenas ondas produzidas pela queda d’água. Começou a lançar pedras na água, fazendo-as saltar antes de afundar.

            Lulu não parecia ser o tipo de pessoa que cultivava esperanças infundadas. Se ela dizia aquilo, então realmente acreditava no que dizia, e tinha motivos para isso. E ela também tinha visões do futuro, como havia dito quando chegaram lá. Talvez ela tivesse visto algo que pudesse ajudá-los, uma luz no fim do túnel.

            Foi então que ouviu passos lentos às suas costas. O instinto foi mais forte: no instante seguinte, ele se virou, a Keyblade em punho e uma posição de ataque. Mas, assim que percebeu quem era, imediatamente se recompôs, corando furiosamente.

            Era Kairi. E, naquele momento, ela ria.

–D-desculpe – ele gaguejou – Voc-você me assustou.

–Está tudo bem – ela sorriu – Pelo menos mostra que você estaria preparado, se eu fosse um Heartless.

–Sem sono, também? – ele perguntou, lançando outra pedra – A Lulu acabou de ir embora... parece que ninguém dorme por aqui!

–Eu estava pensando, sabe? – disse ela, também arremessando uma pedra – Em tudo isso. Fico pensando se um dia nossas vidas vão voltar ao normal.

–Você quer isso? – Sora deu uma risadinha – A vida ia ser bem menos divertida, assim.

–Ah, não, eu gosto – ela riu também – É só que... tudo isso... Sabe, eu fico assustada. É tudo tão perigoso, tão sombrio... – e, encarando-o, agora séria – Foi assim das outras vezes?

–Mais ou menos – respondeu Sora – Mas tem as suas compensações, sabe? Acabei conhecendo tantas pessoas legais, e vendo tanta coisa... – e, sorrindo – Ninguém mais teve essa chance!

            Ele se afastou dois passos do lago, e lançou outra pedra, fazendo-a saltar várias vezes antes de afundar. Kairi o imitou.

–Eu percebi isso quando fui para Neverland pela primeira vez – ele continuou – Eu voei lá! E a sensação foi tão maravilhosa, tão incrível... É como se, de repente, todas as limitações sumissem, e você fica livre de tudo – e, para ela – E tem tanta coisa que eu quero te mostrar, quando tudo isso acabar...

            Foi então que a realidade o atingiu como um soco.

            Não era sábio ficar fazendo planos para quando aquilo acabasse, porque o final provavelmente não seria nada bom.

–Sora, você está me escondendo alguma coisa – disse Kairi, firme – Já te vi assim várias vezes. De repente, você fica triste, calado... como se uma nuvem passasse sobre você.

            Sora ficou sem reação. Droga. Ele era realmente péssimo em dissimular.

            Ele podia sentir os olhos dela, penetrantes, agudos, fixos nele. Ela não deixaria aquilo passar. E não aceitaria qualquer desculpa esfarrapada.

            Mas será que ela seria capaz de lidar com a verdade?

–Você ainda está preocupado com suas visões, não é? – ela disse – Vai ficar tudo bem...

            Não. Não ficaria tudo bem.

            Ele se garantiria pessoalmente de que todos ficariam seguros. Mas não podia esperar o mesmo para si.

–Kairi – ele engoliu em seco, sentindo-se fraquejar e sabendo que aquilo iria partir o coração dela – Eu quero uma forma de terminar essa luta, de uma vez por todas. Mas... sei que isso não vai terminar bem para mim. Quando eu encontrar a Fonte, Erinia irá sentir e irá para cima de mim. Só preciso de tempo suficiente para selá-la de uma vez. Lulu disse que posso fazer isso com a Keyblade. E, depois...

–Depois o quê? – Kairi o interpelou. Sua voz estava trêmula, indicando que ela já sabia qual o possível desfecho daquele plano.

–Não haverá um depois – então, a voz dele falhou – Selamentos desse porte consomem uma quantidade imensa de energia. E... eu não tenho planos para depois que trancar a porta que leva até a Fonte. Na verdade... não acho que algum plano vá me ajudar nisso.

–Não... – Kairi murmurou – Você não... tem que ter outro jeito... tem que...

–Não, Kairi, não tem – a voz dele saiu sufocada, e então as palavras começaram a sair numa torrente violenta – Acha que eu já não pensei nisso? Acha que eu queria que as coisas fossem assim? Mas eu não quero que ninguém mais se machuque! Eu não posso ser o responsável por mais dor, entendeu? E não posso deixar que Erinia consiga acessar a Fonte! Então, se isso é o que eu posso fazer, se esse é o preço que eu preciso pagar, então... eu aceito. Mas... não posso deixar mais ninguém se ferir...

            Sora parou, ofegante, olhando fixamente nos olhos de Kairi. Ela estava chocada, o olhar perdido, como se vislumbrasse o que aconteceria. Ele se sentiu ainda mais miserável. Aquele era um fardo só dele, e não era justo preocupá-la ainda mais. Desviando os olhos na direção do lago, ele continuou, mais controlado:

–Entenda, isso é algo que preciso fazer sozinho, então eu não podia jogar essa bomba para cima de você. Sou eu q            uem tem que enfrentar isso, e descobrir uma forma de impedi-la.

            Só então ele percebeu que os olhos dela estavam marejados. Então, ela replicou:

–Como você ousa fazer isso sem me pedir ajuda? – a voz, apesar de embargada pelas lágrimas, estava endurecida – Você achou mesmo que poderia me deixar de fora? Depois de tudo pelo que passamos, depois de tudo contra o que lutamos, você não iria confiar em mim para te ajudar?

–Não! Não é nada disso! – rebateu Sora, chocado – Pelo amor de Deus, nunca mais diga algo assim! Não é que eu não confie em você, é só que... eu queria te proteger.

–Você já está me protegendo há muito tempo – retorquiu ela – Acho que é hora de inverter os papéis!

            Ele não soube o que responder. De alguma forma, ele sabia que, por mais determinada que ela estivesse, ninguém poderia ajudá-lo. Estava completamente sozinho.

–Eu estou com medo, sabe? – ela continuou – Não quero te ver partir outra vez. E se... e se, dessa vez, você não voltar? Eu... não quero te perder...

            Sora sentiu os próprios olhos arderem. Ele já havia se resignado ao seu destino. Era a sua missão, era o preço que deveria pagar. E era humano demais, frágil demais... e não poderia mais contar com a sorte. Mas ele não se importava se essa seria ou não a sua última batalha, contanto que pudesse se certificar de que daria tudo para salvar aqueles a quem amava.

            Mas ele não havia parado para pensar em como isso seria doloroso para aqueles que ficassem para trás... e em como isso, de certa forma, era egoísta.

            Foi então que ele tomou uma decisão.

            Não. Ninguém iria morrer ali. Eles venceriam, e viveriam para comemorar. E ele faria tudo para que isso acontecesse.

–Você não vai me perder, Kairi – disse ele, em tom de desafio – Eu vou ficar bem. Nós vamos ficar bem.

–Por favor... – a voz dela cedia às lágrimas – Me prometa...

–Eu prometo – ele disse, a voz muito firme.

            Então, Kairi se jogou sobre ele num abraço aflito. Sora correspondeu imediatamente, envolvendo-a em seus braços. Ela estava trêmula, e soluçava, e encolhia-se entre os braços dele. E ele era capaz de sentir o coração dela, disparado, batendo contra o seu próprio peito, e a maciez da pele dela, e o perfume dos cabelos... as lágrimas escorriam pelo seu ombro numa torrente, como se ela chorasse por todas as separações passadas e futuras.

            Foi nesse momento que tudo ficou muito claro para Sora.

            O que sentia perto dela, aquele raio de sol que parecia segui-la por todos os lugares e fazê-lo se sentir aquecido e iluminado, aquele salto que seu coração dava quando ela aparecia e sorria... tudo isso eram apenas pequenas amostras de um sentimento denso e quente, que o preenchia por completo. E era algo tão natural, tão simples e claro, que parecia ter estado lá desde sempre. Mas, agora que sabia que ele estava lá, e que podia senti-lo e conhecê-lo, era como se seu coração crescesse.

            Então aquilo era estar apaixonado. E, realmente, era maravilhoso.

            Por alguns momentos, Sora não se permitiu pensar. Delicadamente, ele ergueu o rosto dela, fitando seus olhos fixamente. E, movido apenas pela certeza do sentimento recém-descoberto, aproximou seu rosto do dela, sem desviar seu olhar, até que seus lábios se tocaram.

            Ele fechou os olhos, deixando o momento levá-lo. O beijo começou tímido, incerto, mas logo foi se tornando mais seguro, mais vivo. Seus sentidos pareciam amplificados, e ela parecia tão mais quente e perfumada. Seu coração esmurrava violentamente as costelas, como se estivesse determinado a sair do peito. E tudo ao redor parecia não existir mais. Não havia nada nem ninguém, apenas os dois, e isso, naquele momento, era o suficiente.

            Sora não soube dizer quanto tempo aquele beijo durou. Pareceu uma eternidade, e ao mesmo tempo pareceu apenas um segundo. Mas, no final, eles se separaram, com um suspiro. Por um momento, seus olhos ficaram estáticos, fixos um no outro. Ele percebeu algo diferente nos olhos de Kairi, uma faísca nova e intensa reluzindo em meio ao azul.

            Foi então que sentiu seu rosto queimar. E ele voltou a ser o garoto tímido e completamente estúpido no quesito “garotas”. Tentando manter o controle, disse:

–Bem... nada mal para um primeiro beijo, não é?

–Pois é – ela riu, entre as lágrimas, enquanto também corava – Nada mal para um primeiro beijo.

–Se quiser me dar um tapa, é essa a hora.

–Ah, não, acho que não. Não agora, pelo menos.

            Eles ainda estavam abraçados, olhos nos olhos. Então, ele respirou fundo e disse:

–Kairi, quero que me prometa uma coisa.

–Pode pedir.

–Prometa que, não importa o que aconteça, você não vai mais chorar – ele enxugou uma lágrima do rosto dela, delicadamente – Não quero mais vê-la triste, muito menos por mim. Isso só vai me deixar triste também. Prometa que, mesmo que eu não esteja mais aqui...

–Não diga isso!

–...mesmo que eu não esteja mais aqui, você não vai mais chorar – a voz dele estava mais firme – Por favor... por mim...

–Eu... prometo – a voz dela estava fraca – Mas você precisa me prometer uma coisa, também.

–O que você quiser.

–Prometa que você vai estar aqui para me cobrar. E que nunca mais vai esconder nada de mim. E que vai me deixar ajudá-lo a lutar contra Erinia.

–Não era só uma coisa? – ele deu uma risadinha.

–Prometa!

–Está bem. Eu prometo.

            E, de repente, Sora percebeu que também acreditava que cumpriria essas promessas. Ou que, pelo menos, faria de tudo para cumpri-las.

–Sabe, eu queria ter conhecido Crystal Fortress em épocas menos sombrias – disse Kairi, olhando para o lago – Aqui é tão bonito...

–Nós vamos voltar aqui, quando tudo terminar – respondeu ele – E, quando voltarmos, as pessoas daqui já vão poder voltar a viver em Waterfall City.

–Acho que é melhor voltarmos – disse ela – Está tarde, e amanhã será um dia cansativo.

–Está bem – ele concordou – Vamos voltar.

            Só então eles se desvencilharam um do outro. Enquanto Sora observava o lago, travava uma luta consigo mesmo. Parte dele queria muito perguntar o que aconteceria depois, e como as coisas ficariam entre eles. E outra parte achava que era melhor ele manter a boca fechada e não manchar aquele momento com cobranças ou perguntas. No fim, venceu a parte que dizia para ele não dizer nada.

            Mas, então, percebeu que palavras não eram necessárias. Ele já tinha a sua resposta.

            Ele sentiu os dedos dela se entrelaçando entre os seus, segurando sua mão com força. Ele lançou a ela um olhar surpreso, mas ela apenas sorriu. Então, ele também sorriu, sentindo-se renovado.

            Ainda havia grandes motivos para ter esperanças. E, de mãos dadas, os dois deram as costas ao lado e voltaram para a casa de Lulu.

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            Se as coisas entre Sora e Kairi estavam finalmente se ajustando, porém, o mesmo não podia ser dito sobre Riku e Leene.

            As palavras de Zell ainda atormentavam o rapaz. E o próprio Zell também fazia isso, sempre que tinha a chance. Os dois continuavam se estranhando mutuamente. E ele continuava tentando se reaproximar de Leene. Ela não parecia muito confortável com a situação, e tentava manter o equilíbrio entre os dois. Mesmo assim, era difícil. Parecia que a bolha iria estourar a qualquer momento.

            E parecia que o momento havia chegado.

            Leene treinava com Riku perto do lago, e os dois simulavam uma luta. A habilidade dos dois era evidente: Riku era mesmo muito forte, mas a velocidade de Leene a tornava praticamente inatingível. No fim, porém, acabava sendo mais uma brincadeira do que um treino a sério, porque nenhum dos dois lutava com tudo o que tinha.

–Vai começar a lutar de verdade ou terei que ir aí e te espetar? – debochava Leene, enquanto esquivava de um dos golpes dele – Você sabe que posso fazer isso.

–Ah, até parece – ele devolveu, no mesmo tom – Se você acha que dá conta, então pode vir!

            E eles continuavam. Até que algo atrapalhou o treinamento:

–Nossa, vocês podem resolver seus problemas de outra forma – era Zell. A voz dele irritou Riku e o desconcentrou por um instante, tempo suficiente para Leene derrubá-lo no chão com uma rasteira e cruzar as duas adagas diretamente sobre seu pescoço.

–Xeque-mate – ela sussurrou no ouvido dele, com um sorriso – Regra de batalha número 1: não se distraia do oponente em nenhum momento – e, para Zell – E o que te traz aqui?

–Ah, nada em especial – ele deu de ombros – Só o de sempre. O que acha de sair comigo?

–Ah, me dá um tempo! – ela estreitou os olhos (e Riku também estreitou os dele, enquanto se levantava e mantinha a Way to the Dawn convenientemente próxima) – Eu vou falar pela última vez, e é melhor você entender agora: não temos mais nada!

–Qual é, Leene? Desde que você chegou, nem conversamos direito – ele insistiu – Só te vejo correndo de um lado pro outro, entre o templo e a casa da Lulu! Vamos sair, nos divertir um pouco... como amigos, mesmo, se é o que você quer.

–Zell, nós dois sabemos que você vai fazer de tudo para que não seja apenas um passeio de amigos – ela estreitou os olhos – Pensei ter deixado tudo muito claro quando eu parti, mas pelo visto você não entendeu. Não temos nada a ver, será que você não entende?

–Só me dá mais uma chance. Uma chance, é só o que eu peço – insistiu ele, mais uma vez. Riku, então, perdeu a paciência e disse, secamente:

–Você a ouviu, Dincht – e deu um passo à frente – Deixe-a em paz, ou a conversa será comigo.

–Riku, cale a boca você também! – ela sussurrou, irritada – Não preciso da sua ajuda para resolver isso.

            Mas àquela hora já era tarde demais. Naquele momento, os dois se encaravam, com a hostilidade estampada em seus olhos.

–Ora, ora, ora, se não é o senhor “não-quero-brigar-por-ela” – debochou Zell – Pelo visto você pensou no que eu disse... mas não acho que isso fará alguma diferença agora.

–Eu já me enchi de você, seu cretino – sibilou Riku – Então, se não sumir da minha frente nos próximos dois segundos, vou partir sua cara em duas.

–Ah, vai? – então o outro ergueu os punhos – Quero ver! Mas é melhor eu te avisar que o último que quis testar meus punhos terminou na enfermaria, sem nem saber onde estava.

–Diga isso para todos os Heartless que eu chutei – o primeiro abriu um sorriso cruel – Agora você vai ver, seu...

–PAREM COM ISSO, IDIOTAS! THUNDAGA! – por fim, antes que a briga começasse, Leene disparou uma chuva de raios que atingiu e atordoou os dois. Depois de um instante de confusão, os dois se levantaram.

            Ela os encarava, completamente furiosa. E começou a despejar tudo, aos berros:

–Agora vocês dois vão me ouvir! – o olhar dela, brilhante de raiva, passava de um para outro, e os dois garotos se encolhiam ante a fúria dela – Desde que chegamos, vocês só fazem trocar farpas. Acham que eu não estou vendo? Acham que eu não sei? E quem vocês pensam que são para me disputar como se eu fosse um troféu? Se eu ficar com um de vocês, a escolha será minha, só minha! Eu vou sair com quem eu quiser, vou gostar de quem eu quiser, e vocês dois não tem nada a ver com isso! E EU ESTOU FALANDO COM OS DOIS!!!!!!! – parou um pouco, ofegante – Zell, eu não vou sair com você. Nós não temos mais nada, ou será que precisarei fazer um desenho para você entender? E Riku, se quiser me dizer alguma coisa, é melhor você ser homem e me dizer cara a cara, porque eu não pretendo ficar esperando ninguém. E pros dois, se brigarem outra vez, a conversa vai passar a ser comigo... E EU JURO QUE VOU LIMPAR O CHÃO COM AS CARAS DE VOCÊS!

            Então, lançou a eles um último olhar irritado, antes de dar as costas e sair correndo pela rua. Por um minuto, Riku e Zell ficaram ali parados, sem se encarar. Por fim, o segundo começou a rir:

–Eu devia ter previsto isso... sim, ela não mudou nada mesmo! – e, para Riku – Eu sugiro não ir até ela agora, se você tem amor à vida.

            Riku não disse nada. Apenas começou a andar pela rua, tentando colocar em ordem os pensamentos. Ele ficou apenas perambulando pela cidade, sem muito rumo. Enquanto isso, frases soltas ecoavam em sua cabeça, frases que agora faziam todo o sentido.

            “Seja um pouco menos falso consigo mesmo, Riku.” Zell, maldito. Ele estava certo, afinal.

            “Se quiser me dizer alguma coisa, é melhor você ser homem e me dizer cara a cara, porque eu não pretendo ficar esperando ninguém”. Leene... ele não esperava aquela, com toda a certeza. Será que ele era mesmo tão óbvio assim? Será que... ela havia conseguido ler através dele tão facilmente?

            Por fim, algo obrigou-o a parar. Algo que o fez engolir em seco.

            Ele passou em frente à casa de Zell. E, para seu pavor, Woodstock estava parado em frente à casa, na calçada. Ele estava sentado no chão, mas assim que o viu, levantou-se, numa posição visivelmente hostil. Por alguns segundos, os grandes olhos da ave o paralisaram, até ele conseguir recuar alguns passos.

            Foi quando percebeu o que estava acontecendo.

–Você não gosta de mim, não é, sua galinha superdesenvolvida? – ele emitiu um som ameaçador – Porque acha que eu vou roubar a Leene de você, não é isso? Eu não faria isso... nunca...

            Os sons ameaçadores aumentaram. Ele recuou mais um passo, imaginando quantos dedos seus uma bicada daquelas seria capaz de arrancar.

–Escute... – “eu não acredito, estou tentando conversar com a coisa amarela!”, ele pensava, pasmo consigo mesmo – Nós dois gostamos da Leene. Ela tem sido uma grande amiga e uma grande aliada durante esse tempo... e é sua dona, também. Nós dois gostamos dela. E ela gosta de nós dois.

            Que bom. Não houve sons dessa vez. Ele se aproximou um passo.

–Se bem que... – de repente, sua voz ficou mais baixa e cheia de vergonha – não sei se mereço isso depois de hoje. Acho que a magoei muito, sabe?

            Palavras erradas. Nesse instante, Woody tentou bicar o braço dele, e teria conseguido se Riku não tivesse dado um salto para trás.

–Droga, qual é o seu problema? – protestou ele – Estou tentando ter uma conversa civilizada aqui, dá pra entender isso? – “uma conversa civilizada... com uma ave... eu estou ficando louco, só pode!” – E eu quero que você entenda. O que sinto pela Leene é... é... sei lá, tão grande, tão... difícil de definir... É como se ela me preenchesse, me completasse. Como se ela tivesse algum tipo de aura ao redor dela, algo que a torna tão radiante e especial... E ela é sempre tão compreensiva, tão forte... tão maravilhosa... – de repente, seus olhos se perderam. Tudo aquilo só foi fazer sentido agora, depois que ele colocou em palavras. Sim, ela era maravilhosa. Sim, o que ele sentia por ela era algo além da sua compreensão.

            Sim... ele estava apaixonado por ela.

–Mas só porque eu gosto dela, você não tem que me odiar – ele continuou – Acho que ela não corresponde ao que eu sinto. E, mesmo se correspondesse, não iria gostar menos de você por isso. E eu não a afastaria de você, nem nada. Então seria legal se você não tentasse me mutilar sempre que me encontrasse, que tal?

            Woody o encarou por um instante. Será que ele havia entendido alguma coisa?

            Sim, havia. Porque no instante seguinte, curvava a cabeça em aceitação e respeito. Riku, hesitante, aproximou a mão da cabeça dele, e afagou-a. Dessa vez, porém, o chocobo não o atacou. Em vez disso, começou a emitir silvos baixos de aceitação.

–Grande Woodstock – Riku não pôde deixar de sorrir – Muito obrigado.

            Então, deu as costas, e continuou o seu caminho. E não percebeu que, atrás de um muro, havia alguém que ouvia sua conversa incomum com o chocobo ciumento. Alguém que, naquele momento, enxugava lágrimas teimosas que não combinavam com o grande sorriso que estava em seu rosto.


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